Surge um novo credo

No último dia 04 de maio, completou-se um ano desde a publicação de uma nova biografia do Papa Emérito Bento XVI, escrita pelo jornalista alemão Peter Seewald e lançada pela editora Droemer Knaur, com sede em Munique, sob o título “Benedikt XVI – Ein Leben” (“Bento XVI – Uma Vida”)[i]. Em uma longa entrevista no final do livro de 1.184 páginas, o Papa Emérito disse que a sociedade moderna está formulando uma espécie de “credo anticristão”, e castigando aqueles que resistem com a “excomunhão social”. “Cem anos atrás”, continuou Bento XVI, “todos teriam pensado que era absurdo falar sobre casamento gay”. Ora, tal “credo” talvez passasse despercebido por muitos de nossos contemporâneos, não fosse pelo fato de que ele, ao que tudo indica, está sendo professado também por indivíduos que pertencem ao seio da Igreja Católica. Sem o menor escrúpulo, clérigos e leigos da Alemanha têm apoiado abertamente, por exemplo, a bênção do “casamento” gay[ii], e a comunhão para não-católicos[iii]. Tristemente, esse comportamento tem tido eco em outras partes da Europa[iv], e é evidente, pelos documentos do magistério da Igreja[v], que tais práticas fazem parte de um outro “credo”, que opõe-se àquele católico, ou seja, estamos testemunhando uma mudança de paradigma. O “credo anticristão” não se origina da Revelação, da Sagrada Escritura, da Tradição ou do Magistério da Igreja, mas do “politicamente correto”, de uma vaga e ambígua “consciência social”, ou de valores e concepções filosófico-teológicas de tradições religiosas estranhas ao cristianismo, entre outras fontes heterodoxas. Tradicionalmente, “um paradigma se refere precisamente a um exemplo concreto, a um padrão determinado, que é claro, visual e que pode servir de referência para realizar determinada ação. O exemplo se torna um modelo a seguir”[vi].

Alguém poderia bradar com veemência: “é tudo culpa do Concílio Vaticano II”! Seria uma exclamação demasiado simplista para um problema delicado e complexo como o é esse da mudança de paradigma. É preciso perguntar: “a culpa está no Papa João XXIII – que convocou o Concílio – e nos Padres conciliares, ou ela está nos inimigos infiltrados que espalharam aos quatro ventos a expressão ‘espírito do Concílio’, como que criando um ‘mantra’ que viria a justificar todo tipo de abuso e de interpretação tendenciosa e distorcida dos textos?” O Papa João XXII foi muito claro ao anunciar a finalidade principal do Concílio: “O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz”[vii]. Não é aceitável afirmar que ele mentiu. Mais recentemente, em 2012, por ocasião do 50º aniversário do Concílio Vaticano II, o Papa Bento XVI declarou:

 

“Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, ‘renová-las’ de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares”[viii].

 

Também não é aceitável afirmar que Bento XVI mentiu. Contudo, é inegável que o esforço pela mudança de paradigma – que já vinha se insinuando há muito tempo no interior da Igreja – ganhou impulso notável a partir da década de 1960. Tanto foi assim que o Papa Paulo VI, a quem coube encerrar o Concílio Vaticano II, dramaticamente declarou:

“Neste momento há na Igreja uma grande inquietação. O que está em questão é a fé! O que me perturba quando considero o mundo católico, é que, dentro do catolicismo, algumas vezes, parece predominar um pensamento não-católico; pode acontecer que este pensamento não-católico, dentro do catolicismo, amanhã seja a força maior na Igreja, mas nunca será a Igreja”[ix].

 

Apesar das retas intenções dos papas e dos Padres conciliares (ao menos em sua esmagadora maioria), durante os anos pós-conciliares ocorreu efetivamente o start de uma revolução, da implementação de um “culto da mudança”, onde a novidade tornou-se um elemento obrigatório, fazendo com que todos os que se alicerçam na sabedoria perene, na moral tradicional, na herança cultural dos antepassados, no depositum fidei[x] fossem condenados como obscurantistas, rígidos, fundamentalistas, etc.

 

O otimismo revolucionário

É indispensável recordar que o “clima” dos anos conciliares era de euforia, otimismo e esperança, como se naquele momento a Igreja estivesse prestes a ascender a um estágio de plena e bem-sucedida influência benéfica sobre as culturas e nações da Terra; cabe aqui, porém, lembrar as palavras proferidas por Joseph Ratzinger, no verão de 1986, durante sua pregação de exercícios espirituais aos sacerdotes do movimento Comunione e Liberazione:

“O otimismo poderia ser simplesmente uma cobertura, sob a qual escondia-se justamente o desespero que se queria superar. Mas poderia também tratar-se de algo pior: esse otimismo metódico teria sido produzido por aqueles que desejavam a destruição da velha Igreja, e que, sem tanto ruído, com o manto protetor da reforma, quereriam construir uma Igreja completamente diferente, ao seu gosto, que porém não poderiam iniciar para não desvelar cedo demais as suas intenções. Então, o público otimismo era uma espécie de tranquilizante para os fiéis, com o objetivo de criar o clima adaptado a desfazer, possivelmente em paz, a Igreja, e assim adquirir o domínio sobre ela. O fenômeno do otimismo teria, portanto, duas faces: por um lado, supõe a beatitude da confiança, ou melhor, a cegueira dos fiéis, que se deixam acalmar por boas palavras; por outro lado, consiste em uma consciente estratégia de mudança da Igreja, na qual nenhuma outra vontade superior – vontade de Deus – nos perturba mais, nem inquieta mais a consciência, enquanto a nossa própria vontade tem a última palavra”[xi].

 

Na medida em que alguns membros da Igreja Católica, imersos numa espécie de estranho otimismo, rebelam-se contra o edifício teológico erigido com base na Revelação e na Doutrina dos Apóstolos, tentando “desconstruí-lo”[xii], produz-se uma mudança de paradigma no seio dessa mesma Igreja, inicia-se uma revolução baseada sobretudo numa violenta e nefasta onda de ressignificação, e a promoção de uma ressignificação no interior da Igreja Católica equivale à promoção da metamorfose dessa mesma Igreja, tornando-a não mais a Igreja de Jesus Cristo, mas algo semelhante a uma pós-Igreja.

Assim, temos a impressão de que toda revolução no seio da Igreja tem sido ornada por um otimismo enganoso, uma excitação, uma “cortina de fumaça” composta de novidades, que dissimula as verdadeiras intenções do inimigo, ao mesmo tempo que produz uma atmosfera de impaciência pelo novo.

