“Porém daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas unicamente meu Pai.”
Evangelho de São Mateus 24,36

O prof. Orlando Fedeli, inspirado em Ladislao Mittner, dizia que a gnose é um fenômeno do tipo cársico, isto é, aquele que aparece e desaparece, tornando-se ora visível ora oculto em seu percurso. Descrição pertinente quando tratamos dos problemas do milenarismo e do historicismo, que, por serem inspirados nas concepções gnósticas, contém a mesma estrutura. Além disso, aparecem de diversas formas, dos Padres e intelectuais mais piedosos aos mais perversos. Ora como erro material, ora como planos determinados e formais.

O próprio Redentor, sendo o Logos Divino Encarnado, no Evangelho de S. Mateus 24,36 já fulminava a concepção milenarista da história, assim como S. João quando escreveu seu Apocalipse no final do primeiro século, seguia o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo ao propugnar que o fim último do homem é transcendente e que o Reino de Cristo não é deste mundo (Jo 18,36). Com efeito, o milênio de que falava S. João no Apocalipse não deve ser interpretado literal e imanente, pois trata-se de uma heresia sobretudo já condenada (Denzinger, 2296).

Assim como o rio cársico, o milenarismo reaparece no seio cristão nascente, com Papias de Hierápolis, discípulo do próprio S. João que já superara a questão milenarista com verdade e clareza. Papias interpretara que haveria um Reino milenar imanente de Cristo junto aos eleitos que precederia o fim do mundo. A influência do Bispo de Hierápolis foi tão grande, que praticamente todos os primeiros Pais da Igreja aceitaram com docilidade suas interpretações do Apocalipse, como o próprio Santo Irineu de Lyon que, condenando a falsa gnose em seu Adversus Haereses, também seguiu-se “ao lado” de Papias em seu milenarismo cristão.

S. Agostinho – que em uma determinada época seguiu o erro milenarista – em sua magna obra De Civitas Dei, termina por expressar enfaticamente que o milenarismo trata-se de “fábulas ridículas”. Supera argumentando acerca da imortalidade da alma e seu devido fim. Por conta da enorme autoridade de S. Agostinho, o milenarismo papisiano entrou em decadência e aos poucos foi desaparecendo de circulação cultural.

Contudo, lembremo-nos da estrutura cársica da gnose!

JOAQUIM DE FIORE, MILENARISMO E HISTORICISMO

O abade cisterciense Joaquim de Fiore (1135-1202), defendia a tese milenarista e historicista de que o mundo dividia-se em três idades: a Idade do Pai (Antigo Testamento), a Idade do Filho (Novo Testamento) e a Idade do Espírito Santo (O Milênio).

Com esta tripartição, viria Joaquim de Fiore a fundar as triplas divisões históricas que influenciaram essencialmente às ideologias secularistas e modernas, a saber: o comunismo com as suas três etapas (comunismo primitivo, luta de classes e dissolução das classes no comunismo); o nacional-socialismo com o Terceiro Reino de Mil Anos; o liberalismo com a superação do Império, Estados-nação e a culminação da República Universal; a historiografia moderna (Idade Antiga, Média e Moderna); a Rússia com a concepção da Nova Roma, etc. etc.

Devemos reparar que no esquema de Fiore e de todas as suas influências, segue-se uma espécie de “esvaziamento” histórico para o advento a posteriori de uma nova ordem.

Explica-nos Eric Voegelin em dois relevantes trechos de sua obra “História das Idéias Políticas Vol II. – Idade Média até Tomás de Aquino”, sendo o primeiro:

“A experiência revelatória de Joaquim foi necessária para acionar as potencialidades deste campo de sentimentos e criar uma nova configuração da história cristã. O passo decisivo foi a concepção do Terceiro Reino, não como um Sabbath eterno, mas como a idade derradeira da história da humanidade que se segue à dispensação do Filho. A civilização ocidental alcança neste processo a idéia de um futuro significativo neste mundo. A história da humanidade é uma progressão de evolução espiritual desde a lei natural pré-mosaica, passando pelas leis mosaicas e do Evangelho, até alcançar a plenitude da liberdade espiritual.

O decurso da história se articula nos três reinos das três reino das três pessoas divinas e, uma vez que a estrutura interna é idêntica nos três períodos, a completude do Primeiro Reino fornece o padrão pelo qual compreendemos a estrutura do Segundo Reino, aproximando-se da realização plena. Podemos determinar, em termos rigorosos, o ponto alcançado no presente porque conhecemos a lei que preside todo o decurso e podemos, inclusive, prever eventos futuros.

O decurso de um reino abrange um período preparatório (de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio (Abraão a Uzias, 21 gerações) e pela fructificatio (Uzias a Zacarias, 21 gerações), a última das quais é, ao mesmo tempo, o período preparatório para o próximo reino. Os reinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração das gerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o Segundo Reino terminaria em 1260. A data é antecipada para 1200 porque o Segundo Reino é precedido por um curto período preparatório das duas gerações precursoras, de Zacarias e João Batista, de modo que Joaquim está no final do Segundo Reino e pode ser o profeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcado por uma trindade de dirigentes, dois precursores e o dirigente do próprio reino com os seus doze filhos (Abraão, Isaac e Jacó com os seus doze filhos carnais; Zacarias, João Batista e Cristo, o homem, com seus doze filhos espirituais). O Terceiro Reino, depois de Joaquim, começará, portanto, com dois precursores a serem seguidos na terceira geração por um novo dirigente, um dux e Babylone, que será o fundador do Reino do Espírito.”

