No homem, o corpo, a carne, é a sua parte inferior; é aquilo que se relaciona com seus impulsos, suas reações; é sua animalidade. A mente, o espírito, é sua parte superior, onde reside tudo o que é consciente.
Em Deus, não há corpo, não há carne. Por isso, não há impulso, nem instinto. Nele, nada é sem consciência. Nada é reação, tudo é razão. Deus é razão pura.
A transcendência divina significa, simplesmente, que esse Deus não se rebaixa à animalidade, mas paira, impassível, para além do mundo dos instintos. Seu reino é espiritual.
Obviamente, um Deus não animal, não carnal e não humano, a quem nada pode guiar e que não sofre qualquer tipo de impulso inferior, acaba se tornando distante.
O cristianismo, porém, subverte a concepção da divindade fria e impassível, humanizando-a. O Deus cristão se faz carne, aquela mesma carne inferior, reativa, impulsiva e inconsciente.
Mas como isso seria possível? Como o Deus transcendente pôde assumir uma natureza inferior e completamente diferente da dele? Talvez, por essa natureza não lhe ser assim tão diferente.
O homem é obra de Deus e toda obra existe, antes, no espírito do seu criador. Por isso, o homem, antes de existir, foi pensado por Deus e, assim, gerado do interior do ser divino. A carne não é estranha a Deus porque nela ela esteve antes de ser.
Deus permanece em nós mesmo quando passamos a ser mais do que uma ideia dele. Somos a expressão do seu ser e, por isso, carregamos em nós sua essência. Somos semelhantes a Deus porque trazemos sua imagem, por refletirmos seu ser em nós.
Independentemente de tudo aquilo que nos afasta de sua perfeição e pureza, há uma fagulha divina que sobrevive em nosso ser mais profundo. O que temos de Deus não é toda a sua infinitude, mas resquícios dos seus atributos. Somos como pequenos deuses, cópias imperfeitas daquele que nos criou. Seus atributos estão todos em nós, mas de maneira atenuada, parcial e dependente dele.
De qualquer forma, a humanidade, a carnalidade, não é estranha a Deus. Rebaixar-se a ela não foi um ato de alguém que desce ao desconhecido, mas que se permite envolver-se na realidade inferior que conhece muito bem.