Vejamos o testemunho do jornalista e professor italiano Giuseppe Gennarini, catequista itinerante que introduziu nos Estados Unidos o Caminho Neocatecumenal, e que experimentou na juventude o “otimismo” socialista, um dos pais da Teologia da Libertação, e que produziu rebeldia e mudança de paradigma no seio da Igreja durante mais de meio século:

 

“Nesse meio-tempo, enquanto eu estava fazendo minha tese sobre o conceito de homem segundo Marx, chegou o célebre ano de 1968, que foi um ano de uma grande comoção. Eu sempre havia sido bastante rebelde, também por minha história pessoal em minha família, sendo o mais novo de meus irmãos; e aquele 1968 com sua ‘revolução’ me caiu muito bem. (…) Nós estudantes deixamos de estudar, e nas aulas interrompíamos o professor – que estava ali falando como eu agora – nos sentávamos em sua escrivaninha e lhe dizíamos: ‘não podes falar de literatura italiana, tu não podes falar de literatura latina, enquanto houver injustiça nas estruturas sociais; porque, dando esse conteúdo, tu estás confirmando a injustiça da sociedade. Nós temos que fazer a revolução. Assim, em vez de falar em Platão, em vez de falar de Dante Alighieri, agora falaremos de marxismo, de Lenin e da revolução’.

Isso foi o que fizemos. Muitos professores cederam; queriam agradar os estudantes. Isso contribuiu para a destruição da Universidade e das escolas na Itália. Eu contribuí para isso. Talvez este curso é parte do purgatório que eu mereço. (…)

Então, em meio a essa ‘revolução’ na qual tínhamos assembleias que duravam horas, com intermináveis discussões, eu entrei em crise porque havia visto que esta ideologia marxista não era capaz de dar-nos uma condução moral. (…)

As pessoas eram prescindíveis, porque a única verdade era o avanço da revolução. A pessoa que estava ao teu lado, se estava sofrendo ou não, não importava. Isso não era importante, o ‘privado’ não tinha importância. Definitivamente, as relações eram muito superficiais e egoístas, uns usavam os outros”[xiii].

 

O espírito de contestação, tão evidente na década de 1960, infiltrou-se na Igreja Católica para nunca mais deixá-la. Porém, engana-se quem pensa que essa atitude de contestação, ávida de reformas, começou com o Concílio Vaticano II, ou com a revolução estudantil de 1968. Já em 1950 o famoso teólogo dominicano francês Yves Congar[xiv], entusiasta do ecumenismo[xv], publicava o seu livro “Vraie et fausse reforme dans l’Église” (“Verdadeira e falsa reforma na Igreja”), no qual afirma:

 

“Esta Igreja que, tal como é, deve ser aceita e não aceita ao mesmo tempo. Se não é aceita, far-se-á uma Igreja diferente, que não será ela – a menos que se fracasse miseravelmente e não se consiga nada – e, portanto, não será reformada. Se aceitamo-la como está, não mudar-se-á nada nela e, por isso, já não será reformada. Não se deve mudar a Igreja e, entretanto, deve-se mudar algo nela. Não há que fazer outra Igreja, mas, em certo sentido, há que fazer uma Igreja outra, diferente”[xvi].

 

O processo revolucionário

O leitor, com toda razão, a esta altura deve estar preguntando-se: “Como a Igreja chegou a esse ponto”? A palavra-chave para a compreensão desses eventos é “sabotagem” (consciente ou inconsciente), que é uma das ferramentas revolucionárias.

A mentalidade revolucionária certamente tem acompanhado a humanidade durante toda a sua história[xvii], e deixou traços de sua existência até no seio da Igreja Católica, como é o caso, por exemplo dos escritos do Pe. Jean Meslier (1664-1729), um vigário de aldeia que viveu na mais esquecida das Ardenas francesas esquecidas, e que expressou toda a sua indignação contra a opressão e as injustiças sociais cometidas contra os camponeses durante o reinado de Luís XIV, opondo-se claramente à religião cristã um século antes de Nietzsche e algumas décadas antes do surgimento do marquês de Sade, e preconizando, muito antes dos jacobinos, dos anarquistas e dos bolcheviques, a união de todos os explorados e oprimidos em torno do estrangulamento do último rei com as tripas do último padre:

 

“Talvez pensem, meus caros amigos, que, entre tantas religiões que existem no mundo, a minha intenção seria a de excluir, pelo menos desse número, a religião cristã, apostólica e romana, que professamos, e da qual dizemos ser a única que reconhece e que adora como deve ser o verdadeiro Deus, a única que conduz os homens no verdadeiro caminho da salvação e de uma eternidade feliz. Mas desenganai-vos, meus queridos amigos, desenganai-vos disso e, de uma forma geral, de tudo o que os vossos piedosos ignorantes, ou escarnecedores e interesseiros, padres e doutores se esforçam por vos dizer e fazer acreditar, sob o falso pretexto da certeza infalível da sua pretensa santa e divina religião. Vós não sois menos seduzidos nem menos enganados do que os que são mais seduzidos e enganados. Não estais menos imbuídos do erro do que aqueles que nele se encontram mais profundamente mergulhados. A vossa religião não é menos ilusória nem menos supersticiosa do que qualquer outra. Não é menos falsa nos seus princípios nem menos ridícula e absurda nos seus dogmas e nas suas máximas. Não sois menos idólatras que aqueles que censurais e que vós próprios acusais de idolatria. Os ídolos dos pagãos e os vossos só diferem nos nomes e nos rostos. Numa palavra, tudo o que os vossos padres e doutores vos pregam com tanta eloquência sobre a grandeza, a excelência e a santidade dos mistérios que vos fazem adorar, tudo o que vos contam com tanta gravidade da certeza dos seus supostos milagres e tudo aquilo que vos papagueiam com tanto zelo e tanta segurança sobre a grandeza das recompensas do céu e sobre os horríveis tormentos do inferno não passam, no fundo, de ilusões, de erros, de mentiras, de ficções e de imposturas inventadas  inicialmente por políticos sutis e manhosos, continuadas por sedutores e por impostores, posteriormente recebidas e seguidas cegamente por povos ignorantes e rudes, e, finalmente mantidas pela autoridade dos grandes e dos soberanos da Terra que favoreceram os abusos, os erros, as superstições e as imposturas, que as autorizaram mesmo com as suas leis a fim de manter assim o comum dos homens com a rédea curta e fazer deles tudo o que quisessem. (…)

