Existe uma mística em torno das forças armadas russas no mundo ocidental, algo que não sabemos se foi fomentado intencionalmente pelos serviços soviéticos ao longo das décadas ou se muito pelos feitos e sacrifícios dos povos soviéticos durante a segunda guerra mundial, mesmo quando utilizados como gafanhotos por Stalin na linha de frente da Operação Barbarossa. O que podemos afirmar com certeza que esta mística é muito bem utilizada pela propaganda da Federação Russa nos dias atuais, principalmente no que diz respeito à ordem, capacidade de combate e obediência ao líder da nação.
Para os observadores mais atentos, porém, a atual guerra na Ucrânia está deixando de maneira exposta alguns pontos que podem indicar justamente o contrário em vários aspectos.
Completados um mês do conflito, temos diversas notícias de um alto número de deserções de soldados russo e do baixo moral em várias colunas, sempre atribuindo estas informações na condicional, devido à dificuldade comprovação total dos números na linha de frente. Apesar disto, existem questões que geram discussões no alto escalão militar e político do Kremlin.
Mas para entender estes pontos, é necessário voltarmos alguns anos e aprofundar um pouco mais sobre a relação atual da Rússia com a China.
Nem todo negócio é da China
Desde a invasão e anexação da Criméia por parte do governo de Putin em março de 2014, a Rússia passou a sofrer com sanções comerciais que afetaram o seu mercado interno e externo. Neste período a aproximação de Vladimir Putin e Xi Jinping começa a tornar-se mais sólida, tanto no campo comercial como no campo militar. No aniversário de 70 anos da vitória do exército vermelho sobre nazismo alemão, em 09 de maio de 2015, Xi Jinping foi convidado para assistir pessoalmente o evento, bem como soldados chineses, que também marcharam lado a lado com os russos. Porém, esta aproximação não é uma novidade, no tempo de tem Stalin e Mao Tsé Tung fora lançado o Slogan “russos e chineses – irmãos para sempre” (irmandade que terminou com a morte de Stalin, vale lembrar).
Ainda em maio de 2014, as estatais russa e chinesa, respectivamente a Gazprom e a China National Petroleum Corporation (CNPN), assinaram contrato que prevê a fornecimento de 38 bilhões de metros cúbicos de gás russo para a China por um período de 30 anos. O projeto foi batizado de “Força da Sibéria” e possui 4000 quilômetros de comprimento com um custo estimado em US$75 bilhões, sendo que deste montante cerca de US$55 bilhões arcados pelo governo russo. Também fora acordado um segundo gasoduto de 2600 quilômetros com o nome de “Altai” que irá fornecer à China 3 bilhões de metros cúbicos de gás.
O primeiro gasoduto fora inaugurado em dezembro de 2019, em uma operação que não é rentável a curto ou médio prazo para a Rússia, que segundo cálculos da própria Gazprom só começará a ter retorno liquido e pagar o investimento à partir de 2048. A China por sua vez, está com um aumento considerável no fornecimento de gás para a sua indústria e, diferente da Alemanha, não permanecerá dependente da Rússia, já que à época não pretendia deixar de comprar gás condensado da Austrália, Qatar, Malásia e Indonésia por exemplo.
Outro fator que envolve os negócios Rússia-China na região da Sibéria diz respeito à mão de obra e desenvolvimento da região por parte da Rússia, ao contrário dos chineses que além da mão de obra barata conseguiu inundar a região da fronteira com seus produtos. Desde 2015, o Kremlin começou a oferecer um hectare de terra para os cidadãos russos que quisessem produzir e trabalhar a região, porém a busca foi baixa e, como resultado, as autoridades de Novossibirsk arredaram a uma empresa chinesa uma área equivalente à de Hong-Kong para exploração agrícola: cerca de 115 mil hectares. Segundo a agência FlasSiberia o contrato prevê o arrendamento deste território por um período de 49 anos ao preço anual de 250 rublos (cerca de 4,2 euros à cotação da época) por hectare, com a possibilidade de ampliar este terreno para 200 mil hectares adicionais. Como a região é pouco povoada por russos, a tendência é que cada vez mais mão-de-obra barata seja importada da China para dentro do território russo.
Mas o que estes negócios têm a ver com a possível fragilidade nos altos círculos russos?
