PHVOX – Análises geopolíticas e Formação
Allan Ouverney

Engano: “o humilde parasita da ingenuidade”

Iniciei a vida intelectual, por assim dizer, um pouco tarde. A vontade de aprender algo além das disciplinas da escola (meu Deus, que chatice) não aconteceu quando pequeno, no lar, mas na fase adulta. Somente aos 25 anos que comecei a fazer da leitura uma rotina. Quem começou a ler tardiamente entende perfeitamente o quanto é difícil manter a concentração, parece que há saltos de mais de 10 linhas em que não se sabe o que estava escrito na primeira, obrigando a ler tudo novamente. Sortudos são aqueles que ganharam o hábito de ler ainda jovens (digo ganhar, pois é um excelente presente que os pais podem “dar” aos filhos), pois não lidaram sozinhos com o problema de atenção e com a lenta cadência de leitura, além do pobre vocabulário que exige constantes consultas ao dicionário. Vencidas tais etapas, resta superar o pior e mais complexo obstáculo: o que ler?! Falarei um pouco do perigo de ler os autores errados usando o exemplo de Rousseau.

Para quem acha que a principal função da leitura é entretenimento com o benefício do desenvolvimento da linguagem, ou acredita que adquirir cultura é aprender qualquer coisa que seja assim chamada, jogue agora seu ponto de vista na lata do lixo, porque, dependendo do que se lê, é melhor “arrancar os olhos e lançá-los fora” antes que as coisas assumam uma rota pedregosa.

Compreender a função da leitura não é intuitivo ou evidente e, mesmo assim, é a etapa mais importante da formação pessoal, pois a leitura pode abrir o caminho para uma vida santa ou fechar a alma. O poder intelectual, que segundo o Professor Olavo é a espécie de poder mais efetiva em termos de êxito e de permanência temporal, finca raízes muito profundas, devendo, portanto, ser tratado com muita atenção.

Há, por assim dizer, a literatura e a filosofia, sendo aquela responsável pela formação do imaginário, isto é, mostrar o possível usando artifícios que suspendem nossas descrenças, que também podem ser chamadas de filtros cognitivos contra as absurdidades, e preparam a mente e o coração para novas paisagens; enquanto esta, a filosofia, se encarrega de perfurar as torrentes de narrativas, colocando os pés do leitor no chão ao rasgar um pequeno pedaço do véu que encobre a realidade. A filosofia permite enxergar, de canto de olho, o mundo despido dos fantasmas e fanfarronices.

Porém, as coisas nunca são simples, e quem lida de forma irresponsável com as ideias que lhe chegam, paga um alto preço, pois a literatura se mistura com a filosofia e a filosofia enamora a ideologia, o que causa uma confusão dos diabos. Ler Rousseau, por exemplo, considerado grande filósofo e pedagogo, um querido das universidades brasileiras, referência nos cursos de licenciatura e de pedagogia, pode cair em enorme erro.

O mencionado autor suíço há mais de 300 anos (isso mesmo, trezentos) influencia povos inteiros e alcança quem sequer o leu, pois seus pensamentos parecem estar misturados nas moléculas de ar que se respira, uma toxina que que o brasileiro se acostumou a viver com ela. Pertence a ele o mérito da consolidação do mito do “bom selvagem”, que diz que o homem é bonzinho, sendo a sociedade perversa que o degenera. Essa ideia tola é senso comum em quase todos os ambientes e as consequências inexoravelmente levam à conclusão de que a família, primeira forma de sociedade que se tem contato, subverte virtudes natas desde a mais tenra idade. Ademais, trata de sorrateiro confronto com a doutrina milenar da igreja sobre o pecado original, uma vez que transfere a responsabilidade dos atos e intenções falhos para terceiros, relativiza a necessidade de autovigilância, instaura a rebeldia contra o mundo e infla o ego com qualidades que não se tem.

É deste autor também a chamada teoria da vontade geral, ideia nucleada na distinção entre o indivíduo e o cidadão, um ensaio que sugere a existência de uma cisão de entes em uma só pessoa, quando o indivíduo deixa o então chamado estado natural e ingressa no estado civil. Rousseau insinua que o indivíduo, enquanto tal, possui basicamente interesses privados, que não busca outra coisa senão saciar o impulso físico e os apetites, sendo forçado a se submeter, através do pacto social, à soberania da vontade geral, única possibilidade de dirigir as forças do estado. É uma criação fantasiosa da eterna tensão entre o interesse particular e a dita vontade geral, em que esta última, ainda segundo o escritor suíço, não é necessariamente a vontade de todos. Tal pensamento serve de fundamento para justificar a supremacia do coletivismo sobre o indivíduo, uma peça ficcional usada até hoje em movimentos que atropelam qualquer pessoa que ouse discordar das massas (ou melhor, de quem diz ser o representante da vontade geral), esmagando as manifestações e direitos individuais desenvolvidos ao longo de séculos.

Retornando ao assunto depois desse giro, a maldade engendrada por mentes habilidosas cria discípulos, dos quais muitos não têm noção no que estão se envolvendo. Por isso, a busca da verdade por meio da leitura organizada e disciplinada é um caminho muito precioso e desenvolve uma vida intelectual sadia, essencial para quem deseja dirigir a própria vida e evitar o engano, “o humilde parasita da ingenuidade”, segundo palavras de Ortega y Gasset. Saber, portanto, quem ler é mais complexo do que se imagina, sendo a reiterada postura irresponsável o mecanismo para o crescimento do barbarismo contemporâneo, muito diferente daquele do século V, cuja substância é formada por uma massa ocupante das altas e baixas classes sociais, as quais foram instruídas no que é vil, que corrompeu o próprio destino e fechou a alma para Deus.

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