Ah!, meus caros amigos, se soubessem a inutilidade e a loucura dos erros de que vos convencem sob o pretexto da religião, se soubessem como abusam, injusta e indignamente, da autoridade e usurpam em detrimento de vós sob o pretexto de vos governar, sentiríeis apenas certamente desprezo por tudo o que vos fazem adorar e respeitar, ódio e indignação por todos aqueles que vos enganam e vos governam tão mal e que vos tratam de uma forma tão indigna. Isto lembra-me uma história de um desejo outrora expressado por um homem, que não tinha ciência nem estudos, mas a quem, segundo as aparências, não faltava bom senso para avaliar judiciosame todos estes detestáveis abusos e todas as detestáveis tiranias que eu aqui vitupero. Parecia que, pelo seu desejo e pela maneira de exprimir o seu pensamento, era capaz de ver longe e penetrar profundamente nesse detestável mistério de iniquidade de que falei atrás, uma vez que reconhecia perfeitamente os seus autores e fautores. Ele gostaria de ver todos os grandes da Terra e todos os nobres enforcados e estrangulados com as tripas dos padres. Esta expressão não deve deixar de parecer rude, grosseira e chocante, mas é preciso confessar que ela é franca e ingênua. É curta, mas eloquente, uma vez que exprime em poucas palavras tudo o que este gênero de pessoas mereceria.”[xviii]

 

Fica claro pela breve análise do que trouxemos à luz até aqui, que a mentalidade revolucionária que atingiu a Igreja Católica é menos recente do que se poderia estimar em uma análise superficial, e que a sua aceitação implicaria uma “mudança de paradigma”, que modificaria o modo de fazer Teologia e de interpretar a Escritura, a Tradição e os documentos do Magistério, ou seja, estaria estabelecida aquela Igreja outra que desejava Yves Congar.

Assim, se a Igreja foi atingida pela mentalidade revolucionária, se isso pode levar a uma mudança de paradigma, e se a principal ferramenta utilizada nesse processo é a sabotagem, resta-nos verificar como esta tem sido empregada pelos inimigos. Basicamente essa sabotagem tem acontecido em duas formas principais: a infiltração, e a ressignificação – esta última elimina obstáculos tendo em vista outras duas formas de sabotagem: a protestantização e a marxização. Não é possível esgotar neste artigo os exemplos de cada uma destas formas; vamos, porém, citar alguns, comentando-os brevemente.

 

 

Infiltração

É fato histórico que toda perseguição contra a Igreja Católica produziu mártires, testemunhas da fé que preferiram resistir até o sangue do que abandonar o seguimento de Cristo e a fidelidade à sua doutrina. Uma tal muralha de resistência impedia definitivamente os inimigos de destruírem a Igreja desde fora. Assim, não é de estranhar que mudassem de estratégia, tramando para destruir a Igreja a partir de dentro, por infiltração. A ingenuidade e o excessivo otimismo de muitos católicos foram uma das fendas por onde a “fumaça de Satanás”[xix] invadiu a Igreja. A infiltração é a mais covarde e a mais terrível das estratégias para tentar destruir um oponente. Infiltrar inimigos na hierarquia da Igreja significou “amarrar” as mãos de muitos pastores que já não sabiam a quem confiar segredos administrativos, nem a quem pedir conselhos, passando a “voar às cegas” sem ter certeza se a direção que estavam tomando levava ao pouso seguro, ou ao desastre total.

 

“Os engenheiros do Vaticano II foram Karl Rahner, Edward Schillebeeckx, Hans Küng, Henri de Lubac e Yves Congar. Todos os cinco homens foram vigiados sob supeita de modernismo ante Pio XII. Karl Rahner, S.J., teve mais influência do que qualquer outro sobre a teologia do Vaticano II – tanto que se poderia dizer que o Vaticano II é simplesmente rahnerianismo. (…) O Cardeal Ottaviani tentara convencer Pio XII a excomungar Rahner em três ocasiões, mas sem sucesso. A sorte de Rahner inverteu quando João XXIII o designou como peritus, ou especialista, para o Vaticano II. (…) Rahner foi incumbido de reestruturar a doutrina da Igreja para tempos modernos, e o resultado foi o documento rahneriano Lumen Gentium. Rahner introduziu uma nova eclesiologia na qual a Igreja de Cristo não é a Igreja Católica, mas mais precisamente ‘subsiste na Igreja Católica’.”[xx]

 

Bella V. Dodd, italiana de nascimento, imigrou ainda criança para a América, foi membro do Comitê Nacional do Partido Comunista dos Estados Unidos, integrante dos conselhos secretos, participou de reuniões estratégicas no curso de anos decisivos para a história recente da América e do mundo. Numa palestra proferida em 1953 na Fordham University, uma universidade católica outrora bastante conceituada em Nova York, a já convertida Sra. Dodd declarou:

 

“No final dos anos 20 e nos anos 30 eu pessoalmente coloquei 1.100 homens no sacerdócio com o intuito de enfraquecer a Igreja Católica a partir de dentro. A ideia era que esses homens fossem ordenados e progredissem para posições de autoridade e influência, como monsenhores e bispos… não para destruir a instituição da Igreja, mas sim a fé do povo, e inclusive usar a instituição eclesiástica, se possível, para destruir a fé através de uma pseudo-religião. Algo que seria parecido com o catolicismo, mas que não seria isso de fato. Uma vez que a fé fosse destruída, um complexo de culpa começaria a ser introduzido na Igreja… para rotular a ‘Igreja do passado’ como sendo opressiva, autoritária, cheia de preconceitos, arrogante em se arvorar na única possuidora da verdade e responsável pelas divisões religiosas ao longo dos séculos. Isto seria necessário para constranger as lideranças da Igreja na direção de uma ‘abertura ao mundo’, e para uma atitude mais flexível em relação a todas as religiões e filosofias. Os comunistas então explorariam essa abertura no sentido de minar as defesas da Igreja”[xxi].

 

            Em seu livro “School of Darkness: The Record of a Life and a Conflict Between Two Faiths” (“Escola das Trevas: o registro de uma vida e de um conflito entre duas crenças”), a Sra. Dodd afirma:

 

“Quando organizavam trabalhadores católicos – irlandeses, poloneses e italianos – em sindicatos, os comunistas sempre plantavam uma celeuma entre os católicos leigos e os padres, bajulando o laicato e atacando os padres[xxii]”.