Putin não seria uma unanimidade intocável
Segundo Alexander Adler, historiador, especialista em União Soviética e Europa Oriental, ex-membro do Partido Comunista Francês (PCF), professor por muitos anos na escola central do partido na França e ilustre colaborador próximo dos mais altos níveis do politburo soviético, afirma que Sergey Shoigu, atual ministro da defesa da Rússia e amigo íntimo de Putin, não estaria muito feliz com os rumos das relações entre os dois países:
Shoigu está particularmente em desacordo com a política de aliança, quase eixo, Moscou-Pequim que Putin impôs. Oprimido por conseguir um equilíbrio com os Estados Unidos, o chefe do Kremlin acabou aceitando concessões a uma China cujas ambições na Sibéria são muito semelhantes à colonização político-econômica. E isso, Shoigu, como mongol e buriat, não pode aceitar. Para ele, ao contrário, é preciso aproximar-se do Ocidente, o único capaz de ajudar a Rússia – que está longe de ser a grande potência que era – a se recuperar”
Muitos do “círculo fechado” de poder de Putin consideraram que ele estaria tomando decisões de maneira isolada e mentindo, Putin teria afirmado, por exemplo, que após aumentar a presença russa em Donbass para mostrar a força de Moscou iria parar a movimentação. Mas ao invés disto a acelerou. Esta informação de Adler é corroborada pela afirmação de parlamentares russos que se disseram traídos por Putin e condenaram os ataques à Ucrânia no início do mês de março. São eles o senador Vyacheslav Markhayev e os deputados Mikhail Matveyev e Oleg Smolin, todos membros do partido comunista da Rússia, a segunda maior bancada da Duma.
O deputado Mikhail Matveyev se posicionou com uma pequena nota em seus perfis no Twitter e Telegram:
Até o último momento, eu não podia acreditar que Putin poderia começar essa guerra absurda. E eu estava errado. Eu sempre acreditei que a razão poderia vencer no final. Mas eu estava errado.”
Já o senador Vyacheslav Markhayev declarou:
Toda a campanha de reconhecimento tinha uma intenção e planos totalmente diferentes, que ficaram inicialmente escondidos de nós. Por consequência, acabamos em um confronto de larga escala entre dois Estados. Eu odeio a guerra e a solução militar de problemas. Digo isso não como observador ou político, mas como participante direto de eventos similares e bastante recentes na história russa.”
Oleg Smolin declarou:
Cometi dois erros em minha carreira: em 1993, quando eu não acreditei que Boris Yeltsin tentaria um golpe de Estado, e em 2022, que a Rússia daria início a hostilidades de larga escala na Ucrânia”
Por volta do dia 06 de março, aumentaram os relatos de que Oleksandr Bortnikov, chefe da FSB estaria envolvido em uma trama para afastar ou até mesmo envenenar Putin, o que aqui volto a ressaltar que sempre no campo da especulação. As fontes de inteligência afirmavam que Shoigu poderia estar envolvido na trama e que ela poderia acontecer nos próximos dias.
Coincidência ou não, no dia 12 de março Vladimir Putin ordena a prisão domiciliar de dois altos agentes do serviço secreto por alegadamente terem transmitido um falso cenário de facilidades na tomada de Kiev. De acordo com os informes os agentes em questão são Sergei Beseda, chefe da divisão de serviços externo do FSB, e o seu vice, Anatolij Bolyukh. Os homens dos serviços externos do FSB recorreram alegadamente a algumas centenas de guerrilheiros chechenos, muito leais ao presidente Kadyrov. Os chechenos, no entanto, teriam sido todos eliminados pela contra-inteligência ucraniana, em uma missão black ops frustrada do Kremlin para assassinar o Presidente ucraniano Zelensky.
Também desde o dia 12 de março, Sergei Shoigu não é visto em aparições públicas, isto começou a gerar um grande rumor em todo o mundo sobre seu paradeiro. Muito é especulado sobre seu paradeiro, algumas fontes indicam que ele pode estar doente sofrendo de problemas cardíacos, outras temem pela segurança do ministro da defesa russo. No dia 24 de março Shoigu supostamente apareceu em uma reunião virtual como ouvinte com Vladimir Putin, porém diversos analistas já apontam que o vídeo pode ter sido produzido justamente para mostrar que o militar estaria na ativa. Além de Shoigu, Valery Gerasimov chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas, também fez sua última aparição pública em 11 de março. Nesse dia, ele conversou com seu colega turco Yasar Güler.
Hoje, 25 de março são divulgado rumores que desde 14 de março de 2022, Dmitry Vitalievich Bulgakov é Ministro interino da Defesa da Rússia.
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Em pronunciamento televisionado em 16 de março, Putin falou em purificação e punição de traidores. Disse que uma “autopurificação da sociedade só fortalecerá nosso país”, em claro recado a quem é contrário à operação militar de invasão à Ucrânia.
