Por: Guillermo Federico Piacesi Ramos
Obs.: o presente texto é continuação do publicado aqui nessa coluna há 3 domingos (no dia 23/01) chamado “Peçanha”, ao qual o autor remete o leitor (link: https://phvox.com.br/pecanha/)
A FEIRA
– I –
Depois daquela vez onde a esposa o havia surpreendido com o tal convite para jantar, na ligação telefônica maliciosa que ela havia lhe feito, Peçanha ainda se lembrava de como ficou com o serviço acumulado, por não ter conseguido se concentrar durante todo aquele dia inusitado, e no final não haver produzido nada.
Agora ele estava totalmente em dia com os afazeres no trabalho, e se sentia feliz e orgulhoso por isso, com um misto de dever cumprido. Refletiu sobre a sua rotina diária: pegar o automóvel para rumar em direção ao escritório; fazer o mesmo itinerário; vislumbrar a mesma vista; e chegar ao local do trabalho.
“Não gosto da palavra rotina. Prefiro dizer que sou um homem de hábitos fortes, que tenta cultivá-los para que permaneçam vivos e não sejam esquecidos”, pensava. “Um homem sem raízes não tem tradições, e não sabe por quais valores lutar. É como uma árvore: você poda os galhos, mas ela continua ali, com as raízes presas ao solo. E se você colher os seus frutos ainda leva um pouquinho da árvore e do que ela representa para outras pessoas, para outros locais”, seguia divagando.
Peçanha trouxe à memória as suas ações no escritório. Assim que chegava, começava a produzir tudo que tinha para ser produzido. Com uma velocidade incrível e enorme eficiência, escrevia textos para todos os jornais nos quais trabalhava. Alguns eram artigos de meia página, e outros de página inteira. E depois enviava todos aos editores.
“Dessa vez eu estava inspirado. Tomara que sejam publicados sem alterações. Acho que nem mesmo vai precisar revisão, pois prestei muita atenção para não cometer erros de digitação”, pensava para si mesmo, relativamente à pauta do último dia, a sexta-feira que acabara de passar.
Modéstia à parte, ele sabia que tinha talento para escrever. O hábito da leitura o acompanhava desde a infância. Clássicos como Os Três Mosqueteiros e As Aventuras de Tom Sawyer, e os livros de aventura de Júlio Verne, que ele devorou ainda na fase pré-adolescente, fizeram aflorar nele o gosto pela literatura. Depois, já adulto, vieram os grandes romancistas, que Peçanha sempre trazia a tiracolo, e que não valia a pena citar para não cometer injustiça com algum que pudesse esquecer, até chegar, por fim, em Dostoievski, aquele que considerava o maior de todos.
“Maior do que Machado?”, perguntava a si mesmo, pensando em seu querido Machado de Assis.
Ele mesmo respondia: “Sim, claro que sim. A importância da obra de Machado tem a ver muito mais com a formação de uma língua portuguesa autêntica e a construção de um estilo de romances realistas, aliado à alta erudição que deve permear a elegância da narrativa literária, do que com a profunda investigação da psiquê humana feita por Dostoievski, que atingiu níveis nunca antes experimentados, influenciando autores como como Nietzsche e Freud – e ainda Kafka, com seu conhecido O Processo.”
E arrematava, dando o veredito: “Dostoievski é imbatível e inigualável, de fato. Não se pode comparar coisas diferentes. Mas, para mim, com relação à língua portuguesa, a última flor do Lácio, bela e inculta, como dizia Olavo Bilac, Machado de Assis é o mais importante escritor. E não tem discussão quanto a esse ponto”
Peçanha reconhecia que escrever sobre a política do dia-a-dia era muito bom. Fazia com que ele estivesse sempre atualizado a respeito dos acontecimentos, para poder desenvolver seus artigos com embasamento nos fatos. E como os seus textos eram opinativos, e não de notícias de fatos jornalísticos, ele podia imprimir um estilo pessoal ao que escrevia, transformando-os em atemporais, com uma validade que se protraía no tempo – quase como um retrato do cenário dos dias vividos à época.
