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O Sagrado Coração de Jesus e os cistercienses

A Igreja Católica dedica o mês de junho ao Sagrado Coração de Jesus para que os fiéis venerem, honrem e imitem mais intensamente o amor generoso e fiel que Cristo tem por nós. O dia do Sagrado Coração de Jesus é uma data móvel que se comemora na segunda sexta-feira após a Solenidade de Corpus Christi, sendo uma das solenidades do Tempo Comum. Essa devoção ganhou muita notoriedade e intensidade a partir de 16 de junho de 1675, quando Nosso Senhor apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque – monja da Ordem da Visitação (Visitandinas), fundada por São Francisco de Sales – mostrando-lhe seu Coração rodeado por chamas de amor, coroado por espinhos, com uma cruz e uma ferida aberta da qual brotava sangue.

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            O que poucos sabem é que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é ainda mais antiga. Nos primeiros séculos do cristianismo, os Padres da Igreja – objeto de estudo da Patrística – refletiram, em vários de seus escritos, sobre o relato evangélico da crucificação de Jesus, vendo nela a vitória sobre o pecado, além de ser fonte dos Sacramentos do Batismo e da Eucaristia. Mas não haviam interiorizado esse acontecimento como motor de devoção ao amor redentor de Cristo. Ignorada nos dez primeiros séculos da Igreja, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus insinua-se em Santo Anselmo (1033-1109) – monge beneditino – em suas ardentes meditações sobre a Paixão do Senhor. Mas, é sobretudo São Bernardo de Claraval (1090-1153) – monge cisterciense – quem contempla no coração ferido de Jesus o grande mistério da piedade e da misericórdia divinas, sobretudo no Sermão 61 sobre o Cântico dos Cânticos: “Outro comentarista expôs o tema das ‘fendas da rocha’ (Cf. Ct 2,14), comparando-as às chagas de Cristo, com toda propriedade, porque a Rocha é Cristo. (…) As feridas que recebeu seu corpo nos revelam os segredos do seu coração; permitem-nos contemplar o grande mistério de compaixão, a visceral misericórdia de nosso Deus, pela qual visitou-nos o Sol que nasce do alto. Por que não admitiríamos que as chagas nos deixam ver essas entranhas? Não temos outro meio mais claro que tuas chagas para compreender, Senhor, que tu és bom e clemente, rico em misericórdia”.

Um dos principais momentos da vida humana do Salvador, muito contemplado pelos autores monásticos cistercienses, é, sem dúvida, aquele da sua Paixão. Aqui, como nunca, a piedade monástica medieval meditou e reviveu as diversas fases desse mistério, começando pela aproximação mais remota e extrínseca: a recordação; tornando-se pouco a pouco um exercício espiritual bem preciso, objeto de discurso, de consideração, de reflexão, de adoração do Ressuscitado: a noite de Páscoa; passando pela aproximação mais apropriada e espontânea: a confissão dos próprios pecados; até culminar no gênero literário das “visões”. Quanto a este gênero, mereceria ser ressaltada a figura de Santa Lutgarda de Aywièrres (1182-1246), em cuja biografia se relata o primeiro caso histórico conhecido de uma aparição do Coração de Jesus transpassado, que constitui um precedente da futura difusão da devoção ao Sagrado Coração, estendida por toda a Igreja latina a partir do século XVII com Santa Margarida Alacoque. A grande diferença é que Lutgarda encontra-se ainda próxima às categorias da primitiva espiritualidade cisterciense, e seu biógrafo se esforça por demarcar sua evolução interior segundo a clássica graduação: homem carnal, homem racional, homem espiritual. Nela está ausente a mística da “reparação” e do “desagravo”, que caracterizará a devoção moderna ao Sagrado Coração. Lutgarda nos conta, com a simplicidade de quem já foi provada, a sua união mística com Cristo. O amor de Cristo no coração de Lutgarda e o coração de Lutgarda no coração de Cristo: “O que importa a mim, ignorante, inculta e monja leiga conhecer os segredos da Escritura’? O Senhor lhe responde: ‘O que queres’? Ela lhe diz: ‘Quero teu coração’. E Ele lhe responde: ‘E eu, tudo o que quero e desejo é o teu’. ‘Que assim seja, Senhor, derrama teu coração no meu e que possua em ti meu coração, na segurança do teu amparo’. E se produziu a comunicação de corações” (Vita Lutg., I, 12).

