Originalmente publicado no MSM 18 de junho de 2005

Alguém já definiu um “problema social” como uma situação na qual o mundo real difere das teorias dos intelectuais. Para estes – a inteligentzia – segue-se, como ao dia se segue a noite, que é o mundo real que está errado e precisa ser mudado.

Thomas Sowell

Na primeira página da edição do dia 3/6 passado, O Globo estampou a foto de um policial aparentemente dando um chute na cara de um bandido deitado no chão e algemado e fez um grande estardalhaço sobre a “violência policial”, um dos temas preferidos do jornal. Soube-se depois que o policial, como é praxe, dera ordem aos bandidos de não olharem um para o outro já que assim trocam senhas e códigos entre si e que irritado com o não cumprimento da ordem ameaçou o chute. Na foto não havia contato entre o pé e o rosto. E também no exame de corpo de delito não havia sinais desta agressão no rosto do meliante. Provavelmente porque coturno de policial deve ser delicado como sapatilha de ballet!

No dia seguinte o jornal, ressabiado, dizia que tinha recebido inúmeras cartas apoiando – imaginem a audácia! – o policial! Fui à seção de cartas e me surpreendeu o fato de que cem por cento das cartas eram de indignação com a exploração sensacionalista do fato feita pelo jornal. A grande maioria, de uma população revoltada com a bandidagem à solta, dizia que bandido tinha que ser tratado assim mesmo, nada de moleza e criticando O Globo por ter dado poucas palavrinhas ao motivo da prisão: os larápios tinham assaltado um pacato cidadão de bem e levado celular, relógio, dinheiro, etc., agindo de forma violenta contra o mesmo, fato aliás que já se tornou corriqueiro aqui no Rio.

No dia seguinte (5/6) de 33 cartas, 25 eram do mesmo teor, e as demais de pessoas indignadas elogiando O Globo por denunciar mais este crime contra os “direitos humanos”.

Mas já no dia 4 o jornal, surpreendido pela reação dos leitores, trazia na primeira página e em destaque na central onde constava a reportagem inteira, que a população tinha se manifestado desta forma porque não enxergava realmente as causas da criminalidade, mas que “especialistas em direitos humanos” consultados se manifestaram contrariamente, dando as mais estapafúrdias explicações para a reação popular.

Especialista em direitos humanos! E que raios vem a ser isto, porca miséria? Conheço várias especialidades médicas, jurídicas, de engenharia, militares, etc. Esta é uma especialidade de que carreira? Inicialmente pensei em uma nova especialidade jurídica, já que fala em direitos, mas então deveria haver outros direitos, não-humanos. Não fazia sentido! No entanto, pelas pessoas citadas percebe-se que nada há de jurídico, pois além do indefectível Presidente de plantão da OAB-Rio, a lista tinha sociólogos, psicólogos, psicanalistas, a representante de uma ONG que defende terroristas assassinos (tortura nunca mais).

Lembro de um restaurante na minha cidade natal que tinha em letras garrafais no frontispício: especialidades em geral! Ah, deve ser isto, especialistas em generalidades – ou o contrário, sei lá!. Como diz Sowell frente ao irritante mundo real que teima em ser do contra, o jornal, como os participantes do Programa Sílvio Santos, pediu ajuda aos universitários. Aliás, nem sei se pediu porque este pessoal é tão monotonamente repetitivo que basta manter uma declaração escrita e adaptá-la a cada caso.

Mais uma expressão para o Dicionário de Novilíngua (Newspeak), “Especialista em Direitos Humanos”. Certamente entrará na mesma categoria em que se encontram social, intelectuais, artistas, ciências sociais, etc. Estas palavras foram aos poucos mudando de sentido ao longo da segunda metade do século passado através da inoculação de novos significados, com a finalidade de esvaziá-las e colocar qualquer coisa no conceito tradicional, considerado ultrapassado. Tomemos o exemplo de ciências sociais.

Nos meus tempos de estudante tínhamos duas disciplinas: ciências naturais e estudos sociais. Aos poucos a palavra ciência foi se enfiando também na segunda expressão. A finalidade foi dar falsamente o aval do rigor científico das ciências físicas a estudos nos quais ele nada tem a fazer pois existem diferenças metodológicas fundamentais. Num segundo passo foram utilizadas duas teorias científicas específicas – as teorias da relatividade de Einstein e o princípio da indeterminação de Heisenberg – para, introduzindo-as nos estudos sociais – já agora com falso status de ciência – explodir velhos e consagrados conceitos. Ora, se um povo é o que pensa e fala, deturpando-se a linguagem o caminho fica aberto para a deturpação dos costumes, da moral, de tudo o mais. E esta revolução veio a galope.

Os franceses (Lacan, Latour, Baudrillard, Deleuze, etc.), mestres em dizer coisa nenhuma de forma empolada e hermética, foram expostos magistralmente por Alan Sokal e Jean Bricmont em seu Impostures Intellectuelles. Mas não só de franceses vivem as falcatruas! A obra de Thomas Kuhn The Structure of Scientific Revolutions facilitou a introdução de uma igualdade inexistente entre revolução científica e revoluções sociais, dando a estas últimas um caráter científico e evolutivo que as teses de Marx já não mais sustentavam pelo seu conteúdo de charlatanismo explícito.