 

Na década de 1960, uma enfermeira católica francesa, Marie Carré (1905-1984), atendeu uma vítima de acidente de automóvel que foi trazida para seu hospital, em uma cidade cujo nome ela propositalmente não mencionou. O homem permaneceu ali, perto da morte, por algumas horas e depois morreu. Ele não tinha nenhuma identificação com ele, mas ele tinha uma pasta na qual havia um conjunto de notas quase biográficas. Ela guardou essas notas e as leu e, devido ao seu conteúdo extraordinário, decidiu publicá-las. O resultado foi um pequeno livro, “AA-1025 – Memoirs of the Comunist Infiltration Into the Church” (“AA-1025 – Memórias da Infiltração Comunista na Igreja”), publicado originalmente na França em 1972, sobre um comunista que propositalmente entrou no sacerdócio católico (junto com muitos, muitos outros) com a intenção de subverter e destruir a Igreja a partir de dentro. Eis o testemunho desse homem:

 

“Desde que eu entrei no Seminário, devia dedicar-me a descobrir a forma de destruir tudo o que me ensinavam. Para isso, devia estudar atenta e inteligentemente, ou seja, sem paixão alguma, a História da Igreja. Não devia perder nunca de vista que as perseguições não servem mais que para fazer mártires que os católicos utilizam de pretexto para dar razões de sua linhagem de católicos. Assim, não haverá mais mártires. Não se deve esquecer que todas as religiões estão baseadas no medo, o medo ancestral, todas vêm daí. Conclusão: se eliminamos o medo, eliminaremos as religiões. Mas não é o suficiente. Cabe a ti descobrir bons métodos – disse-me o Tio enquanto eu me afundava em alegria –, vais escrever-me todas as semanas brevemente para enviar-me todos os assuntos e ideias que queiras que espalhemos pelo mundo, com uma breve explicação do porquê deles. Depois de um tempo, curto ou longo, serás posto em contato direto com a rede. Ou seja, terás dez pessoas que seguirão tuas ordens, as quais por sua vez terão outras dez sob seu comando. As dez pessoas que estiverem diretamente sob tuas ordens não vão te conhecer diretamente. Sempre serei eu o intermediário. Dessa forma, jamais serás denunciado. Temos já numerosos sacerdotes em todos os países onde está presente o catolicismo, mas tu jamais conhecerás nenhum, nem eles te conhecerão. Um deles é bispo. Talvez tu tenhas contato com ele; isso depende do grau que alcances. (…)

Pedi, pois, a “Olhos Azuis” que me ouvisse em confissão e contei-lhe todo o essencial, que era comunista, e era parte dos serviços secretos, da divisão de ateísmo militante, que havia assassinado um religioso polaco que disse que eu não tinha vocação para o sacerdócio. Estranhamente, “Olhos Azuis” acreditou em mim imediatamente. Eu teria podido então inventar qualquer tipo de história. Teve primeiro o reflexo banal de falar sobre minha salvação eterna. Eu quase comecei a rir. Achava ele que eu tinha um mínimo átomo de fé? Então lhe expliquei que não acreditava nem em Deus nem no demônio. Uma confissão assim devia ser algo completamente novo para ele. Quase me compadeci dele. “O que tu esperas ao pedir as Ordens Sagradas?” Eu fui totalmente franco, e clarifiquei minhas intenções: “Destruir a Igreja a partir de dentro”[xxiii].

 

Ressignificação

O Padre jesuíta Karl Rahner foi, muito provavelmente, o teólogo mais influente do século XX e ainda hoje é tido como uma referência incontornável aos estudiosos da Teologia Católica; entretanto, não é difícil encontrar em sua obra o gosto por reinterpretações – mães da ressignificação. Já doutor em Teologia, Rahner recebeu, em 1937, uma carta de Martin Honecker (1888-1941)[xxiv], na qual este filósofo católico que foi seu orientador de tese, afirma que sua tese doutoral em Filosofia não poderia ser aceita como estava, pois considerava toda a sua interpretação de Santo Tomás de Aquino “equivocada por seu método e por seus resultados”, lendo Santo Tomás em uma perspectiva moderna que o desfigurava[xxv].

 

“Rahner pretendia descobrir nos textos de Santo Tomás de Aquino uma filosofia do conhecimento imanentista, na qual o homem não tem acesso ao mundo exterior, mas apenas ao seu próprio ser. Essa interpretação dos textos tomistas foi rejeitada por Martin Honecker por ter ‘falsificado o ensinamento do santo doutor atribuindo-lhe pontos de vista que lhe eram estaranhos’. De fato, segundo Bernard Sesboüé, Rahner demonstrava na sua tese ‘uma orgulhosa indiferença pela bibliografia’ especializada, pretendendo ler Tomás de Aquino diretamente, mas sempre com suas lentes marechalianas”[xxvi].

 

A influência de Rahner já havia sido notada por alguns membros do clero alemão. Em 1943, o Arcebispo de Freiburg im Breisgau, Conrad Gröber (1872-1948), escreveu uma carta ao episcopado alemão e austríaco denunciando o que ele considerava como inovações preocupantes no meio eclesiástico de língua alemã, e elencando dezessete pontos, entre os quais “a falta crescente de interesse pela teologia naturalis”, a “crescente desvalorização da filosofia e da teologia escolástica”, “o influxo crescente da dogmática protestante sobre a formulação católica da fé”, “a abertura de fronteiras no tocante a outras igrejas”, “a acentuação excessiva do sacerdócio universal”, “o fato de afirmar que a comunhão dos fiéis pertence à plenitude da eucaristia e até mesmo à sua essência”, “a tentativa de converter as missas comunitárias em algo obrigatório”, “a tentativa de aproximar-se do povo na missa, até mesmo utilizando a língua alemã”[xxvii].

Adepto de tantas posições heterodoxas, de posicionamentos práticos tão criticáveis, de um pensamento que se aproxima tanto da linha divisória entre a genuína doutrina católica e a heresia, Rahner tornou-se, além de um dos pais da monstruosidade chamada mudança de paradigma na teologia católica, uma fonte relevante de matéria-prima para produção de relativização de conceitos, parindo ramos teológicos que se utilizam da ressignificação na sua estrutura. Certa vez, escreveu:

“Em princípio, não é anticristão, nem contrário à piedade, o fato de alguém se perguntar se a Igreja pode mudar a legislação sobre o celibato e até se deve mudá-la, dada a situação pastoral da Igreja no futuro. Não é nenhum dogma que uma celebração penitencial não possa ter, de nenhum modo, um caráter sacramental. Não está inteiramente esclarecido onde se encontram as fronteiras para uma intercomunhão [de igrejas] aberta. Não está claro que os separados que voltam a se casar depois de um primeiro casamento não possam ser admitidos, em nenhum caso, aos sacramentos, enquanto se mantiverem fiéis em seu segundo casamento enquanto tal. Não se pode apresentar o mandamento eclesiástico do domingo como se fosse um mandamento divino, já revelado no Sinai e válido para sempre. Também não são tão claras, como às vezes se pensa, as formas em que uma consciência, até mesmo cristã, pode responder no tocante à lei punitiva do Estado contra a interrupção da gravidez. Uma vez que nenhum partido político concreto é sempre, em cada caso, totalmente cristão, e dado que um partido, através de seus graves pecados de omissão, pode agir de maneira muito suave, mas que de fato é maciçamente anticristã, não é tão simples afirmar quando um partido já não pode ser votado pelos cristãos e os católicos”[xxviii].