Para Lutgarda, o coração transpassado é o momento mais real do amor de Deus pelo homem e, portanto, o momento mais real do amor do homem por Cristo é a com-paixão com seu coração. Outro cisterciense, o abade Guilherme de Saint-Thierry, exclamará: “Teu Coração é o doce maná de tua divindade, que guardas interiormente, ó Jesus, na urna de ouro de tua sapientíssima alma” (Oração 8ª, 6. Carta de Ouro e Orações Meditadas); e desejará como que entrar fisicamente pela “Porta” de Cristo: “Quando me empenho em chegar a Ele, ou, como a hemorroísa, quando me esforço por ‘roubar’ a saúde para minha alma enferma e miserável, pelo contato salutar ao menos de suas fímbrias; ou, como Tomé, varão das predileções, quando eu desejo vê-lo inteiramente e tocá-lo, e ainda mais, aproximar-me da sagrada ferida de seu lado, porta da arca aberta ao lado, não só para pôr ali o dedo, ou toda a mão, mas para entrar inteiro até o próprio coração de Jesus, no Santo dos Santos, na arca do Testamento, até a urna de ouro, a alma de nossa humanidade que contém em si o maná da divindade; então me diz: ‘Não me toques’, e como no Apocalipse: ‘Fora com os cães’.”(Da Contemplação de Deus, 3).

Quaisquer que sejam as consequências devocionais, culturais, ou institucionais de uma tal atitude interior, houve com os cistercienses um novo impulso para a devoção à Cruz, sobre a qual o Cristo dormiu o sono da morte. A Cruz é a sua cátedra, a escada para o céu, a videira mística, a árvore da vida, contemplada também ela em inumeráveis visões e celebrada em textos poéticos de grande beleza. Os pais cistercienses sentiam acender em si a chama da caridade, posto que o fruto da Paixão é de fato a salvação dos irmãos, o amor aos inimigos, o perdão dos pecados. Sobre esse tema, outro abade cisterciense, Elredo de Rievaulx, expressou-se assim: “E para amar os inimigos, no que reside a perfeição da caridade fraterna, nada nos anima tanto quanto a grata consideração daquela admirável paciência, com que o mais belo dos filhos dos homens ofereceu o seu formoso rosto aos infames, para que lhe cuspissem; permitiu que malvados tapassem aqueles olhos que regem o Universo; expôs seus ombros aos açoites e submeteu à crueldade dos espinhos a cabeça que faz tremer os principados e potestades. Com essa paciência aceitou os ultrajes e afrontas, e suportou finalmente a cruz, os cravos, a lança, o fel e o vinagre, permanecendo sempre afável, manso e tranquilo” (O Espelho da Caridade, Livro Terceiro, 14).

É principalmente no mosteiro cisterciense de Helfta, na Alemanha, que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus encontra o seu desenvolvimento, através das vivências místicas de Santa Gertrudes (1256-1302?). As Revelações de Jesus a Santa Gertrudes dizem respeito à estreita amizade que a uniu ao Senhor e à íntima familiaridade que o Filho de Deus se dignou ter com ela. Repetidas vezes o Senhor apresentou o seu divino Coração a Santa Gertrudes, como sinal da íntima união e comunicação que queria ter com ela; essa união incluiu a presença interior permanente do Senhor para Gertrudes (Livro II, 3), a revelação de seus desígnios secretos, a manifestação de suas carícias amorosas e a comunicação de inefáveis ​​delícias espirituais. A sua condescendência chegou ao extremo de trocar o seu Coração pelo dela (cf. Livro II, 23.18).

Entre os cistercienses, a devoção à humanidade de Cristo – expressa tão claramente na devoção ao Sagrado Coração de Jesus –, nada tem a ver, é preciso que se diga, com o pietismo sentimental que caracterizou outras épocas e que pode ainda seguir caracterizando certos ambientes. Para entendê-la bem é preciso enquadrá-la nas chaves em que ela se acha inserida (exegético-escriturísticas, cristológicas e antropológicas), onde ocupa um lugar próprio e bem determinado; e, mais concretamente, é preciso situá-la no marco da mediação universal de Cristo. A vida monástica cisterciense nunca deverá ser de tal modo “espiritual”, ou “contemplativa” que chegue a prescindir da encarnação. Não seria então uma vida em conformidade com a dos primeiros pais espirituais da Ordem. O monge é também de carne e convive com homens de carne, mesmo no “deserto”, esforçando-se cada dia mais para configurar o seu coração ao de Jesus.

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