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Do humanismo contemporâneo e a farsa da paz perpétua.

Mas eu não sou capaz de as minhas dores contar, nem sou capaz de silenciá-las.
Por ter oferecido um dom aos homens, mísero sofro o jugo necessário.
Furtei e trouxe oculta numa férula a centelha do fogo que ensinou
as artes aos mortais e muitos bens enfim tornou possíveis. Eis o crime
pelo qual noite e dia sou punido, exposto às intempéries.
Ai de mim!”

(Ésquilo, Prometeu Acorrentado)¹

Em nossa contemporaneidade tecnológica, da magnanimidade humanista, nunca se falou tanto em liberdade. O homem, ser racional por excelência, nunca se auto afirmou tão livre das amarras das superstições e crendices tradicionais como neste século das descobertas sutis da nano e biotecnologia. Os debates acadêmicos que discorrem sobre a longevidade material, sobre a robótica e sobre como o homem domina perfeitamente processos sensíveis da natureza estão em grande profusão. Debate-se, com natural dificuldade, como podemos ter uma ética utilitária que dê conta das gigantescas demandas desse novo mundo da pós-verdade que nos traz uma nova perspectiva de como a humanidade pode, com essa espécie de idealismo, superar-se e superar-se. Como pode, a grosso modo, pagar as contas do genocídio sangrento e demoníaco do século XX.

O mundo liberal e secular pós segunda-guerra, baseado no conceito de paz perpétua de Kant e centralizado nas Nações Unidas e em sua Declaração dos Direitos Humanos – que substitui os Mandamentos da Lei de Deus para os novos Mandamentos da Lei do Homem –, sistematizou, em nome do racionalismo, o passo-a-passo do caminho à felicidade terrena. Se analisarmos com devido detalhe os documentos oficiais desses grandes conglomerados ficamos maravilhados com tamanha assertividade dessa elite iluminada que nos promete a libertação absoluta da opressão religiosa e da espiritualidade monoteísta. Ai de São João Batista! O novo batismo não é mais o encontro da natureza com a Graça, tal como nos ensinou S. Tomás de Aquino, mas sim a superação do antigo homem alienado com essa mera crendice com o novo homem contemporâneo e liberto, o Prometeu.

Esse novo deus-Homem tem, por obrigação moral, “catequizar” os ignorantes e trazê-los para esse novo mundo e, por conseguinte, livrar-se dos réprobos hereges que negam-se à participar da nova Igreja da Humanidade. Igreja essa construída sob a junção do núcleo comum de todas às heterodoxias históricas. O que anteriormente havia sido superado e condenado pela Doutrina Católica, retorna agora com o disfarce belíssimo de tolerância e paz numa síntese única: A Religião do Homem. A união entre o materialismo ocidental contemporâneo e toda sorte de espiritualidade subjetiva oriental. A nanotecnologia com a bênção sacerdotal da New Age. Mammon e Lúcifer. O poderio econômico material e ailuminação para uma nova era de paz e prazeres mundanos.

Os cristãos, subjugados pelo liberalismo maçônico, pelo cientificismo academicista, pelo Islam e a Teoria Crítica frankfurtiana dos neomarxistas alemães que refugiaram-se com todo conforto nos EUA no último século, desarmados cultural e doutrinariamente, reféns de um moralismo ainda mais opressivo de que foram acusados historicamente, sem nenhuma outra escolha, optaram por fazer parte dessa engrenagem rumo ao novo mundo.

Alguns contra sua própria vontade, outros rendidos, outros inebriados pelos prazeres
mundanos da apostasia, cada facção à sua forma, curvam-se aos Profetas da Nova Era
assim como o cadáver nas mãos de seu limpador. Aceitam o novo ecumenismo global, a teologia da libertação e todo humanismo por conta de não terem mais os reais
significados dos sacramentos e da verdadeira vida ascética. Substituíram Cristo e os Apóstolos por David Rockefeller e seu lobby. Substituíram o Corpo Místico pelo Clube Bilderberg. O novo clero espalhado por todo globo são as novas ONGs ligadas à ONU e aos conglomerados mundialistas.