Rahner não representa sozinho, nem conduziu sozinho todo o movimento de tentativa de ressignificação, que começou a ser notado mais claramente a partir dos anos de 1950, mas é inegável que o fato de ele não ter sido apenas um escritor de obras densas sobre temas filosóficos e teológicos, mas também figura de grande influência na Igreja Católica e militante de várias causas, além de participar de várias publicações coletivas de grande repercussão, tendo sido um dos fundadores e editores da revista Concilium, que se notabilizou como canal de propagação e defesa das teses teológicas mais ousadas (o que, quase sempre, significa menos ortodoxas) no período pós-conciliar, tudo isso unido às suas diversas viagens, apresentando conferências em importantes universidades – esteve diversas vezes nos Estados Unidos, Canadá, Suíça e Hungria, visitou também Espanha, Inglaterra, Polônia, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Chile e a República Democrática Alemã – recebendo quinze doutorados honoris causa e diversos prêmios na Alemanha Ocidental, participando de programas de televisão, envolvendo-se em questões eclesiásticas polêmicas, formou uma atmosfera teológica na Igreja Católica em que o fazer teológico de Rahner parcia – e parece até hoje – onipresente.

 

Protestantização

Já o denunciava Pio XII: “Nestes últimos séculos… quiseram a natureza sem a graça… Cristo sim e a Igreja não (Revolução humanista e protestante)… depois Deus sim e Cristo não (Revolução liberal)… ao fim, o grito ímpio: Deus está morto (Revolução comunista)”[xxix].

A protestantização da Igreja Católica em alguns ambientes é uma realidade, numericamente às vezes pequena, mas portadora de um modelo de Igreja que agrada a não poucos católicos progressistas. Reconhece no Papa tão somente um primado de honra, mas não aceita que ele seja infalível, nem que tenha jurisdição sobre os bispos. Deseja eleger bispos por sínodos compostos de clérigos e leigos. Na Santa Missa dá comunhão eucarística a todos, basta que sejam batizados em uma das várias confissões cristãs. Administra absolvição coletiva dos pecados. Concede segundas núpcias aos divorciados.

O protestantismo prega que a fé sozinha salva, mas não se preocupa com a questão que evidentemente surge em decorrência dessa crença: fé em quê? Para um protestante, trata-se de uma aceitação subjetiva de um “jesus” salvador, não da aceitação real d’O Jesus Salvador. Isso por uma razão bem simples: na teologia protestante pratica-se a “livre interpretação da Bíblia”, e se cada um interpreta diferentemente a Escritura, o objeto da fé não é exatamente o mesmo em todas as denominações, nem mesmo em todos os corações.

É correto dizer que existe um “patrimônio comum” entre todos os cristãos, ou seja, que há certos pontos de concordância entre as várias denominações cristãs, e daí falar-se em diálogo ecumênico. Mas a palavra “ecumênico” sempre foi usada no sentido de uma reunião do conjunto dos bispos da Igreja. Assim, por exemplo, um Concílio que reúna os bispos do mundo todo é um concílio ecumênico, mesmo se não houver nenhum não-católico presente. Infelizmente esta palavra começou a ser usada no fim do século passado para definir um movimento surgido nos meios protestantes, que busca fazer uma reunião meramente jurídica de todas as suas denominações.

Um erro comum nos ambientes em que se deseja promover o ecumenismo é pensar que não deve haver divergências, nem opiniões contrárias, nem cultivo ou expressão de uma fé com identidade própria. Ora, isso já não é ecumenismo, mas irenismo, que é o mesmo que pacifismo, a palavra portuguesa deriva da palavra grega ειρήνη (eirene), que significa paz. É um conceito que evita sempre toda e qualquer polêmica. O irenismo defende que é errado lutar contra os erros e heresias, e que se deve atrair os hereges com uma atitude pacifista, sem combatividade. Esse erro foi condenado na encíclica Mortalium Animos[xxx] de Pio XI, publicada em 06 de janeiro de 1928:

 

“Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império. Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada (n. 3).

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela (n. 16)”.

 

Observe-se que ser pacifista não é o mesmo que ser pacífico. Ser pacífico é ser manso, e está entre as bem-aventuranças anunciadas por Cristo (Cf. Mt 5,5). Ser pacifista, diferentemente, é impor, exigir, ou promover a paz a todo custo, custe o que custar.

Se não houver uma clara orientação aos católicos quanto ao que é efetivamente parte genuína da sua fé (seja na liturgia, na teologia, na doutrina, ect.), o ecumenismo pode tornar-se, e de fato em muitas situações têm-se tornado, protestantização, mudando os paradigmas teológicos, e, portanto, a vivência da fé católica na Igreja.

 

Marxização

O processo de inserção de elementos marxistas no pensamento católico é o que poderíamos chamar de marxização. Gustavo Corção, em seu artigo “O esvaziamento católico” para o jornal “O Globo”, de 13 de setembro de 1975, já percebia esse fenômeno como parte de uma “enxurrada de impurezas”:

 

“Estamos cansados de clamar contra a enxurrada de impurezas que se instalou intra muros Ecclesiae pelas portas que a própria hierarquia católica abriu, ‘num gesto largo e, moscovita’ como diria Fernando Pessoa com especial propriedade. Queixamo-nos da infiltração marxista, e dela podemos dizer o que disse Santo Agostinho dos que duvidavam da imprescindível função da Igreja na salvação das almas: ‘quis negat’? E ninguém, que eu saiba, ousou erguer a voz contra a severa interrogação do Bispo de Hipona. Ou, se alguém falou, seu insignificante balido não atravessou quinze séculos. Queixamo-nos da invasão do secularismo, da penetração do protestantismo que foi convidado a colaborar na mutilação da Santa Liturgia. Com cócegas nos ouvidos e inebriados de aberturas, os homens da Igreja escancaravam as portas, e tudo teve licença e convite para entrar, tudo![xxxi]

 

A bem da verdade, não há como falar em marxização da Igreja Católica sem mencionar o seu mais importante e contundente instrumento facilitador: a Teologia da Libertação. Em cada vez mais Seminários, diversas teologias políticas e da libertação estão sendo ensinadas como doutrinas cristãs, a ponto de muitos católicos começarem a questionar se a ameaça de invasão de um novo poder herege, como o marxismo, no seio da Igreja já não está se tornando realidade. Tristemente, a resposta é positiva, e essa invasão foi iniciada há décadas.

