Pequeno relato de um desertor
Ao afirmar que não sou mais liberal – e que, portanto, essa é a história de um desertor, isso não significa que não tenha apreço ou interesse pela tradição liberal e seus autores. Ou que tenha aderido a qualquer modelo econômico que não seja simpático ao livre mercado. Portanto, apesar do título, antecipo neste primeiro parágrafo aos leitores desavisados que podem ter caído aqui por acaso: no restante do texto não há qualquer defesa do socialismo ou qualquer posição econômica ou social considerada “de esquerda”.
Uma das razões para isso, inclusive, é porque por anos vêm sendo feita uma análise equivocada a respeito do tema liberalismo no Brasil. Olha-se demasiadamente para o liberalismo econômico, esquecendo os demais aspectos contidos no pacote ideológico chamado “liberalismo”. Ser simpático ou aceitar a economia de mercado não necessariamente significa ser um adepto do liberalismo.
Na aurora dessas discussões no Brasil, especialmente no reavivamento causado pela ascensão do Instituto Mises, discussões sobre anarcocapitalismo etc., algumas pessoas – e estou incluso nisso, daí a importância desse texto – tentaram emplacar um certo “liberal conservadorismo”. A definição seria algo como “liberal na economia e conservador nos costumes”. Virou chavão e, evidentemente, não vingou. Conservadores foram para o um lado e liberais para outro, o que, no frigir dos ovos, é muito bom.
Por algum tempo aceitei a alcunha de liberal-conservador e usei-a para me definir, já desagradando os liberais ideológicos – que corretamente veem o liberalismo como o pacote que é e não apenas pelo recorte econômico e também os conservadores, fileira que engrosso hoje, rechaçando a alcunha de liberal e reforçando que simpatia pela economia de mercado não exige rendição à condição de “liberal”.
Liberalismo e Liberalismo
Com esse leve amadurecimento desses dois pontos de vista concorrentes e a ausência de um inimigo comum, no caso brasileiro o petismo, cada lado tomou forma própria – que é positivo no somatório geral das coisas. Liberais clássicos estão necessariamente vinculados a uma defesa intransigente da propriedade, da autodeterminação individual, da crença num papel reduzido do Estado e na economia de mercado.
Porém, um dos erros da discussão é desconsiderar que o liberalismo predominante e que deve ter chegado para ficar no Brasil é o de uma segunda tradição, que não é estranha – ao contrário do que muitos disseram por muito tempo, mas perfeitamente legítima. O “liberalism” da América. O termo pode até ter sido cooptado, mas isso já faz tempo e muitos liberais, quando assim se descrevem, estão falando dessa tradição e não da tradição do liberalismo clássico.
Tanto é que, para tomar um exemplo recente, esses liberais se posicionaram a favor das candidaturas de Hillary Clinton em 2016 e de Joe Biden agora em 2020, candidatos que praticam capitalismo de compadrio, atrelados ao estamento (que está longe de ser pró-mercado), possuem programas de governo que implicam aumento do Estado em diversas frentes (aumento de impostos, medicina socializada, acréscimo galopante da dívida pública e belicismo neoconservador que implica agigantamento estatal e alto consumo do dinheiro do contribuinte). Uma agenda bastante distante daquela do liberalismo clássico.
Por que esses liberais apoiam esses candidatos? Simples, esse liberalism têm muito pouco a ver com o liberalismo clássico, exceção feita ao nome. Economicamente, embora guardem alguma simpatia pelo livre mercado, colocam muitas coisas à frente dele, o que implica defesa de alguma forma de economia mista, como o fazem a democracia cristã e a socialdemocracia europeias, por exemplo.
E na “pauta dos costumes” estão completamente alinhados com o que chamamos de “esquerda” (note-se que até agora não citei o par “direita e esquerda”): favorabilidade ao aborto, ao casamento gay, à legalização das drogas (e algumas vezes ao Estado garantindo e/ou financiando tudo isso). Essa é uma boa definição de um liberal americano, eleitor orgulhoso do partido democrata: economia mista e progressismo moral nos costumes. Capitalismo para si, socialismo para os outros e “liberacionismo” na moral – é o aperfeiçoamento de uma ideologia ideal para a elite financeira: o melhor reservado para si, banheiros trans para os outros (e defesa disso para cosmopolitas multiculturais) e esquecimento da classe trabalhadora. É a síntese da “nova esquerda”.
