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Comportamento

Direita e Esquerda não existem mais?

“Jornal da Tarde”, São Paulo, 9 de junho de 1979

 

É corrente o uso dos vocábulos “direita” e “esquerda” para qualificar posições tomadas nos mais variados temas: basicamente em questões políticas, sociais ou econômicas, mas também em modos de sentir ou de ser, como ainda em literatura, em artes, etc. Um exame dos diversos significados desses termos faz ver, logo ao primeiro olhar, um tal caos, que, segundo muitos observadores, aqueles vocábulos perderam qualquer valor como rótulos qualificativos de atitudes ideológicas, culturais ou morais.

Sem embargo do talento, da cultura e da projeção publicitária de muitos dos que já há tempo assim pensam, “direita” e “esquerda” continuam entretanto palavras de uso corrente e, dir-se-ia, indispensáveis para quem proceda habitualmente a análises ideológicas.

Este fato parece demonstrar que, no âmago delas, há algo de substancioso e de autenticamente expressivo. Como até de insubstituível ao menos enquanto o uso comum não consagrar outros vocábulos que os substituam.

Tenho o propósito de analisar aqui esse “algo de substancioso”, para conferir com os leitores se meu modo de o sentir corresponde ao deles, ao do grande público enfim. Fá-lo-ei muito resumidamente, dadas as naturais limitações deste trabalho jornalístico.

* * *

Começo fazendo notar que no significado dessas duas palavras correlatas nem tudo é imprecisão. Nele há uma zona clara. Definida esta, será possível detectar, “de proche en proche”, o fio da meada que conduz, através dos significados menos claros, até uma elucidação final do que “direita” e “esquerda” querem dizer.

A zona clara está na palavra “esquerda”. Em face da trilogia da Revolução Francesa, ainda em nossos dias o consenso geral não hesita em qualificar de esquerdista perfeito e acabado quem se afirme a favor, não de uma liberdade, de uma igualdade e de uma fraternidade qualquer, mas da liberdade total, da igualdade total, e da fraternidade também total. De alguém que seja, em suma, um anarquista no sentido etimológico e radical da palavra (do grego “an”, privativo, e “arche”, governo), com ou sem conotação de violência ou terrorismo.

Os esquerdistas moderados qualificam de utópico (“infelizmente utópico”, costumam dizer) o sonho de seu correligionário integral. Nenhum deles negará, entretanto, a plena autenticidade esquerdista dessa utopia.

Em função desse marco de esquerdismo absoluto, é fácil discernir como dentro da escala esquerdista um programa, ou um método, pode ser qualificado de mais esquerdista, ou menos. Isto é, será tanto mais esquerdista, ou menos, quanto mais se aproxime ou se distancie do “an-arquismo” total.

Assim, por exemplo, o socialista é tanto mais esquerdista quanto mais efetiva e geral for a igualdade que reivindica. E será integralmente esquerdista o que reivindicar a igualdade total.

Análoga afirmação deve fazer-se em relação a outro “valor” da trilogia de 1789. Refiro-me em especial ao liberalismo político. Ele será tanto mais esquerdista quanto mais reclame a liberdade total.

Bem entendido, há certas contradições entre socialismo e liberalismo. E isto conduz a fáceis objeções contra o que acabo de afirmar. Assim, o totalitarismo econômico facilmente destrói a liberdade política. E reciprocamente. Mas esta contradição existe apenas nas etapas intermediárias que ainda não são o anarquismo total, se bem que predisponham para ele. Pois tanto se pode chegar a este último por uma liberdade absoluta, quanto e principalmente por uma igualdade absoluta. A liberdade absoluta propicia a ofensiva geral dos que são ou que têm menos, contra os que são ou têm mais. E, por sua vez, a igualdade completa importa na negação de toda autoridade e portanto de toda lei. Essas duas vias tão diferentes não são paralelas que [não] se encontram no infinito. Por mais contraditórias que sejam na prática do moderado quotidiano de hoje, convergem para o ponto final “an-árquico”, no qual uma e outra se encontram e se completam.

Assim, é certo que, segundo o consenso geral, o esquerdismo tem seu ponto ômega e sua escala de “valores” bem definida.

* * *

A questão consiste agora em saber se o tem, de modo correlato, a “direita”.

Aqui, a confusão é inegável. Sem que ela chegue, contudo, a cortar o fio condutor, o qual, analogamente ao que ocorre com a esquerda, conduz “de proche en proche” a uma classificação dos subtis matizes do direitismo.

As palavras “direita” e “esquerda” surgiram no vocabulário político, social e econômico da Europa do século XIX. O esquerdismo era uma participação ideológica no pensamento e na obra de algo ainda recente e bastante definido em suas linhas gerais, isto é, a Revolução Francesa. A esquerda não era só uma negação vulcânica de uma tradição que parecia morta, mas também e cada vez mais a afirmação de um futuro que se diria fatal. Em face da Revolução avassaladora, a direita só se definiu aos poucos, de modo tateante e contraditório (cfr. Michel Denis, “Les Royalistes de la Mayenne et le Monde Moderne”, Publications de l’Université de Haute-Bretagne, 1977).