Definitivamente, os seus leitores realmente gostavam de ler as análises que ele fazia do panorama político. Peçanha sabia disso porque, como um homem ligado às tradições de antigamente, mantinha o velho hábito da comunicação direta com os leitores, disponibilizando ao fim de cada artigo o endereço eletrônico para onde deveriam ser enviadas as críticas e avaliações a respeito do texto. E, pacientemente, ele lia cada uma das inúmeras mensagens que chegavam, que eram, na maioria esmagadora, sempre elogiosas.
Naquele sábado que estava apenas começando Peçanha sentia-se leve e feliz, por não ter qualquer tipo de responsabilidades profissionais pendentes e por ter dois dias inteiros na companhia da mulher no final de semana. Podia pensar com calma sobre o que fazer.
Ele havia preparado a mesa para tomar o café da manhã com a esposa. Colocou dois tipos de pão, queijo, algumas frutas, e os tais iogurtes que a mulher gostava de beber, além de mate e café – puro, sem leite.
“Se estivéssemos em Portugal eu diria que esse é o nosso pequeno-almoço, que é como os portugueses se referem à primeira refeição que se faz no dia”, começava a divagar, na sua mania de pensar a respeito da Língua Portuguesa.
A esposa comia delicadamente a metade do brioche com queijo, e sorria para o marido o conhecido sorriso que fazia as suas covinhas aparecerem.
Peçanha já estava acostumado com a mania da esposa de só comer metade dos pães. Era algo que ele não tinha ainda conseguido entender. Não tinha relação com o tamanho do pão ou da fome da mulher. Qualquer que fosse o pão, a esposa o partia ao meio e comia apenas uma metade.
“Vai ver que essa era uma das razões pelas quais combinamos tanto, e nos damos tão bem: talvez ela seja tão metódica e sistemática como eu”, pensava ele, sorrindo suavemente para a mulher, que, mastigando o pão, olhava para ele sem entender a razão do sorriso repentino do marido.
A esposa engole o restinho da metade do pão, acaba de beber o suco de laranja, e fala ao marido:
“Carlos, hoje começa a feira de produtos locais lá no distrito rural. Vi o anúncio ontem. Você quer ir? Podemos almoçar lá e prestigiar os produtores. O que acha?”
“Puxa, não sabia disso. Acho uma boa, vamos sim. Vai ser ótimo fazermos algo diferente”, responde Peçanha.
A tal feira acontecia todos os anos na cidade, sob a organização dos produtores rurais da cidade e com apoio da Prefeitura da Cidade. Era uma maneira de fomentar a produção local e até de incentivar o turismo na região.
Peçanha gostava de beber as cervejas artesanais e degustar as iguarias típicas que eram produzidas na região, como queijos, linguiças e frios.
“Minha bebida preferida é vinho, mas não resisto a uma cerveja artesanal, daquelas bem encorpadas. E nesse frio que está fazendo a cerveja fica melhor ainda”, pensa para si.
A mulher levanta da mesa e diz a ele:
“Hmmm, então chega de comer. Não vá se entupir de queijo e café. Vamos guardar nosso apetite para a hora do almoço. Afinal, é apenas uma vez por ano que a feira acontece”. E começa a tirar a mesa devagarzinho.
Em seu rosário de hábitos fortes, Peçanha tinha um outro, que lhe era caro: enquanto a mulher organizava todos os utensílios na cozinha, ele lavava a louça. Nesses momentos, não eram poucos os que, para ela abrir a porta de um armário onde guardava condimentos, precisasse passar bem rente ao marido, tocando em seu braço e apoiando-se nele; e Peçanha podia ouvir a respiração da esposa, sentir seu cheiro, ficar com o rosto praticamente encostado ao dela, e vê-la bem de perto. Para ele, isso era de fato um belo momento intimista do casal.
Era nesse clima que, acabado o café da manhã, guardados os utensílios e lavadas as louças, Peçanha e a esposa agora se arrumavam para ir à feira de produtos locais do distrito rural da cidade.
A mulher colocou um vestido florido com uma meia-calça de lã por baixo, calçou as botas e pegou a jaqueta de couro, e apenas passou uma pequena base no rosto e um batom claro nos lábios. Com o peculiar sorriso que fazia as covinhas aparecerem, disse:
“Amor, já estou pronta. Vamos?”
Peçanha pensava como era possível os seus amigos lá da cidade reclamarem tanto sobre a demora das esposas para se arrumarem para sair. Diziam eles que muitas vezes eram vinte ou trinta minutos de espera até elas terminarem de se produzir.