Bem instalado o relativismo cognitivo, passou-se rapidamente ao moral. Entenda-se por relativismo aqui, todo corpo de idéias que pretenda que a validade de uma afirmação seja relativa a um indivíduo e/ou a um grupo social. Não sei se os leitores já notaram que o argumento decisivo em qualquer discussão no Brasil é o “eu não acho!”, que pode ser seguido de “tenho minha verdade e meu ‘espaço’ – seja lá o que isto for! – que devem ser respeitados!” Como há uma concordância tácita entre todos fica um bando de ignorantes falando sobre coisas das quais não entendem com uma empáfia invejável!

O campo social dividiu-se, grosseiramente, em três: de um lado, o povo que ainda tenta pensar de forma tradicional, nada entende dessas elucubrações mas acaba sucumbindo pela importância que dá ao rótulo de ciência; no outro extremo a inteligentzia, a autonomeada elite intelectual bem pensante, os intelectuais ativistas, um grupo homogêneo preparado para a produção de trabalhos orgânicos de conjunto que, de caso pensado, vão promovendo estas mudanças. Entre estes dois grupos fica o beautiful people– socialites, cantores, modelos, craques de futebol, malhadores de academia, atores e atrizes globais – que em sua grande maioria também não entende nada disso mas que acham lindo repetir à exaustão frases cujo significado são incapazes de apreender mas que partindo dos “intelectuais ativistas”, que supostamente entendem “cientificamente” das coisas, devem ser repetidas para assumir um ar de entendido(a). E como a opinião pública vai sendo moldada por estas personalidades supérfluas e vazias, os “formadores de opinião”, meros veículos através dos quais atuam os intelectuais ativistas, os conceitos vão mudando no sentido do relativismo que é o único refúgio que lhes resta para esconder sua vacuidade. Já viram uma atriz global emitindo opinião sobre um tema intelectual qualquer? Feita a pergunta, assume um ar de grande seriedade, revira os olhos e dispara um amontoado de frases feitas, um verdadeiro pout pourri de platitudes e non sense que encontra eco nos entrevistadores, pois estes nada mais são do que coleguinhas nesta categoria de imbecilóides tagarelas.

Esta é a gênese teórica dos tais “especialistas em direitos humanos”. Mas há uma outra, prática, específica para o caso focado, que ocorreu paralelamente. Pode ser resumida na perversão sistemática de três conceitos para que se produzisse, ao longo do tempo, o efeito desejado na população, nas autoridades, nas universidades, nos consultórios psicológicos, e – o mais importante de todos – nas escolas primárias. Primeiro, polícia não presta, é constituída de assassinos truculentos cujo único propósito é torturar e matar. Segundo, bandido é bom, são apenas vítimas da violência policial e da sociedade em geral. Terceiro, foi preciso aprofundar este último inoculando a culpa pela criminalidade em cada uma das vítimas da bandidagem, a tal ponto que as pessoas não mais reajam indignadas mas pelo contrário, respondam automaticamente com um sentimento de culpa pelas “desigualdades sociais” que “causam” a bandidagem. Se a sociedade fosse mais justa não haveria bandidos, então é preciso eliminar as desigualdades para atingir a “justiça social” que transformará o planeta num paraíso! Criou-se um ciclo infernal no qual as pessoas se sentem culpadas por pagar seus protetores – a polícia – porque esta é descrita como instrumento de manutenção da ordem social injusta. Deste modo a sociedade volta-se contra aqueles que devem, podem e tentam protegê-la, evidentemente com as conhecidas exceções, criando maior violência pela arrogância dos bandidos protegidos pelos “direitos humanos” e a crescente perda de motivação por parte dos primeiros e isto serve para apontar mais defeitos, num ciclo que nunca termina. Chegou-se ao ponto de aprovar “leis que criminalizam a polícia e protegem os bandidos. Leis que desarmam os homens honestos e dão aos delinqüentes o monopólio do uso da força” (Olavo de Carvalho”).

Está pronto o cenário para entender o que se passou com aquela reportagem. Os cidadãos comuns, espezinhados diariamente pelos meliantes e depreciados pela mídia, manifestaram suas revoltas pela exploração absurda de um ato de exercício de legítima autoridade, tendo alguns até elogiado a ação dos policiais. Mas isto porque desconhecem as razões “científicas” da criminalidade. Mas, os “especialistas” felizmente esclareceram as coisas “cientificamente”: cidadão de bem é explorador pertencente às classes dominantes; ladrões e assassinos são excluídos, vítimas da exploração; policiais, assim como militares, são agentes do aparelho de Estado com o qual os últimos exploram e oprimem os primeiros!

Ah, bom, eu só queria entender! Como é belo o saber “científico”!