Os mais reacionários e tradicionalistas, que de fato defendem a Sã Doutrina e a Tradição, não raras vezes fecham-se em seus guetos e suas bolhas, sem nenhuma perspectiva de ação social e cultural. Têm como respostas nada efetivas o denuncismo grosseiro e condenações morais ao próximo que mais aliviam seu psicológico completamente destruído pela revolução do que a busca de conversão de almas pelo bom e piedoso apostolado. Fazem condenações acertadíssimas sobre o mal e o erro das democracias liberais como fundamento dos governos modernos apesar de terem de sobreviver nessas mesmas democracias reais e históricas. Muitos, inclusive, levados ao extremo desespero, vivem atualmente como se cátaros fossem, ou seja, de negação em negação.

O dito ocidente cristão que nossos conservadores – mesmo muito bem intencionados – dizem querer salvar através do mundo democrático, soberano e bilateral, tomando a religiosidade e a tradição como meras utilidades temporais e funcionais, pelo que assistimos através dessa substituição da alma humana pela robótica e pelo falso espiritualismo, só existe como nostalgia. Como uma conversa que temos com amigos de infância que encontramos após alguns anos e relembramos como “nosso tempo” era bom e melhor que o atual. Como tudo era mais leve, mais tranquilo e como nós podíamos falar em amor, em caridade e amizade. Não, o mundo das massas não permite tais alienações!

Todos esses conceitos, antes muito bem delineados pelos Santos, Doutores e Místicos da Igreja, foram reduzidos ao mero gosto do freguês. Ao relativismo pueril que, quando aplicado em todas às suas circunstâncias, transmuta-se num absolutismo infernal.

A juventude que outrora buscava suas vocações em Deus e buscava compreendê-lo, deseja, ao acreditar nessa liberdade sacra do humanismo, deificar-se atomisticamente em seu individualismo emancipatório ou em seus grupos militantes.

Como dito anteriormente, nunca se falou tanto em liberdade como nos dias atuais. Os governos constitucionais nascem prometendo que todo homem nasce livre e deve permanecer-se nesse estado em toda sua vida. Deve buscar-se a felicidade mundana no aqui e agora sem nenhuma trava e sem nenhuma amarra. Deus é o homem e o homem é Deus. Ora espiritualmente ora materialmente. Pelo panteísmo ou pelo gnosticismo. Misticismo diluído nas instituições democráticas modernas. A mescla entre autoridade espiritual e poder temporal, virando as costas para o ensinamento magno de São Paulo Apóstolo em sua Epístola aos Romanos. Contudo, como nos ensina Bertrand de Jouvenel², a história dos regimes modernos é a história do poder. E complementa o Dr. Ives Grandra da Silva Martins³ em sua tese dos paradoxos: quanto mais promete-se garantias às ditas liberdades através de leis constitucionais, mais as primeiras são tolhidas e as segundas tornam-se, naturalmente, mecanismos de expansão de poder anticonstitucionais.

Quanto mais liberdade os governantes modernos prometem, mais poder concentram em suas mãos para garantir direitos nominais. E todo direito nominal, como bem diz Olavo de Carvalho, expressa um ideal a ser alcançado, não uma realidade concreta. Lembra-nos: se o Código Penal fosse seguido literalmente, não precisaria sequer estar escrito. Portanto, o Código Penal existe exatamente porque não é seguido. Assim como boa parte dos direitos nominais que nasceram para suprir os anseios daqueles que clamam dia e noite por liberdade jurídica.

Era praticamente impensável para um homem medieval pensar que um governante central teria acesso à toda sua vida com apenas uma rápida pesquisa em seu sistema. E o pior: que teria esse poder prometendo libertá-lo da opressão. Seria, no mínimo, um caso clínico ou um caso de boas piadas. Entretanto, esse estado de coisas é a nossa contemporaneidade.

Para cegarem toda juventude e toda resistência possível, transformam, mediante à militância cultural e todos os seus meios culturais, os jovens em adultos, adultos em jovens, mulheres em homens, homens em mulheres, num outro momento, negam todos esses papéis pois são opressores e precisamos nos libertar desse dogmatismo social, etc.

Uma verdadeira loucura e estímulos contraditórios que destroem qualquer inteligência saudável. Ora, o emburrecimento em massa é mister para os líderes dos processos revolucionários. Lembremo-nos que o desarmamento não é apenas físico, mas começa por ser espiritual e intelectual.