Para garantir esse progressismo vale relativizar a propriedade, direitos individuais e a economia de mercado – são os liberals que cada vez mais flertam ou abraçam de vez discursos contra o porte de armas, contra a liberdade de expressão ou a favor das arbitrariedades autoritárias de governantes implementadas durante a pandemia, por exemplo. O abismo entre liberals e liberais clássicos não poderia ser maior, mas não nos empolguemos e incorramos no mesmo erro, estamos falando de duas espécies pertencentes ao mesmo gênero.
Os exemplos abundam:
Embora esses posicionamentos sejam ideologicamente consistentes com o liberalismo, não podemos e não devemos descartar a hipótese da sinalização de virtude para o discurso hegemônico de esquerda. Alguns liberais estão se assumindo como esquerdistas – o que também é historicamente consistente. Outros se consideram muito acima dessa discussão de mortais entre direita e esquerda.
Fato é que liberais, ainda que comumente devorados pela esquerda, dispensam praticamente todo tipo de anti-esquerdismo, seja por considerarem estrategicamente contraproducente, seja para reafirmar a pose de moderação, isenção e abocanhar algumas migalhas entre o discurso oficial. Como os exemplos citados mostram, não se pode negar que funciona.
Essa mendigagem ideológica, evidentemente, não passou despercebida aos liberais mais atentos. E nos coloca na pista da razão pela qual conservadores seguros e convictos podem ser totalmente independentes de liberais.
Conservadorismo e Liberdade
Se um conservador não precisa incluir “liberal” na sua definição para assegurar simpatia ao livre mercado e todo o restante desse pacote ideológico não poderia estar mais diametralmente oposto ao que crê um conservador, não há razão para qualquer intersecção forçada entre os dois posicionamentos. É saudável que cada um se defina bem e se reconheça como bloco distinto.
O liberal, inclusive e especialmente o liberal à moda americana, trata a liberdade de maneira doutrinária (todas as questões precisam, de forma abstrata, passar pelo crivo da “liberdade”), como fim da vida social, da mesma maneira que que o esquerdista socialista trata a “igualdade”. No último caso vemos com mais clareza como esse tratamento doutrinal, abstrato e, em suma, ideológico, acaba trazendo consequências no mínimo “diversas” do que é prometido na teoria.
Nesse aspecto, o cientista político italiano Norberto Bobbio não poderia estar menos atualizado ao fincar as fronteiras entre direitistas e esquerdistas como aqueles que defendem a liberdade e a igualdade. É no seio da tradição liberal que algo como a “cultura do cancelamento” grassa cada vez mais… livre, por mais contraditório que isso pareça. Em ampla consonância com isso está Roger Scruton:
E porque eles [socialismo e liberalismo] são sistemas, assume-se que eles são organicamente unificados e que você não pode adotar qualquer parte deles sem aceitar o todo. Mas deixemos bem claro desde o início, partindo da nossa atual conjuntura, nada é mais óbvio sobre estes dois sistemas que o fato de que eles são, em seus pressupostos, substancialmente a mesma coisa. Ambos propõem uma descrição de nossa condição e uma solução ideal para ela, em termos que são seculares, abstratos, universais e igualitários. Ambos veem o mundo em termos “dessacralizados”, em termos que, na verdade, não correspondem a qualquer experiência humana comum e duradoura, mas somente aos frios e minguados paradigmas que assombram os cérebros dos intelectuais. Ambas são abstratas, mesmo quando se pretendem uma visão da história humana. Sua história, como a sua filosofia, é alienada da circunstância concreta da agência humana e, de fato, no caso do marxismo, chega ao ponto de negar a eficácia da agência humana, preferindo ver o mundo como uma confluência de forças impessoais. As ideias pelas quais os homens vivem e encontram sua identidade local – ideias de lealdade, de país ou nação, de religião e dever – todas estas ideias são para o socialista mera ideologia, e para o liberal, questões de escolha “privada”, a ser respeitadas pelo Estado somente porque realmente não importam ao Estado.
Ambos os sistemas também são universais. Um socialismo internacional é o ideal declarado pela maioria dos socialistas; e um liberalismo internacional é a tendência implícita do liberal. A nenhum dos sistemas parece inteligível que os homens vivam não para aspirações universais, mas para sentimentos de pertencimento local; não por uma “solidariedade” que envolva o mundo todo de ponta à ponta, mas por obrigações entendidas em termos que separam os homens da maioria dos seus vizinhos — termos como história nacional, religião, língua, e os costumes que fornecem a base da legitimidade. Finalmente – e a importância disto nunca deve ser subestimada – tanto socialismo como liberalismo são, em última análise, igualitários. Ambos partem do princípio que todos os homens são iguais em todos os aspectos relevantes para a política. Para o socialista, os homens são iguais em suas necessidades e, portanto, devem ser iguais em tudo que concerne a satisfação das suas necessidades. Para o liberal, eles são iguais em direitos e, portanto, devem ser iguais em tudo que afete sua posição política e social.”
