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Multilaterialismo russo e direção editorial

Em inúmeros vídeos, artigos e aulas, o professor Olavo de Carvalho, conhecedor profundo das técnicas de disputa pelo poder, assim como do funcionamento interno dos veículos de imprensa, ambientes onde trabalhou parte de sua vida, apontou os resultados de toda linha editorial indiferentista: servir àquilo que veicula, ainda que o faça a pretexto de ouvir todas as opiniões relevantes. Como se opiniões e fatos fossem comparáveis; e a virada do jornalismo de noticiador de fatos a veiculador de opiniões implicasse na repetição automática da forma de lidar com essas coisas.

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Fatos não podem ser verdadeiros ou falsos. Eles simplesmente são. Opiniões podem ser verdadeiras ou falsas. Quando não somos capazes de apontar sua veracidade, buscamos analisar todos os argumentos evocados em sua defesa para fazer um balanço dos prós e contras de certa opinião. Sendo a dita opinião complexa a ponto de não sermos capazes de dizer se ela é verdadeira ou falsa, nos contentamos em julgá-la provavelmente correta ou provavelmente equivocada. Ainda que a certeza quanto à veracidade de opiniões sobre assuntos complexos sem vínculo direto com verdades auto evidentes seja impossível, passamos a vida pesando a probabilidade de um discurso não passar de embuste ou mirar a verdade.

O que fazer diante de todos os discursos que parecem mirar o acerto? Escolhemos o que nos parece mais próximo da verdade, se a verdade é o que buscamos. Na vida da imprensa, pode acontecer de outra forma, uma vez que as opiniões veiculadas acompanham fatos políticos. Se um veículo de imprensa deseja renegar o valor objetivamente positivo de um fato político, difunde opiniões que o desqualificam, persuadindo o público de que ele deve ser desprezado. Se um veículo de imprensa deseja encobrir o valor objetivamente negativo de um fato político, difunde opiniões que relativizam sua suposta abjeção. Isso acontece o tempo todo, cabendo ao leitor interessado na verdade confrontar as opiniões e compará-las aos fatos para, por sua vez, pesar a probabilidade de acerto ou erro daquilo que ouve e lê.

Isso é primário, mas não descreve uma direção editorial. A título de exemplo, confrontemos a direção editorial da Revista Oeste àquela da Rádio Jovem Pan. O segundo se apresentava ao público como um veículo interessado em propalar opiniões divergentes sobre os mesmos fatos políticos, apostando em formatos de programas onde comentaristas de visões políticas opostas analisavam os mesmos fatos políticos. Em princípio, uma repetição da forma antiga de imprensa, que realmente contratava jornalistas com visões de mundo eventualmente distintas, o que implicava na variação da opinião no interior do jornal. A Revista Oeste já começou diferente. Apresenta-se ao público como veículo de comunicação cujos colaboradores têm alinhamento quanto às opiniões políticas e visões de mundo, sendo o trabalho da Revista oferecer ao público uma visão clara e específica da realidade. Mas por quê? Ora, porque julga ser esta a visão correta. A direção editorial da revista parte do princípio que nem todas as visões sobre os fatos são verdadeiras, e promete ao público entregar a que julga mais provavelmente verdadeira. Afinal, esta é a missão da imprensa.

Qual direção editorial é mais correta, a da rádio Jovem Pan ou a da Revista Oeste? A resposta depende de uma premissa auxiliar: todas as pessoas que atuam na imprensa apresentam ao público sua opinião sincera dos fatos, ou são agentes políticos comprometidos em dar aos fatos em exame a aparência mais conveniente aos objetivos de poder com que compactuam? A atual disputa política envolve o uso da imprensa como palanque de difusão de narrativas: uma historinha atrelada a fatos, mas repleta de distorções, omissões e falsificações. Os responsáveis pela difusão das narrativas têm função social de agentes políticos, um papel diferente daquele desempenhado pelos jornalistas – que consiste em apresentar relatos ou opiniões sinceras sobre fatos específicos de interesse comum. Portanto, a resposta à pergunta inicial pode ser reformulada nos seguintes termos: qual direção editorial corresponde à essência do jornalismo? Aquela que admite agentes políticos entre seus jornalistas, ou aquela que repudia a perversão do jornalismo pelos meios auxiliares da disputa de poder?