A definir-se como um anti-esquerdismo, e “a fortiori” como um anti-anarquismo, o que teria de ser, em inteiro rigor de lógica, a direita?

Como já disse, está na essência do anarquismo total a afirmação de que toda e qualquer desigualdade é injusta. Assim, quanto menor a desigualdade, menor a injustiça. A liberdade é cara ao anarquismo, precisamente porque a autoridade é em si mesma uma negação da igualdade.

O direitismo afirma, pois, que, em si mesma, a desigualdade não é injusta. Que, em um universo no qual Deus criou desiguais todos os seres, inclusive e principalmente os homens, a injustiça é a imposição de uma ordem de coisas contrária a que Deus, por altíssimas razões, fez desigual (cfr. Mt. 25, 14-30; 1 Cor. 12, 28 a 31; S. Tomás, “Summa contra gentiles”, Livro III, Cap. LXXVII).

Assim, a justiça está na desigualdade.

Dessa verdade básica – convém lembrar de passagem – não se deduz que quanto maior for a desigualdade, mais perfeita é a justiça. Em matéria de esquerdismo, é lógica a afirmação antitética (quanto menor a desigualdade, menor a injustiça). É flagrante a assimetria entre a perspectiva esquerdista e a direitista.

Com efeito, Deus criou as desigualdades, não aterradoras e monstruosas, mas proporcionadas à natureza, ao bem-estar e ao progresso de cada ser, e adequadas à ordenação geral do universo. E tal é a desigualdade cristã.

Análogas considerações se poderiam fazer acerca da liberdade no universo e na sociedade.

Mas esse padrão de direitismo não é a desigualdade absoluta, simétrica e oposta à igualdade absoluta. É a desigualdade harmônica, convém insistir. Quanto mais uma doutrina for contrária à trilogia de 1789 e se aproximar desse padrão de desigualdades harmônicas e proporcionadas, tanto mais será direitista.

Nem sempre o entenderam assim os pensadores ou homens de ação que, erguendo-se no século XIX como no século XX, contra a Revolução, foram qualificados só por isto de direita.

Eles, ou os que os estudaram, imaginaram por vezes que o rótulo de direitismo podia justificar desigualdades abismáticas (políticas e sociais, porém, o mais das vezes econômicas). Como se nisto consistisse a ponta extrema da coerência direitista.

Outros “direitistas” fizeram por sua vez concessões ao espírito igualitário, porque estavam eles próprios infiltrados dos princípios revolucionários que combatiam. Ou ainda por tática política, isto é, para a conquista e conservação do poder. Haja vista o cunho socialista oficial do fascismo, e não só oficial, mas até marcantissimo, do nazismo.

Por tudo isto, o vocábulo “direita” não alcançou na linguagem corrente um sentido tão claro quanto “esquerda”, e tem servido para designar não só o verdadeiro direitismo de inspiração cristã, sacral, hierárquico e harmônico (cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, “Revolução e Contra-Revolução“, Boa Imprensa, Campos, 1959, p. 42), mas também “direitismos” modelados em parte por tradições cristãs, e em parte por princípios ideológicos (como também por experiências) peculiares.

Contudo, parece-me certo que, por mais importantes que tenham sido as notas socialistas de certas correntes ditas de direita, a linguagem corrente só as qualifica como direitas, imaginando ver nelas uma afinidade (maior ou menor) com o direitismo cristão ideal que acima descrevi. O qual, por uma tradição multissecular, está no conhecimento consciente ou subconsciente de todos.

Em síntese, à direita como à esquerda, no fim do horizonte há um marco definido, a partir do qual segue, “en degradé”, a gama dos matizes intermediários.

* * *

Falei em “sacral”. Sei que o termo entrou inopinadamente no artigo. É que o limite deste não me permite mostrar qual é, a meu ver, o papel central da Religião, na concepção direitista autêntica, que acabo de anunciar. E que, obviamente, é a minha concepção, como a da TFP.

Digo apenas, quase a título de “post-scriptum”, que direitismo laico ou ateu é absurdo, porque o universo e o homem são impensáveis sem Deus. O que não importa em que eu (e aqui alongo um pouco o “post-scriptum”), que me prezo de adepto, em tese, da união da Igreja com o Estado, a deseje para nossos dias “in concreto”: com o que me explico ante o lutador anticomunista valoroso, Lenildo Tabosa Pessoa, o qual, há dias, em larga entrevista ao “City News”, não interpretou bem o pensamento da TFP. Também sobre o particular, recomendo a leitura do meu citado ensaio, a quem deseje conhecer o pensamento da maior organização civil anticomunista do Brasil hodierno.

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