Para Putin, o Ocidente prepara uma “quinta coluna de russos traidores” para criar distúrbios civis, concluindo em seguida que os países ocidentais têm apenas um objetivo: “a destruição da Rússia”.
Também se referindo a “traidores”, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse em teleconferência que em “tempos tão difíceis, muitas pessoas mostram suas verdadeiras cores’. Muitas pessoas estão se mostrando, como dizemos em russo, traidoras”.
A demissão aceita e possível efeito dominó
Um outro caso que vem chamando a atenção é o de Anatoly Čubajs, um implacável defensor das privatizações russas que militou na política de Petersburgo até que, após o colapso da União Soviética, ascendeu a ministro no gabinete de Boris Yeltsin, que escolheu confiar-lhe a pasta de Rosimushchestvo, a agência do Ministério das Finanças para a gestão do estado propriedade que tratou de acordo com o programa de privatizações.
Nos primeiros dias da ascensão de Putin ao poder, Čubajs era visto como um oponente pelo atual presidente. Quando, no entanto, o novo governo russo começou, Čubajs parecia o homem certo na hora certa, o barqueiro entre a era Putin e o legado soviético, além de anfitrião de grandes empresas estrangeiras ávidas por investimentos na Rússia.
Depois de vários cargos de destaque no governo, ele se tornou o chefe da UES, que controla a vasta rede elétrica do país. A nomeação essencialmente fez dele um dos magnatas mais poderosos da Rússia, com mais influência na política do Kremlin do que quando ele estava no governo.
Depois, em 2020, recebeu a nomeação como enviado especial para as relações com os organismos internacionais e o desenvolvimento sustentável. Um papel que o manteve em contato próximo com os Estados Unidos e, especialmente, com John Kerry, o homólogo climático do presidente Joe Biden. Um movimento que pode ser notado de duas maneiras: por um lado, uma posição importante, dada a importância política que os compromissos climáticos assumiram na política externa russa, mas sobretudo em virtude das habilidades de negociação e diplomáticas que o cargo exige; Čubajs, liberal, moderno e basicamente pró-ocidental, ele só poderia ser o homem certo. Em julho do ano passado, entusiasmado com a reunião com seu colega russo, John Kerry falou sobre a importância de encontrar áreas de cooperação para acelerar a contribuição da Rússia para a transição energética global. Por outro lado, a quem diga também que o cargo oferecido a Čubajs poderia ser visto como um rebaixamento de sua figura, um papel diplomático confiado a quem tinha de alguma forma ser posto de lado e apaziguado com um papel de prestígio, em bom português popular “demitir para cima”.
Čubajs parece ter entrado para o seleto grupo de “traidores e escória” que Putin anunciou na TV Russa. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, confirmou sua renúncia sem especificar os motivos, agora Moscou teme o efeito dominó.
O que esperar?
A maioria das informações que chegam da política interna russa, são cercadas de mistérios, incertezas e, em último caso, não devemos descartar a possibilidade de ações de contrainteligência russa. Todavia, as sanções atingiram diretamente, diversos oligarcas russos, companheiros de KGB de Vladimir Putin que majoritariamente estavam no Ocidente, onde tiveram seus negócios prejudicados diretamente, não somente eles, mas também seus filhos. Seria temerário chancelar com certeza que existe um complô amplo contra Vladimir Putin e que ele está prestes a sofrer um golpe interno. Todavia, o número de informações, agentes e prisões em datas distintas mostram que de alguma forma há fumaça, logo, algum foco de incêndio existe, o que é comum em regimes autocratas e ditatoriais.
Vejamos se Shoigu reaparece nos próximos dias, o que poderia diminuir as especulações e até mesmo o ímpeto de possíveis conspiracionistas.
Por outro lado, caso haja agentes interessados na derrubada de Vladimir Putin, estes teriam apoio interno e externo para o fazer? Ainda assim, neste cenário teríamos algumas dúvidas importantes no horizonte:
Uma possível nova liderança recuaria das ações na Ucrânia?
Essa liderança estaria disposta a retomar os negócios vantajosos para a oligarquia russa com o ocidente em nome da derrubada das sanções?
Xi Jinping que demonstra sinais de preocupação com a situação na Ucrânia, estaria disposto a rever seus negócios na Sibéria em nome de um novo direcionamento com o novo governo?
Teríamos uma briga interna destes conspiracionistas contra agentes fiéis a Putin e sua doutrina conjunta e ideológica com Dugin?
As perguntas neste momento são muitas e as cartas de possibilidades estão na mesa. Será necessário acompanhar de perto quais os próximos passos desta trama obscura que pode definir o rumo da vida de milhares de pessoas na Rússia, Ucrânia, China e até mesmo no mundo.