E no segundo:

O dirigente do terceiro reino:

O elemento formal da especulação sobre o novo reino é o símbolo do dux, o líder. Denominamo-lo formal porque não estamos interessados aqui na liderança carismática enquanto tal (o que, obviamente, pode ocorrer sem relação com o problema da estrutura secular), mas no modelo teórico que se liga ao despontar de uma era com o surgimento de uma personalidade simbólica. Neste contexto, observamos uma simplicidade extrema em Joaquim. Sua participação na introdução de uma nova era confinou-se à compreensão e exposição da ordem do mundo em beneficio de seus coevos. Essa limitação permaneceu como elemento característico das especulações mais tardias porque, em nossa civilização cristã, a primazia simbólica do saeculum permaneceu na sombra de Cristo enquanto dux do saeculum cristão.

Um saeculum radicalmente novo teria de ser inaugurado por uma figura substituta de Cristo. Obviamente, a tendência de simbolizar uma época por meio da figura de um líder é forte, assim como geralmente o é a tendência a uma evolução de todo o padrão simbólico por ocasião de uma nova fundação.

Talvez o melhor exemplo seja a história do comunismo, que, apesar do pretenso caráter científico de sua teoria e da suposição de que um novo reino se deve à ação de forças desconhecidas, desenvolveu escritos canônicos, apóstolos, mártires, uma patrologia, heresias (desvios) e a figura do salvador – Lênin.

Mesmo no caso de Hitler, as interpretações messiânicas permaneceram no nível de mero exercício literário. Os líderes carismáticos de novos reinos do mundo ocidental não transcendem à estrutura intramundana implementada pela era cristã.”

O Reino antinomista inaugurado pelas concepções de Joaquim de Fiore revelam uma quimera determinista pela própria divindade, pois, se necessariamente haverá um Terceiro Reino de abolição e libertação, a Trindade enganou a todos nós e reservou única e exclusivamente para uma espécie de elite o deleite da paz eterna, o que contradiz veementemente as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo.

HISTORICISMO E SECULARISMO

A grande virtude cristã, no plano temporal, não foi a de modificar abruptamente todas as sociedades pela concentração de poder, mas de cristianizá-las pelas diversas vocações de seus membros: seja pela via cultural, intelectual, missionária, mística, etc. A uniformidade globalista, de abolir às sociedades orgânicas e tradicionais para, posteriormente, criar uma unidade artificial concentrada, nasce da concepção de que o cristianismo (e, portanto, a cristandade temporal) pode ser balizado igualitariamente às outras religiões e crenças. Esse laicismo revolucionário, oriundo das seitas secretas (ou discretas), como a Maçonaria liberal, e, sobretudo, do nominalismo acadêmico como causa intelectual primeira, nivela por baixo todos os credos e diviniza a máquina infernal do Estado, como principal racionalizador da vida humana, mesclando, portanto, poder temporal e autoridade espiritual.

Se no medievo, a organização da pólis é sintetizada pela Cristandade e, portanto, pela disseminação do cristianismo a nível público e universal, conforme encontra-se nas Epístolas de São Paulo Apóstolo aos Hebreus e aos Romanos, já em Marsílio de Pádua e seu naturalismo político, o poder não emana de Deus, mas da vontade humana. Em sua principal obra, a “Defensor Pacis”, Marsílio de Pádua, diferindo da analogia cristã do encontro da natureza adâmica com a Graça santificante, defende o primeiro modelo do que posteriormente seria conhecido por Estado Laico (secular). Logo, poder temporal e autoridade espiritual seriam como espécies do mesmo gênero. A fé das sociedades deve repousar, neste sentido, não na esperança da salvação de suas almas, mas na auto-regulação do poder secular.

Marsílio de Pádua é a representação da “adolescência da modernidade”, com a entrada dos absolutismos monárquicos desprendidos da ordem política e espiritual, mas como nova classe sacerdotal que se comporta analogamente aos dux dos antigos Impérios Cosmológicos.

O RIO CÁRSICO

Como apontamos no início deste artigo, a gnose é cársica, ora aparece ora desaparece de diferentes modos e formas, ideologias e agentes.

O esquema do milenarismo e do historicismo secular pós Joaquim de Fiore revelam, em casos concretos e contemporâneos, a dialética da Serpente entre o globalismo ocidental transumanista e o Eurasianismo neofascista e gnóstico de Alexandr Dugin e de seus asseclas russófilos.

A tentação de um esvaziamento, culminação e superação históricos perpassam toda a história humana e reencontram-se ora de maneira unívoca, ora de maneira equívoca, de maneira transversal e de fato com meras aparências de um fim do mundo.

Contudo, Cristo dizia: unicamente o Pai. Ora, Cristo sendo o Logos, a Inteligência Divina, propugna que o fim depende da Vontade do Pai e não dos nossos juízos e esquemas ideológicos, sejam quais forem. Eis a tentação da Serpente na História: parodiar as palavras de Cristo e os feitos do Pai para dar um sentido próprio à sua miséria e ódio à criação.