E é nesse aspecto que a frase “liberais e socialistas” são duas faces da mesma moeda faz perfeito sentido. Ambos são ideólogos que pretendem aplicar princípios abstratos no ordenamento social, deduzindo deles as respostas para todos os problemas que importam e surgem mais ou menos no mesmo momento histórico como respostas à crise de um modo de vida até então tradicional. Nada disso é alterado pelo cálculo instrumental que nos leva a concluir que a democracia liberal é um mal menor comparativamente falando, por exemplo, a sociedades socialistas e comunistas.
Há, inclusive, quem argumente – e muito bem, como o filósofo político israelense Yoram Hazony, que as sociedades liberais já estão em crise e essa crise levará inevitavelmente a um retorno do marxismo, retorno cujo caminho foi aberto pelo próprio liberalismo e sua fraqueza em lidar com seus antípodas:
Liberais antimarxistas trabalharam com inúmeras desvantagens nas lutas recentes para manter o controle das organizações liberais. Uma é que, muitas vezes, eles não têm certeza de que podem usar o termo “marxista” de boa-fé para descrever aqueles que procuram derrubá-los. Isso ocorre porque seus algozes não seguem o precedente do Partido Comunista, dos nazistas e de vários outros movimentos políticos que se autodenominam usando um nome de partido específico e divulgam um manifesto explícito para defini-lo. Em vez disso, eles desorientam seus oponentes, referindo-se às suas crenças com um vocabulário mutante de termos, incluindo “a esquerda”, “progressismo”, “justiça social”, “antirracismo”, “antifascismo”, “Black Lives Matter”, “teoria crítica da raça ”, “política identitária”, “politicamente correto”, “wokeness” [“lacração”] e muito mais. Quando os liberais tentam usar esses termos, muitas vezes lamentam não os usar apropriadamente e isso se torna uma arma nas mãos daqueles que desejam humilhá-los e, em última instância, destruí-los.”
Isto é, o liberalismo sofre dos mesmos problemas que qualquer ideologia moderna sofre. Um pacote de ideias que “se bem executado” – ainda que ouçamos menos liberais e mais socialistas dizerem que sua ideologia foi “deturpada” – é capaz de prover a ordem social perfeita ou a melhor ordem social possível. Mais uma vez, nesse aspecto, o liberalismo em nada difere dos seus pares ideológicos concorrentes. Vale rememorar aqui a reflexão de Russell Kirk sobre ideologia, que endosso totalmente, em A Política da Prudência:
Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy (1754-1836), o autor de Les Elements d’Ideologie [Os Elementos da Ideologia], era um “metafísico abstrato” do tipo que, desde então, se tornou comum na margem esquerda do Sena, um ponto de encontro para ideólogos incipientes, entre os quais, em décadas recentes, o famoso libertador do Kampuchea Democrático, Pol Pot (1928-1998). Destutt de Tracy e seus discípulos planejavam uma larga reforma educacional, que seria fundada sobre uma assim chamada ciência das ideias; eles se inspiravam fortemente na psicologia de Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780) e, em menor grau, na de John Locke (1632-1704).
Rejeitando a religião e a metafísica, esses primeiros ideólogos acreditavam que poderiam descobrir um sistema de leis naturais – sistema que, caso obedecido, poderia tornar-se o fundamento da harmonia e do contentamento universais. Doutrinas de autointeresse, produtividade econômica e liberdade pessoal estavam ligadas a essas noções. Filhos temporãos de um moribundo iluminismo, os ideólogos pressupunham que o conhecimento derivado das sensações, sistematizado, poderia aperfeiçoar a sociedade por meio de métodos éticos e educacionais e de uma direção política bem organizada.
Napoleão desprezou os ideólogos ao observar que o mundo não é governado por ideias abstratas, mas pela imaginação. John Adams (1735-1826) chamou essa recém-criada ideologia de “ciência da idiotice”. Mesmo assim, durante o século XIX, ideólogos surgiam como se alguém, à moda de um Cadmo, semeasse dentes de dragão que se transmutavam em homens armados. Tais ideólogos eram, em geral, inimigos da religião, da tradição, dos costumes, das convenções, dos usos e dos antigos estatutos (KIRK, 2014, p. 93).”