“Até nisso sou abençoado. Ela se arruma em cinco minutos”, ele dizia baixinho para si mesmo.
Peçanha, que não usava nada diferente do que a calça jeans de sempre e a bota de cano baixo dos finais de semana, pegou um casaco de lã e saiu pela porta, com a esposa segurando em seu braço.
– II –
Para chegar à região onde a feira acontecia, era necessário sair da cidade e percorrer uns trinta quilômetros, até pegar uma estrada de chão no final, que chegava no distrito rural. A aparência do distrito era a de um vilarejo, com praticamente apenas um quadrilátero com uma igrejinha, uma grande praça, um mercadinho, e casas em todo o seu entorno. O resto do distrito era composto de fazendas, um pouco mais afastadas.
Peçanha e a esposa chegaram ao distrito por volta das 11:30 da manhã, estacionaram o carro e dirigiram-se à praça onde se realizava a feira. Lá chegando, foram surpreendidos por alguém que os saudava:
“Letícia! Carlos! Que surpresa! Vocês vieram!”
Era Pedro, que estava na feira como um dos produtores de cerveja artesanal da região. Peçanha cumprimentou o amigo com um forte aperto de mão, e o viu dar dois beijinhos nas bochechas rosadas da esposa. Sabia que Pedro estava sozinho naquela ocasião porque tinha acabado de se divorciar, após um casamento de mais de 10 anos.
E daí, novamente ele começava a pensar, casmurro como usualmente ficava com relação a esse assunto: “Mas que raios que têm essas pessoas, que se divorciam assim tão facilmente? Não entendem que casamento é compromisso de vida? Se estão infelizes, como sempre alegam, não sabiam quem era o cônjuge antes de se casarem? Ou então casaram por impulso? Por que entram e saem da vida das pessoas assim?”
E mais uma vez pensou no próprio casamento e em Letícia, a esposa, sua companheira de vida e seu grande amor. Ele sempre se lembrava das palavras do Padre, quando os abençoou: “O que Deus uniu, o Homem não separa”. Letícia era aquela a quem Peçanha jurou estar junto na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença. E ele levaria adiante esse juramento, passando com ela o resto de seus dias na sua existência terrena.
Mas ele tinha consciência que ele e Letícia eram uma exceção como casal, e lamentava muito o ocorrido com Pedro. Ele entendia perfeitamente as circunstâncias e as razões que levavam casais a se separarem.
Peçanha e a esposa tinham um verdadeiro pacto de fazerem o próprio casamento vigorar e se fortalecer. Eles se fechavam em um relacionamento forte, imune a interferências externas, onde não havia espaço para intromissões, fofocas, e outras maledicências que em última análise apenas serviam para enfraquecer o casal.
“Tudo é questão de compromisso para fazer dar certo. Tudo passa pela percepção das prioridades da vida”, ele tinha nitidamente para si, quando pensava sobre casamentos.
Pedro, o amigo do casal, tinha um comércio na cidade. Uma loja de bebidas do tipo delicatessen, onde Peçanha e Letícia iam sempre aos finais de semana. Além das bebidas de todos os tipos que o amigo vendia, especialmente vinhos e destilados, o grande chamariz era a cerveja que ele mesmo produzia, e que era comercializada apenas na região.
Com um nome altamente impactante, Ceres (que era a deusa romana da agricultura e dos grãos – e por extensão da cevada, a matéria-prima da cerveja), e uma produção que garantia um pequeno estoque de algumas centenas de garrafas todos os meses, Pedro rapidamente conquistou a clientela com sua cerveja de produção própria.
E agora ele estava na feira de produtos do distrito para vender a cerveja Ceres para uma clientela maior. Certamente ele voltaria para casa sem uma gota sequer no estoque…
Letícia era muito amiga da esposa (ou melhor, agora ex-esposa) de Pedro.
Recentemente, quando o divórcio se oficializou, Letícia ficou triste quando soube que ela se mudaria para a capital, levando os filhos consigo. “Faz parte do acordo do divórcio, ora. Ele fica aqui, com a casa só para ele, e eu volto com as crianças para o nosso apartamento na cidade, que ficará no meu nome. O inquilino já o desocupou, e eu vou morar lá”, dizia a amiga.