Arthur F. McGovern, Padre jesuíta, destacado e convicto apologista do novo anticapitalismo jesuítico, publicou em 1980 um livro sobre a matéria – Marxism: An American Christian Perspective – expondo, em muitas ocasiões, francamente o que pensa. Essencialmente, McGovern diz que o marxismo foi e é uma crítica social, pura e simplesmente. Marx queria, apenas, que pensássemos mais claramente nos meios de produção, em como as pessoas produzem; e nos meios de distribuição, nas pessoas que possuem e controlam os meios de produção[xxxii]. McGovern vê em Jesus, tal como foi apresentado no Evangelho segundo São Lucas, um modelo de revolução. O Evangelho de São Lucas é um “evangelho social”, diz ele, citando Jesus em apoio de sua causa: “Vim para pregar a boa-nova aos pobres, libertar os oprimidos, redimir os cativos”. “Vejam”, acrescenta McGovern, “quantas vezes Jesus fala na pobreza; identifica-se com os pobres; critica aqueles que lançam ônus sobre os pobres”. Está claro para McGovern, portanto, que Jesus reconhecia a “luta de classes” e endossava a “revolução”[xxxiii]. Clérigos e teólogos de várias Congregações e nacionalidades começaram, de maneira mais evidente nos anos de 1980, a dedicar-se à “luta de classes”. O Padre jesuíta peruano, Gustavo Gutierrez, dá ao povo latino-americano uma espécie de manual da Teologia da Libertação, cujo quadro de honra inclui um número notável de destacados jesuítas como Jon Sobrino, Juan Luís Segundo e Fernando Cardenal.

 

“Rapidamente, dezenas e dezenas de jesuítas começaram a trabalhar, com a paixão e o zelo que sempre lhe foram característicos, pelo sucesso dos sandino-comunistas na Nicarágua; e quando os sandinistas tomaram o poder, aqueles mesmos jesuítas assumiram cargos cruciais no governo central e atraíram outros para participarem em vários níveis regionais. Enquanto isso, em outros países centro-americanos, os jesuítas não apenas participavam no treinamento de quadros marxistas em guerrilhas, mas alguns se tornaram também guerrilheiros. Inspirados pelo idealismo que viam na Teologia da Libertação, e encorajados pela independência inerente à nova ideia da Igreja como um grupo de comunidades autônomas, os jesuítas achavam que tudo era permitido – e mesmo estimulado – desde que promovesse o conceito da nova ‘Igreja do povo’.

Aqueles homens eram o sonho e o ideal dos verdadeiros teólogos da libertação. Pois eles eram os combatentes, os quadros que levaram a Teologia da Libertação de teoria para o que chamavam de práxis – a implementação da revolução popular pela libertação econômica e política. Daquela práxis, insistiam os teólogos da libertação, ‘lá de baixo, entre o povo’, viria toda a verdadeira teologia, para substituir a velha teologia que certa vez fora imposta autocraticamente ‘de cima’ pela hierarquia da Igreja Romana.[xxxiv]

 

O então Cardeal Joseph Razinger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano, escreveu, em 1984, “Eu vos Explico a Teologia da Libertação”[xxxv], uma exposição sobre a Teologia da Libertação de conotação marxista, mostrando que essa teologia não tem apenas a intenção de desenvolver a ética social cristã em vista da situação sócio-econômica da América Latina, mas “revolve todas as concepções do Cristianismo”: doutrina sobre a fé, estruturação da Igreja, Liturgia, catequese, opções morais, etc. Crê-se que “a gravidade da Teologia da Libertação não seja avaliada de modo suficiente”; “não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente”; é a “subversão radical do Cristianismo”, é uma nova versão do racionalismo de Rudolf Bultmann e do marxismo, que utiliza a linguagem dogmática da fé católica e se reveste de aspectos de mística cristã.

A orientação segura que nos dá a Igreja sobre esse tema, é expressa de forma muito clara e acessível na “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”[xxxvi], da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, quando diz que:

 

“a impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de ‘análise marxista’. (…) Uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América Latina (…); A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como é vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, ‘seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz’.”[xxxvii]

 

É verdade que a Instrução da Congregação para Doutrina da fé de 1984 fala em “teologias da libertação” (nº IV, 3), assim como a exposição do mesmo ano do Cardeal Ratzinger,“Eu vos Explico a Teologia da Libertação”, menciona que há posições que “propõem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristão para com os pobres e os oprimidos no contexto de uma correta teologia eclesial” (nº 1). Assim, todo teólogo católico que se diz “da libertação” precisa fazer o seu exame de consciência para avaliar se está espalhando doutrina marxista no seio da Igreja, consciente ou inconscientemente. Não é suficiente que o teólogo sinta estranhamento em avaliar-se como marxista para dar como certo que não o seja de fato. Assim, o que não pode faltar da parte dos teólogos, dos consagrados, dos leigos e dos clérigos é avaliarem que tipo de hermenêutica utilizam na sua teologia e na sua visão de Igreja (eclesiologia). O adepto da teologia da libertação de cunho marxista sempre apresentará ao menos uma destas características típicas: práxis revolucionária de classes; descrédito a priori pela hierarquia e sobretudo o Magistério romano, como pertencentes à classe dos opressores; releitura política da Escritura; perspectiva de um messianismo temporal (o Reino de Deus é aqui!); afastamento da Tradição; inversão dos símbolos (assim, por exemplo, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo, se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo); as relações entre a hierarquia e a “base” tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes; dessacralização dos mistérios da fé, dos milagres, da vida espiritual, das “coisas do alto” (Cl 3,1-2), privilegiando a análise sociológica dessas realidades; apoio a partidos políticos de esquerda e forte simpatia por eles, colaborando de forma silenciosa ou explícita com suas agendas; gosto pela transgressão, pela contestação e por reformas eclesiais revolucionárias; visão da Eucaristia como “celebração do povo na sua luta”; criatividade litúrgica baseada na indiferença quanto aos ritos aprovados pela Igreja; visão exageradamente otimista sobre o sacerdócio comum, em detrimento do sacerdócio ministerial e do celibato.