Embora, enquanto conservadores, façamos alianças pontuais com liberais, não se pode deixar de notar, dando a César o que é de César, que tudo apontado por Kirk no trecho acima se aplica na mesma medida a liberais e socialistas. Olavo de Carvalho, em artigo homônimo a este, formula o mesmo problema da seguinte maneira: “Ou você gosta da liberdade de mercado porque ela promove o Estado de direito, ou gosta do Estado de direito porque ele promove a liberdade de mercado. No primeiro caso, você é um ‘conservador’; no segundo, é um ‘liberal’”.
Para liberais, a liberdade é um princípio diretor a ser defendido, valorizado e buscado. Isso não é uma meta ruim, assim como – genericamente e em sentido diverso – a “igualdade” (perante a lei, por exemplo). Já para conservadores, a coisa circula em torno do conceito de “ordem”, que é mais que um mero valor ou princípio, mas um dado mesmo da realidade, que quando bem apreendido, representado e compreendido, é o único pano de fundo onde pode haver, justamente, liberdade – e outros valores considerados socialmente saudáveis.
Afirmava sabiamente Scruton: “o liberalismo continua sendo, para mim, não mais do que isso – um corretivo constante para uma dada realidade, mas não a realidade em si”. Tanto a ordem política como a ordem da alma são pressupostos necessários para a liberdade. Como dizia Ortega y Gasset “eu sou eu e minha circunstância” e principalmente a circunstância social que propicia a liberdade, bem como algumas das minhas circunstâncias singulares são prévias à liberdade.
Complementa Olavo de Carvalho frisando outra cisão e tensão essencial entre liberais e conservadores: “ou você fundamenta o Estado de direito numa concepção tradicional da dignidade humana, ou você o reinventa segundo o modelo do mercado, onde o direito às preferências arbitrárias só é limitado por um contrato de compra e venda livremente negociado entre as partes”.
E para quem ainda está preocupado com “liberdade de mercado”, que continuo saudando – como meio e não como fim, diga-se –, Roger Scruton cantou a letra em artigo que não poderia ter título mais direto, “como ser um conservador anti-socialista não liberal”. Nele, citado anteriormente, Scruton localiza o liberal dentro da mesma problemática que estamos mais acostumados a atribuir ao socialista: a segunda realidade, em linguagem voegeliniana. O liberal concebe o homem em termos seculares, abstratos, universais e igualitários, ao passo que o conservador concebe o ser humano como inserido num contexto espiritual, concreto, singular e desigual. Para forçar o pouso do homem em seu esquema teórico, só resta ao liberal se inserir numa segunda realidade, que se torna possível, pari passu ao socialista, deturpada por uma linguagem corrompida.
Já para o conservador, se trata de:
(…) encontrar os fundamentos da existência política concreta, e trabalhar para o restabelecimento de um governo legítimo em um mundo que foi varrido e desprotegido por abstrações intelectuais. Nosso modelo final para um fim legítimo é aquele que é dado historicamente, para as pessoas unidas por seu senso de um destino comum, uma cultura comum e uma fonte comum dos valores que regem suas vidas.”
Essas explanações fornecem insights interessantes e importantes tanto para pessoas que estejam se aproximando do conservadorismo há pouco tempo, tranquilizando-as quanto ao fato que uma rejeição ao liberalismo enquanto pacote ideológico nem de longe representa um endosso do socialismo econômico ou político, quanto para os que estão há mais tempo imersos em literatura conservadora e buscam fundamento para o fato do conservadorismo ser um modelo de posicionamento político conservador e usualmente observado na maturidade da vida.
O conservador não pretende corrigir a realidade com a sua “ideologia”, mas adequar a política da melhor maneira possível, em acordo com a ordem da realidade que, por exemplo, como chama a atenção Scruton, preservará algum grau de desigualdade, privilégios, hierarquia, poder distribuído de forma não-igualitária, “o privilégio e o poder sempre existirão. Esses não são nada, mas sim os traços de uma ordem política real. Desde que as igualdades, privilégios e poderes existam, é certo que devem coexistir com uma lei que possa justificá-los. Caso contrário, serão injustos e também descontrolados”. E com relação a isso, liberais e socialistas podem dar as mãos no combate ao conservadorismo, ainda que proponham “fármacos” distintos para as “enfermidades” citadas.
Por fim, não sei se o texto despertará a bile de liberais e outros simpatizantes. Creio que não e também julgo que não deveria, pois o texto é mais “geográfico” – simplesmente estabelecendo fronteiras entre liberais e conservadores, o que costuma ser de agrado geral – e menos apologético. É em tudo que fora citado que conservadores acreditam e isso nos faz diferentes de liberais, as simple as that.