Letícia não conseguia entender como era possível um casal que conviveu tanto tempo junto, que fez tantos planos, que se amou tão intensamente, de uma hora para outra se separar e ir cada um cuidar da própria vida.
Ainda ouvia a amiga dizendo: “Vou recomeçar minha vida”. Ela nem se imaginava sem seu marido. Guardava por ele um afeto e um carinho tão grande, um amor tão incomensurável, que só de olhar para Pedro ali naquele momento, sem a mulher que sempre ia com ele a todos os lugares, cuja imagem era impossível dissociar da dele, e de se colocar no lugar dele e da (agora) ex-esposa, sentia até vontade de chorar.
Por isso, nesse momento em que estava se dirigindo para a praça, após se despedir do amigo recém-divorciado, segurou na mão de Peçanha com tanta força e esgueirou-se para junto dele com tanta sofreguidão, que o fez falar baixinho:
“Ei, amor, o que houve? Acha que vou sumir no meio da multidão, é? Não se preocupe, meu bem. Você não vai se livrar de mim nunca! Jamais a deixarei sozinha.”
A esposa gostava desse carinho com que o marido se referia a ela. Talvez quem estivesse de fora e visse a cena acharia bobo, até meio infantil, o tratamento dispensado à esposa pelo marido; mas ela sabia que o que fortalecia seu casamento era justamente esse tipo de coisa – eram os detalhes.
Sabia que Carlos era um homem apegado a rotinas. “Hábitos fortes”, ele lhe dizia sempre. E ela sorria e respeitava o jeito dele de ser, de se referir a ela como se fossem ainda aqueles namorados lá de mais de vinte anos atrás, agindo como se tivesse que conquistá-la todos os dias.
Letícia pensava: “Que tolinho! Como é inocente! Mal sabe ele que continuo apaixonada por ele desde sempre, e que só de pensar nele como homem me dá um calor pelo corpo todo.”
Ela se lembrava da pequena frustração que sentiu há poucos dias, quando o marido saiu cedo sem tomar café da manhã com ela. Mas aproveitou o ocorrido para transformar o episódio em um encontro profundo e revitalizador do casal.
Naquela ocasião, tentou de todas as formas surpreender o marido. Ela sabia o poder que tinha sobre ele; sabia que o seduzia. E isso lhe dava uma profunda noção de responsabilidade, de ter a consciência de jamais usar o ponto fraco do marido (que era ela mesma, com o seu poder de sedução) contra ele mesmo, objetivando controlá-lo, enfraquecê-lo, deixá-lo inseguro, ou essas coisas que outras mulheres infelizmente faziam.
Amava o marido mais do que tudo no mundo, e agora, vendo-o caminhar ao seu lado com as mãos entrelaçadas nas suas, quando se deslocavam à praça do distrito para conferirem a feira de produtos locais, sentia-se plenamente realizada.
“Deus é bom!”, repetia a todo o tempo.
– III –
O dia na feira transcorreu dentro da mais absoluta normalidade. Após Peçanha degustar várias cervejas artesanais e Letícia se entupir de doce em compota dos mais variados, resolveram almoçar no meio da tarde.
Dirigiram-se a uma das barracas de comida típica e pediram um único prato, que segundo o produtor era suficiente para o casal. Comeram uma bela refeição. Galinha caipira ensopada, aipim fresco, e um monte de acompanhamentos que certamente daria para alimentar mais do que apenas duas pessoas.
Depois, continuaram conferindo os produtos da feira.
Peçanha conversava com cada produtor, com a sua peculiar característica de falar as coisas de forma metódica, quase beirando a sistematicidade. Perguntava tudo a respeito do modo de preparo dos produtos.
Os produtores explicavam as coisas a ele de maneira simpática, mas havia alguns que ficavam desconfiados sobre a razão de tamanha curiosidade, no que Peçanha emendava: “É que sou jornalista. Sabe como é, né? Curiosidade jornalística”. E arrancava um sorriso do produtor, que não se furtava a contar os segredos da produção caseira e artesanal cujo produto estava ali sendo apresentado para venda.
A edição desse ano tinha uma novidade que nos anos anteriores não se viu: uma feira de adoção de animais. Em um local reservado, atrás das barracas dos produtores, podia se ver vários cachorros, filhotes, dos mais diversos tamanhos, e alguns gatos, todos dentro de um cercado, com um aviso de que estavam vermifugados e prontos para ganharem um lar.