Na prática, nota-se que a Teologia da Libertação realmente existente não é aquela que foi anunciada por alguns de seus fundadores. Adepto da Teologia da Libertação, Clodovis M. Boff, OSM fez uma análise certeira sobre a gravidade dos equívocos:

 

“Que acontece então na prática teórica da TdL? Acontece uma ‘inversão’ de primado epistemológico. Não é mais Deus, mas o pobre, o primeiro princípio operativo da teologia. Mas, uma inversão dessas é um erro de prioridade; por outras, é um erro de princípio e, por isso, de perspectiva. E isso é grave, para não dizer fatal. (…)

Ora, quando o pobre adquire o estatuto de primum epistemológico, o que acontece com a fé e sua doutrina no nível da teologia e também da pastoral? Acontece a instrumentalização da fé em função do pobre. Cai-se no utilitarismo ou funcionalismo em relação à Palavra de Deus e à teologia em geral. (…)

O resultado inevitável é a redução da fé e, em especial, sua politização. Fala-se aqui também, criticamente, da transformação da fé em ideologia. Isso procede toda vez que se dá à ideologia o sentido preciso que lhe dá o Magistério: o de uma fé que decai de seu nível transcendente para a imanência da política. (…)

O resultado geral da inversão prática de princípio (de Deus para o pobre) é enfraquecer e mesmo esvaziar a identidade cristã, e isso em vários planos: 1. No plano teológico. A teologia vai perdendo seu caráter próprio, para adotar um tom mais sociológico e político, agora de tipo religioso-pastoral. Perde também fecundidade teórica, suas produções reduzindo-se cada vez mais a serem meras ‘variações sobre o mesmo tema’. Pior, as grandes intuições da TdL viram chavões repetidos ad nauseam, sobretudo na ‘vulgata militante’ da TdL. 2. No plano eclesial. A ‘pastoral da libertação’ se torna um braço a mais do ‘movimento popular’. A Igreja se ‘onguiza’. Então se esvazia mesmo fisicamente: perde agentes, militantes e fiéis. Os ‘de fora’, à exclusão dos militantes, sentem escassa atração por uma ‘igreja de libertação’. Pois, para o compromisso, dispõem das ongs, mas para a experiência religiosa precisam mais que de simples libertação social. Ademais, por não perceber a extensão e relevância social da atual inquietação espiritual, a TdL se mostra culturalmente míope e historicamente anacrônica, ou seja, ‘alienada’ de seu tempo. 3. No plano da própria . Reduzida a ideologia mobilizadora, a fé vai perdendo cada vez mais substância, até se esvaziar totalmente. O que sobra é uma ‘hermenêutica cristã da existência humana’, tal como se exprime de modo modelar na vulgata teológica chamada ‘rahnerianismo’, que subjaz à TdL e que aqui não é possível discutir. Em suma, a substância da fé acaba em mero discurso, portanto, em qualquer coisa de irrelevante. Pois, como se ouve nos meios ‘liberacionistas’, o que importa não é tanto a Igreja ou Cristo, mas o Reino. (…)

É assim mesmo: o destino fatal de quem se põe no lugar de Deus e o usa para seu benefício é tomar-se por deus. De modo análogo, uma TdL que ‘consome’ fé cristã sobretudo para a libertação, se arrisca a ‘consumir’ essa fé e também a si mesma. A ‘libertação’ pode devorar a ‘teologia’.[xxxviii]

 

Perspectivas

O desejo de implementar uma mudança de paradigma no seio da Igreja, possibilitando assim a construção de uma “nova Igreja” está, infelizmente, presente no coração de muitos católicos, que são apoiados também desde fora da Igreja. Sob qualquer perspectiva, avaliamos que uma tal mudança seria um verdadeiro desastre, que traria a ruína da fé, da esperança e quiçá da salvação eterna. A figura deste mundo passa, e nossa missão como católicos é conhecer cada vez mais as insondáveis riquezas de Cristo, sem confundir o Reino de Deus com o progresso da civilização, da ciência, ou da técnica humanas. “Porque, onde estiver o teu tesouro, aí também estará o teu coração” (Mt 6,21). Trata-se de discernirmos qual é o tesouro que nos salvará de nossas dores, incertezas, cansaços. Esse tesouro não é outro senão Cristo, estampado nos Evangelhos como Palavra perene, inviolável, segura.

A maturidade na fé vai desvelando para nós a realidade do mundo em que vivemos, cheio de armadilhas colocadas por nossos inimigos, os inimigos da fé católica; que, porém, nenhuma vitória conseguirão sobre nós se estivermos “vigiando e orando” (cf. Mt 26,41).

“Não tenhais medo, pequeno rebanho, pois agradou ao vosso Pai dar-vos o Reino” (Lc 12,32).

[i] Cf. Em nova biografia, Bento XVI lamenta o moderno “credo anticristão” (acidigital.com)

[ii] Grupo de padres desafia Vaticano e diz seguir dando bênçãos a uniões homossexuais (acidigital.com)

[iii] Católicos e protestantes alemães avançam na intercomunhão apesar do Vaticano (acidigital.com)

[iv] Cf. Bispo se desculpa por veto da Igreja a bênção para uniões gays (terra.com.br); Bispo suíço dá comunhão a três protestantes em sua própria ordenação (acidigital.com)

[v] Por exemplo: Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé a um dubium sobre a bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo (22 de fevereiro de 2021) (vatican.va); Vaticano reitera a bispos alemães: Protestantes não podem comungar (acidigital.com)

[vi] Paradigma – Conceito, o que é, Significado (conceitos.com)

[vii] JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do SS. Concílio, em 11/outubro/1962. Nº V, 1. Discurso na solene abertura do Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962) | João XXIII. Lê-se no Catecismo da Igreja Católica, nº84: “O patrimônio sagrado da fé (depositum fidei) – Cf. 1Tm 6,20; 2Tm 1,12-14 – contido na Sagrada Tradição e na Sagrada Escritura, foi confiado pelos Apóstolos à totalidade da Igreja. ‘Apegando-se firmemente a ele, o povo santo todo, unido a seus Pastores, persevere continuamente na doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na fração do pão e nas orações, de modo que, na conservação, no exercício e na profissão da fé transmitida, se crie singular unidade de espírito entre os Bispos e os fiéis’. – DV, 10: AAS 58 (1966) 822.”

[viii] BENTO XVI, Texto inédito do Papa Bento XVI, publicado por ocasião do 50º aniversário do início do Concílio Vaticano II. Foi um dia maravilhoso – Texto inédito por ocasião do 50º aniversário do início do Concílio Vaticano II, Bento XVI

[ix] Papa Paulo VI – Em entrevista ao filósofo francês, seu amigo, Jean Guitton – 08/09/1977.

[x] Do latim: = depósito da fé.

[xi] RATZINGER, Joseph. Guardare Cristo. Esercizi di fede, speranza e carità. Milano: Jaca Book. 2009, p. 36.

