Legionário, 19 de março de 1944, N. 606, pag. 2
A civilização está ameaçada. E a pior ameaça para a civilização não parte dos tiranos que, em certo momento, pareceram abalar o mundo. O fenômeno é bem mais profundo. O que estes tiranos fizeram e fazem é apenas desencadear forças bestiais, que aspiravam liberação. Estas forças há muito pulsavam e gemiam aflitas, sob o verniz da cultura, sob as aparências da racionalidade; o seu latejar era cada vez mais perceptível, a sua angustia de há muito vinha comovendo os profetas da decadência. Mas as barreiras estão rompendo-se, e a caudal enfim se alastra, livre, num relinchar alegre de vitória, numa afirmação brutal de forças elementares, numa “revanche” insolente contra um ressentimento milenar.
A humanidade cansou-se da civilização, a humanidade sente um prazer animal e irado em destruir o que ela mesma edificou penosamente, à força de vitórias contra si mesma: o seu valor humano, a sua afirmação espiritual, que a torna distinta e superior à natureza bruta. A civilização tornou-se um fardo insuportável para a humanidade, e ela a rejeita de si como um animal xucro.
É verdade que a nossa civilização contemporânea artificializou-se e se tornou antinatural. Não há sistema nervoso que a resista no seu atropelo. Mas, apesar de tudo, esta civilização pervertida, inumana, implica valores espirituais, eternos, fundamentalmente humanos. E, se esta atual civilização corrompida deve ser abandonada, não se deve abandonar a Civilização.
Entretanto, os sintomas desta demissão cada vez se apresentam mais alarmantes. Tudo o que representa constrangimento, “tênue” disciplina interior, esforço espiritual, está sendo rejeitado.
Ainda agora um vespertino publicou uma reportagem sobre o vestuário masculino. Este vestuário está em evolução, e alguns acham que deve evoluir cada vez mais. Foi feita uma “enquete” (pesquisa de opinião, n.d.c.) entre várias pessoas, e o resultado foi este: 67% se manifestou contra o uso da gravata; 63% contra o uso do paletó; em porcentagens inferiores, houve manifestações contrárias a outras peças da indumentária, como, por exemplo, o colarinho. E, enfim, 2% era de opinião favorável à completa nudez. Quanto à indumentária, os homens tendem, pois, cada vez mais, para a situação dos antigos escravos. Ora, a psicanálise já ensinou o homem a dar vasão a seus instintos, para evitar “complexos”.
Por outro lado, o homem contemporâneo já não gosta de pensar por si mesmo, e a massa olha com desconfiança e surda irritação para os que não seguem as ideias “standards” que a Propaganda lhes incute. A humanidade prefere entregar a função de pensar aos líderes. Quanto ao mais, ela se contenta com seguir docilmente os “slogans” do momento.
Além disso, avoluma-se cada vez mais o número dos que preferem passar suas férias em lugares quase selvagens, suprindo a falta de conforto pelo desembestamento de toda a personalidade, livres de todas as peias da civilização. A própria personalidade é algo que também pesa aos homens de hoje, e já não são poucos os que procuram livrar-se dela, como de um fardo incômodo, e procura tornar-se simples números.
Enfim, esta é a verdade: os homens já não querem ser livres, para poderem ser libertinos. A liberdade é uma responsabilidade, é um ônus espiritual, é uma vocação de aperfeiçoamento e de virtude, é um constrangimento para o homem contemporâneo. A isto, ele prefere à irresponsabilidade dos instintos.
Que vai ser da civilização?
Muito bom e assertivo o texto. Faz refletir sobre o que nos estamos tornando! Prisioneiros de nós mesmos !!!
Antes um alerta que uma profecia. Excelente!
E a engenharia social, pós denominada “marketing” acelerou o processo e o andamento do projeto.
O ser humano contemporâneo quer liberdade ou libertinagem? Triste realidade…
Que excelente artigo!
“A liberdade – tão grande e tão doce que, quando perdida, todos os males sobrevêm e, sem ela, todos os outros bens, corrompidos pela servidão, perdem completamente o sabor. A liberdade é desprezada pelos homens, ao que parece, porque se eles quisessem, eles a teriam; e como se recusassem a fazer essa aquisição preciosa pela facilidade em obtê-la.” (Boétie, Étienne de La, 1ª edição – julho de 2021, pgs. 21 e 22)