Os animaizinhos juntavam em seu entorno um público eufórico, a maioria constituído por crianças.
Ao se deparar com a cena, Letícia começou a dar pulinhos de alegria ao ver cachorrinhos que mais pareciam saídos de um filme ou seriado de televisão abanando o rabinho, dando pequenos latidos e correndo dentro do cercado.
Peçanha gostava muito de animais, mas sempre dizia que não queria tê-los por causa do trabalho que dava para tomar conta. “Há que se ter responsabilidade. Animal é parte da família. Não pode ser descartado por aí depois que não se quer mais a companhia dele, como muita gente faz. Se não pode tomar conta e ficar com ele até o final, então é melhor nem ter”, repetia sempre.
Peçanha ficou tão feliz de ver a mulher assim radiante e feliz junto aos animaizinhos, que nem pestanejou em falar para ela, quase que tocado por um impulso:
“Escolha um cachorrinho, Letícia. De qual você gostou?”
“Jura? Tem certeza? Você está disposto a cuidar de um bichinho junto comigo? Pensou bem? Não quero ter a responsabilidade apenas para mim…”, ela replicou.
“Estou disposto sim. Fará bem a nós dois a companhia de um cachorrinho. Se viemos até aqui para aproveitar a feira e nos deparamos agora com esses animaizinhos, isso tudo não deve ser coincidência. Mas deixarei que você escolha.”
A mulher, radiante, começou a olhar atentamente cada um dos cachorrinhos que estavam dentro do cercado para serem adotados.
Conversando com os organizadores, Peçanha ficou sabendo que dos mais de vinte cachorros disponíveis para adoção, restavam ainda uns sete ou oito; e dos dez gatos, tinham ainda apenas três. Então, se a esposa demorasse muito para escolher, provavelmente acabaria sem conseguir seu cãozinho.
Com o canto de olho, Peçanha observava a mulher. Ela andava em círculos, às vezes se agachando para quase tocar em algum cachorrinho, e logo se levantando para continuar o périplo que empreendia, na quase inspeção que fazia no cercado.
Letícia simplesmente não conseguia escolher. Sempre ficava em dúvida. “Não é assim, apenas escolher um cachorrinho e pronto. É preciso mais do que isso. Acho que o animal é que tem que me escolher, porque ele percebe quem é bom para ele, ele tem um instinto que nós não temos…”
E pensou: “Cadê o Carlos? Vou falar para ele que não consegui escolher e chega disso!”.
No exato momento em que a mulher se virava para falar com o marido, sentiu uma mordidinha no canto da sua bota. Olhou para baixo e se deparou com um filhotinho todo malhado, com manchas cinzas e brancas, brincando com ela e abanando o rabinho.
A única coisa que Letícia conseguiu fazer naquele momento foi pegar o cãozinho imediatamente e dizer: “É esse. Agora ele é meu.”
Peçanha assiste a toda a cena, e fica comovido. Ele já estava observando de longe esse cachorrinho, que no final chamou a atenção da sua mulher. Tinha as orelhas grandes, e parecia que seria de tamanho médio, quando crescesse.
“Como pode um animalzinho fazer isso? Como pode ele ter consciência das coisas dessa maneira? Será que ele de fato escolheu a Letícia? Será que ele chamou a atenção dela de propósito? Vai saber… O fato é que ele fará bem a nós. Se ela está feliz, eu também estou.”. E vai ao encontro da mulher.
Ao final do dia, Letícia e Peçanha se preparam para ir embora da feira. Despedem-se de Pedro, que estava feliz por ter vendido todo o estoque da Ceres na feira, dão uma última olhada nas barraquinhas dos produtores sendo desmontadas, e dirigem-se até o seu automóvel para partirem para casa.
A bordo do carro, passando a mão suavemente no pelo do cachorrinho, que repousava entre as pernas daquela que agora seria a sua dona, a mulher diz:
“Passei um dia muito bom, amor. Muito obrigada”.
“Qual vai ser o nome dele?”, pergunta o marido.
“Não sei ainda. Tem que ser algo que tenha relação com tudo isso que vivemos hoje, com tudo o que aconteceu. Vou pensar com calma. Você, que é tão bom com as palavras, pode me ajudar a escolher um nome bem adequado para ele?”
E sorri, feliz.