Vê-se que o humanismo contemporâneo, tão romantizado pelas elites financeiras e culturais pós-modernas, é facilmente entendido como a destruição mesma do ser humano enquanto ser. Ao postularem que no princípio não era o Verbo mas o próprio Homem e que o fim último não é a bem-aventurança mas novamente o Homem, reduziram-no ao mais completo servilismo. Pois para alcançarem tal empresa foi preciso que alguns homens tivessem uma autoridade ainda maior sobre os outros que nem mesmo qualquer autoridade eclesiástica sonhou em obter. Alguém acredita que um Bispo local possui mais autoridade opressiva que a Rede Globo de Televisão? Que os programas subversivos à família e à inteligência natural financiados em massa pelo lobby Rothschild? Que as cartilhas revolucionárias financiadas pela Open Society Foundation ou pela Ford Foundation? Que o abortismo global financiado por esses mesmos conglomerados? Masé evidente que para os nossos tolerantes toda manifestação pró-vida, por exemplo, não passa de um fundamentalismo religioso ressentido que deve ser calado imediatamente para não atrapalhar a busca do mundo racionalista e perfeitíssimo.

O mesmo jovem que acreditou que participaria desse mundo da pós-verdade em toda sua substancialidade e liberdade, vê-se escravizado nas drogas, no sex lib, no individualismo, no indiferentismo e busca, através de medidas paliativas, construir algum sentido. Toma seus rótulos sentimentais e subjetivos como ponta de lança. Afirma-se comunista, liberal, conservador, pragmatista, whatever. Usa-os como se estivesse armado de um completo sentido pois está militando por um mundo melhor dentro das perspectivas de sua ideologia de mundo, seja ela qual for e seja qual discurso for. Eis o paradoxo: quanto mais liberdade buscou mais escravizado encontrou-se. Por que será? O que deu errado nesse processo sacrossanto dessa busca incessante pela absorção da Cidade de Deus na Cidade dos Homens?

É claro que toda promessa desse humanismo nanotecnológico e da paz perpétua espiritualista é uma farsa grosseira. Tão grosseira que quando conseguimos apreender o essencial da ação revolucionárias nossos olhos realmente se abrem. Mas não como está na narrativa do Genesis bíblico (3,5), mas à Verdade viva que sempre foi e sempre será a mesma. Não seremos como deuses, mas fomos feitos à imagem e tornamo-nos semelhantes de Deus mediante os sacramentos. Sto. Tomás de Aquino ensinava-nos que, nesse sentido, temos amicitia (amizade) com Deus. Entretanto os revolucionários nos fizeram acreditar que não há amizade, não há caridade, não há Graça, nem sequer há uma verdade. O que há são prazeres dispersos, enganos acidentais e alguns momentos de alegria que devem ser aproveitados incessantemente na falsa busca pelo carpe diem.

Com efeito, “Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa e pelo Evangelho salvá-la-á!” (Marcos 8,35). O magnânimo ensino de Jesus no Evangelho, nos dias atuais, é visto como a maior das opressões. Mas quem dirá que, ao ser bem analisado, o novo Império de César não é infinitamente enganoso e ele sim opressivo? Que não estamos novamente diante da ação da língua bifurcada da Serpente que seduz o homem a comer do fruto proibido?

A narrativa do Genesis não fecha-se apenas na apreensão da gnosis do bem e do mal, mas sim em determina-los. Determinar o bem e o mal. Libertar-se das amarras da divindade num certo aspecto e, num outro, ser como a divindade. Ora, não foi o que vimos fazer um Stálin? Um Pol-pot? Um Mao Dzedong? Um Hitler? Uma Margareth Sanger e sua filosofia abortista? Agora os iluminados transumanistas?

Determinar o bem e o mal e àqueles que podem gozar do novo humanismo e da paz perpétua.

Engana-se quem quer e salve-se quem puder!

São Carlos, 21 de Fevereiro de 2021.

¹ Prometeu, A Religião do Homem (Pe. Álvaro Calderón, FSSPX)
² O Poder (Betrand de Jouvenel)
³ A Era das Contradições (Dr. Ives Gandra da Silva Martins)

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