Não é possível mensurar a quantidade de certezas que as pessoas têm, mas que são baseadas em mentiras nos dias de hoje. Inclusive, penso que ao menos 50% dos relatos históricos que temos conhecimento, de uma forma ou de outra estão com informações falsas ou relativizadas. Quero compartilhar com você, caro leitor, uma experiência que aconteceu comigo dias atrás e que reflete diretamente isto.
Estou assistindo uma série chamada Yellowstone, que, em um resumo rápido, mostra o dia a dia de uma família proprietária de um rancho no Estado de Montana (EUA) absurdamente grande, segundo um personagem, seria do tamanho do Estado de Rhode Island (3.144 km²) e faz fronteira com uma terra índigena, o que gera diversos conflitos de ambas as partes.
A parte indígena da série apresenta uma forte militância política, chegando a classificar que estão sofrendo genocídio desde 1492 (data da chegada de Cristóvão Colombo nas Bahamas). Uma personagem indígena, começa a lecionar em uma universidade e, em sua aula, faz uma releitura histórica do diário de Colombo, abaixo vou transcrever as palavras exatas ditas na série:
“Quando Cristóvão Colombo entrou em contato pela primeira vez com os nativos americanos, foi com os Arawak, nas Bahamas. Vou ler do diário de Colombo: ‘intercambiaram voluntariamente tudo que possuíam. Não usam armas, não as conhecem, porque lhes mostrei uma espada, pegaram-na pela lâmina e se cortaram por ignorantes. Serão bons escravos. Com cinquenta homens poderíamos subjugá-los e fazer o que quisermos’”.
Impactante, não? Pois é, eu também fiquei chocado com o que ouvi. Porém, não acreditei nesta versão, por conhecer as intenções de Isabel de Castela, Rainha da Espanha e patrocinadora da empreitada. Imediatamente pus-me a buscar o diário e confrontar o que acabara de ouvir; Colombo escreveu o seu diário em forma narrativa para a Rainha ter conhecimento dos acontecimentos da viagem. Abaixo, vou colocar a transcrição do texto original traduzido para o português [1], os pontos em negritos, serão os citados na série:
Logo viram-se cercados por vários habitantes da ilha. O que se segue são palavras textuais do Almirante, em seu livro sobre a primeira viagem e descobrimento dessas índias: “Eu — diz ele —, porque nos demonstraram grande amizade, pois percebi que eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à nossa fé pelo amor e não pela força, dei a algumas delas uns gorros coloridos e umas miçangas que puseram no pescoço, além de outras coisas de pouco valor, o que lhes causou grande prazer e ficaram tão nossos amigos que era uma maravilha. Depois vieram nadando até os barcos dos navios onde estávamos, trazendo papagaios e fio de algodão em novelos e lanças e muitas outras coisas, que trocamos por coisas que tínhamos conosco, como miçangas e guizos. Enfim, tudo aceitavam e davam do que tinham com a maior boa vontade. Mas me pareceu que era gente que não possuía praticamente nada. Andavam nus como a mãe lhes deu à luz; inclusive as mulheres, embora só tenha visto uma robusta rapariga. E todos os que vi eram jovens, nenhum com mais de trinta anos de idade: muito bem-feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos, quase como o pêlo do rabo de cavalos, e curtos, caem por cima das sobrancelhas, menos uns fios na nuca que mantêm longos, sem nunca cortar. […] Não andam com armas, que nem conhecem, pois lhes mostrei espadas, que pegaram pelo fio e se cortaram por ignorância. Não têm nenhum ferro: as suas lanças são varas sem ferro […]. Todos, sem exceção, são de boa estatura, e fazem gesto bonito, elegantes. Vi alguns com marcas de ferida no corpo e, por gestos, perguntei o que era aquilo e eles, da mesma maneira, demonstraram que ali aparecia gente de outras ilhas das imediações com a intenção de capturá-los e então se defendiam. E eu achei e acho que aqui vêm procedentes da terra firme para levá-los para o cativeiro. Devem ser bons serviçais e habilidosos, pois noto que repetem logo o que a gente diz e creio que depressa se fariam cristãos; me pareceu que não tinham nenhuma religião.
Surpreendente, não? O que nos foi apresentado na série foi um pequeno trecho extraído, alterado e explanado fora de contexto. Os Espanhóis, como vimos no diário, tinham a intenção de pregação da fé Cristã e conversão de todos os povos, conforme pedido por Nosso Senhor Jesus Cristo em Marcos 16:15 (E disse-lhes: “Vão pelo mundo todo e preguem o evangelho a todas as pessoas.). Mais surpreendente ainda, é que o diário mostra que os nativos possuíam sim armas, porém eram rudimentares e, os nativos se cortaram com a espada por não a conhecer. O trecho que fala sobre a escravidão, demonstra claramente que os nativos tinham ferimentos e armas para se defender de outros nativos que vinham captura-los; O Almirante comenta que pela atitude e forma de interação dos nativos, eles pareciam aprender rápido e por isso seriam alvo de captores. A sua única intenção em cima deste comentário era de… catequizar e pregar o evangelho.
Agora, deixo a pergunta aqui aos caros leitores: quantas certezas que temos atualmente que são baseadas em mentiras ou desinformação? Quantas pessoas que assistiram esta série, acreditaram nesta versão e sairão a repetindo por anos, moldando um preconceito racial entre povos? Perceba que este discurso é utilizado no debate político de maneira profunda nos dias de hoje, não somente nos Estados Unidos da América, aqui mesmo no Brasil temos o importante debate a cerca do marco temporal de terras em debate no STF, que pode simplesmente acabar com o Agro como conhecemos e relativizar a propriedade privada.
Quantos jovens e até mesmo pessoas do judiciário não formam a sua visão de mundo, valores e definem juízo para uma sentença com base na influência de conteúdos como este? Por exemplo em São Paulo, no bairro de Higienópolis, estão colando nas placas das ruas que estão são terras indígenas invadidas:
Mais do que nunca, precisamos entender a origem das nossas ideias, saber se o que defendemos como valores absolutos não passam de uma manipulação emocional com fins revolucionários. Nem tudo que parece bonito e/ou impactante é verdade em si.
[1] Cristóvão Colombo, DIÁRIOS DA DESCOBERTA DA AMÉRICA AS QUATRO VIAGENS E O TESTAMENTO. Editora L&PM Pocket. Pág. 44, 45.