“Ah, mas somos um veículo de comunicação realmente interessado em propalar o maior número de opiniões sinceras distintas, de forma a oferecer ao público material suficiente para que ele formule suas conclusões”. Eis aí uma direção editorial de tipo indiferentista, que não se compromete em veicular as opiniões que julgar mais provavelmente verdadeiras, mas todas as que julgar suficientemente sinceras, portanto, imbuídas de certo valor intrínseco, por consistirem em conclusões de alguém que busca a verdade também.

Nesse caso, não se pode esperar identidade alguma entre o conteúdo veiculado e a visão de mundo do próprio veículo. É o caso de inúmeros podcasts que selecionam seus convidados pelo critério, por exemplo, da audiência, relevância em redes sociais, ligação a polêmica do dia, etc. Os critérios são todos indiferentes ao valor das opiniões e conhecimentos dos convidados com relação à verdade.

A direção editorial indiferentista não está preocupada em veicular o que julga mais relevante, valoroso ou essencial para corroborar a verdade sobre o que existe e acontece no mundo. Não está comprometida em fazer de seu veículo o suporte de defesa da visão de mundo que acredita a mais justa e verdadeira. Consequentemente, não procura realizar a função social de promover o que julga bom, e deixar de lado (ou para outros veículos) o que julga nocivo, obscuro ou enganoso. Do ponto de vista ético, é um reflexo do relativismo intelectual no universo da direção jornalística. A atitude de um cético típico é sempre o indiferentismo. Uma pessoa que suspende o juízo diante da possibilidade de se decidir que visão de mundo, ou que conjunto de opiniões é mais justo e certo, ou pelo menos mais provavelmente o verdadeiro, um cético quanto a esses pontos defenderá uma direção editorial indiferentista em seu veículo de comunicação. E o risco que acabará assumindo, queira ou não, goste ou não, é se tornar palanque de agentes difusores de narrativas, os quais pervertem a precisa função social do jornalismo. Por isso Olavo de Carvalho fazia troça da afetação indiferentista no mundo do jornalismo, e apontava à necessidade vital de se criar veículos de imprensa comprometidos com a visão de mundo contrária à comunista, em seus múltiplos matizes – da nova era à revolução cultural. Segundo ele, só havia então uma direção editorial no mercado; e no máximo uns gatos-pingados praticando o indiferentismo jornalístico, o que não ajudava em nada. A própria fundação do Jornal Brasil Sem medo, ou a ampliação e tradução digital do antigo Jornal Gazeta do Povo, cujos princípios e valores são públicos e notórios, respondem a um esforço de diminuir a desproporção característica da história recente da imprensa no Brasil.

Em síntese, o problema da direção editorial indiferentista está na sua inépcia em evitar a confusão, na mente do público, entre a contraposição de aspectos da verdade possíveis e mentiras claras estrategicamente apresentadas como opiniões sinceras (ou narrativas). É um veículo que vende verdade e mentira como se fossem a mesma coisa e tivessem o mesmo valor. Por isso ela me parece realmente a pior escolha possível, quando feita convictamente; e a melhor desculpa esfarrapada à disposição, quando evocada para encobrir cumplicidade com a propaganda – como é o caso de inúmeros veículos jornalísticos brasileiros, lotados de agentes esquerdistas até o talo, e sempre prontos a afetar um ceticismo de fachada.

Alguns certamente a acolhem por falta de perspicácia. Outros, por interesse político. Cabe ao público ficar atento e pesar se tais veículos são realmente a melhor maneira possível de veicular informação, opiniões e reflexão política. Isso, é claro, se para o mesmo público faz alguma diferença saber exatamente como pensa o diretor de conteúdo do veículo consultado; e se a verdade e a mentira são suficientemente distintas em valor para merecer tratamento devidamente diferenciado.

Encerro por aqui o desenho da explicação sobre minha recente (e ingrata) surpresa com a série sobre multilateralismo segundo três ideólogos do eurasianismo recentemente publicada no Brasil. Não significa, naturalmente, que não valha a pena conhecer a dita visão para entender melhor a maneira como a Rússia explica sua posição com relação à “operação militar” (eu uso invasão e guerra) da Ucrânia. Para isso temos, diga-se de passagem, o excelente artigo publicado nesta segunda-feira no Jornal Gazeta do Povo. Ali a direção editorial não é indiferentista, e o artigo, de fato uma opinião fundamentada e sincera.

Artigo publicado originalmente na Revista Esmeril, clique aqui para acessar.

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