PHVOX – Análises geopolíticas e Formação
Allan Ouverney

Liberdade não é um instinto, é um valor

“Liberdade não é um instinto, é um valor”, disse Dennis Prager no episódio nº 250 do programa fireside chats. Ele dizia que desde a antiguidade, o sentimento de liberdade não faz parte da nossa natureza e relembra os textos do Antigo Testamento para demonstrar a certeza da sua opinião. No livro de Números (14), existe uma passagem que descreve os israelitas chorando para voltar para o Egito, onde eram escravizados. Aquele povo, por medo e insegurança sobre o que o futuro lhes reservava, queria um novo líder que os levassem de volta à escravidão.

As coisas não mudaram desde aqueles tempos, contudo a diferença repousa na peculiaridade de que os cativos de outrora sabiam de sua condição, enquanto que os de hoje perderam tal compreensão. O cativeiro está diferente e o significado dado a certos valores dificultam o entendimento, sendo por isso tão comuns as comemorações de atos chamados de libertadores que não passam de um estilo de vida que aprisiona.

Embora liberdade seja uma palavra muito repetida, trata de um vocábulo sinuoso, usado em discursos ideologicamente incompatíveis, parte indispensável da retórica do conservador e do abortista, do liberal e do ditador. A chave para desvendar o enigma está  no significado atribuído a ela.

Muitos entendem que a autonomia irrestrita da vontade é o maior bem que alguém pode possuir. Não restam dúvidas sobre a importância do direito de escolha, de fazer o que deseja. Manter e ampliar tal estado de coisas é dever de todos. Contudo, também é urgente desenvolver a bússola interna, a fim de evitar a falta de rumo, a desorientação que leva ao naufrágio intelectual. Imagina se permitíssemos dar vazão a todos os impulsos, fundamentando tudo numa concepção mal formada de liberdade, as consequências seriam desastrosas e muitas irreversíveis. É exatamente a atual ideia que se tem de liberdade.

Por menos agradável que seja e por mais sacrificante que inicialmente pareça, refrear certas paixões gera liberdade. Coloque-se, por um momento, no lugar do homem que não respeita a si próprio, deixando-se levar pelos vícios, é certo que sofrerá a opressão do corpo adoecido ou o afastamento das pessoas socialmente sadias. Tal escolha sujeita o homem a uma vida presa em determinado círculo de relacionamento ou numa rotina desgastante de perturbações físicas ou psicológicas. A mulher, por exemplo, que rejeita a vida no ventre desiste do mais nobre sentimento, o amor materno, e recebe o remorso como tributo. Tais exemplos não parecem decisões que libertam, mas sim restrição, redução de opções.

Assim, essa polissêmica palavra, liberdade, é confundida com livre-arbítrio, coisa muito diferente para os autores clássicos. Liberdade é colocar a rota da vida em direção da verdade, é buscar Deus por meio do desenvolvimento das virtudes. Essa era perspectiva de Santo Agostinho, uma visão que busca o exercício de manter-se livre do erro, do pecado, de escolher o bem. E quando o bem é escolhido, recebe-se com ele a verdade, que são, por assim dizer, um composto indissolúvel.

“A verdade aproxima-se dos que a amam, dos que a acolhem, e esse amor não existe sem virtude [..] o verdadeiro brota no mesmo terreno que o bem; suas raízes comunicam-se […] Praticando a verdade que conhecemos, merecemos a que ignoramos. Merecemo-la perante Deus; merecemo-la também por um mérito que coroa a si mesmo, pois todas as verdades relacionam-se umas com as outras […]  Se embarco num afluente, chegarei ao rio, e daí ao mar.” [1](Sertilanges, p.38)

Tenho que concordar com o senhor Prager quando diz que liberdade não é instintivo no ser humano, é um valor a ser trabalhado que requer a correta percepção do que representa e exige sacrifícios. Aquele que a considera como a autonomia irrestrita da vontade não passa de um iludido que marcha aceleradamente para a insanidade. Afinal de contas, o que é “liberdade sem sabedoria e sem virtude? É o maior de todos os males possíveis; pois é disparate, vício e loucura, sem tutela nem restrição.”[2]

[1] Antonin-Dalmace Sertillanges. A vida intelectual, p. 38.

[2] Edmund Burke. Reflexões sobre a revolução na França, p. 356.

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