[xii] A mudança de rumo da Igreja Católica, no final da década de 1960, em direção à Teologia da Libertação, é fruto também da pedagogia de Paulo Freire, que penetrou nos Seminários e nas casas de formação das Congregações religiosas. Assim como no contexto da educação brasileira, o que sobrou em inúmeras Faculdades de Teologia foi um terreno baldio depois da demolição.

[xiii] GENNARINI, Giuseppe. Gnosis y Teología política. Madrid: Bendita María. 2014, pp. 31,32,33.

[xiv] “Na teologia francesa do séc. XX, ele foi considerado, juntamente com seu professor e coirmão Marie Dominique Chenu, e com os jesuítas Henri de Lubac (1896-1991 e Jean Chenu (1895-1990), um pioneiro dos ‘padres operários’ (1895-1990). Esses nomes aparecem entre os expoentes da Nouvelle Théologie, que se desenvolveu entre as décadas de 1930 e 1950; teologia que colocava criticamente em discussão aquela escolástica tradicional e o marxismo, explorando a relação entre historicidade e verdade”. (Yves Congar – Instituto Humanitas Unisinos – IHU)

[xv] Congar nutria simpatias por contestadores como Martinho Lutero e outros: “Outro tanto poderia dizer-se de homens como Martinho Lutero, Robert de Ernest Lamennais, Renan e outros. Essas grandes cabeças traziam em seu dinamismo, ou em suas ideias reformistas, gérmens que teriam podido produzir na Igreja um magnífico florescimento.” (CONGAR, Yves. Verdadera y falsa reforma en la Iglesia. Sígueme: Salamanca. 2014, p. 198.

[xvi] CONGAR, Yves. Op. Cit. p. 213.

[xvii] Aliás, Saul D. Alinsky (mentor de lideranças do Partido Democrata, como Hillary Clinton e Barack Obama) concorda, numa das dedicatórias do seu livro “Rules for Radicals” (“Regras para Radicais”), que essa mentalidade revolucionária já existia antes da criação do mundo: “Para que não esqueçamos, sem deixar passar, um reconhecimento ao primeiro de todos os radicais: de todas as nossas lendas, mitologia e história (e quem sabe onde a mitologia termina e a história começa – ou o que é o que), o primeiro radical que o homem conheceu e que se rebelou contra o sistema, e o fez de forma tão eficiente que pelo menos ganhou seu próprio reino – Lúcifer.”

[xviii] MESLIER, Jean. Memória. Lisboa: Antígona. 2003, pp. 47,48 e 50.

[xix] “E sentimos que é preciso conter a onda de profanidade, de dessacralização, de secularização que se avoluma e quer confundir e oprimir o sentido religioso no segredo do coração, na vida privada, ou mesmo nas afirmações da vida exterior. (…) De alguma fenda a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus. Há dúvida, incerteza, problemas, inquietação, insatisfação, confronto. Não confiamos mais na Igreja; confiamos no primeiro profeta profano que vem falar conosco de algum jornal ou algum movimento social, procurando-o para perguntar se ele tem a fórmula da verdadeira vida. E não advertimos que já somos dela senhores e mestres. A dúvida entrou em nossas consciências e entrou pelas janelas que, em vez disso, deveriam estar abertas à luz. Da ciência, feita para nos dar verdades que não se afastam de Deus, mas nos fazem buscá-lo ainda mais e celebrar com maior intensidade, veio a crítica, veio a dúvida. Os cientistas são os que mais pensativa e dolorosamente curvam suas testas. E acabam ensinando: ‘Não sei, não sabemos, não podemos saber’. A escola se torna um campo de treinamento para confusão e, às vezes, contradições absurdas. O progresso é celebrado para depois poder demoli-lo com as revoluções mais estranhas e radicais, para negar tudo o que foi conquistado, para voltar ao primitivo depois de ter exaltado tanto o progresso do mundo moderno” (Hoimila do IX aniversário da coroação de Sua Santidade Paulo VI, na Solenidade dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, quinta-feira, 29 de junho de 1972). 29 giugno 1972: Santa Messa per il IX anniversario dell’incoronazione di Sua Santità nella solennità dei Santi Apostoli Pietro e Paolo | Paolo VI (vatican.va)

[xx] MARSHALL, Taylor R. Infiltrados:A trama para destruir a Igreja a partir de dentro. Campinas: Ecclesiae. 2020, p. 121.

[xxi] O berço da corrupção no clero: relatos sobre a infiltração e contaminação dos seminários (institutosantoatanasio.org); Pode-se ter acesso às falas da Sra. Dodd também em áudios: (345) Communist Leader, Dr Bella Dodd, Confesses to Infiltrating the Church & USA – YouTube; (344) A Wolf In Sheep’s Clothing – YouTube.

[xxii] DODD, Bella V. Escola das Trevas. Campinas: Ecclesiae. 2020, pp. 106-107.

[xxiii] CARRÉ, Marie. AA-1025: Memoirs of the Communist Infiltration Into the Church. Charlotte (North Carolina): TAN Books. 2013, pp. 11-12;39-40.

[xxiv] Cf. MEINVIELLE, Pe. Julio. Crítica à teologia de Karl Rahner. Vila Velha: Editora Centro Anchieta. 2020, p. 13.

[xxv] VORGRIMLER, Herbert. Karl Rahne: experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. São Paulo: Paulinas. 2006, p. 67. In MEINVIELLE, Pe. Julio. Op. Cit. p. 13.

[xxvi] MEINVIELLE, Pe. Julio. Op. Cit. pp. 13-14. O termo “lentes marechalianas” refere-se ao fato de que o pensamento de Rahner foi muito influenciado pelo jesuíta belga Joseph Maréchal, considerado o expoente do “tomismo transcendental” – tentativa de síntese entre a perspectiva filosófica de Santo Tomás de Aquino e a filosofia crítica de Immanuel Kant.

[xxvii] Cf. MEINVIELLE, Pe. Julio. Op. Cit. p. 15.

[xxviii] VORGRIMLER, Herbert. Op. Cit. p. 164. In MEINVIELLE, Pe. Julio. Op. Cit. p. 21-22.

[xxix] Cf. Agli uomini di Azione Cattolica (12 ottobre 1952) | PIO XII (vatican.va)

[xxx] Mortalium Animos: sobre a promoção da unidade de religião (6 de janeiro de 1928) | PIO XI (vatican.va)

[xxxi] CORÇÃO, Gustavo. A Igreja Católica e a Outra: artigos sobre a crise da Igreja. Niterói: Permanência. 2018, p. 31.

[xxxii] Cf. MARTIN, Malachi. Os jesuítas: A Companhia de Jesus e a Traição à Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record. 1989, p. 13

[xxxiii] Id. Ibid.

[xxxiv] Id. pp. 14-15.

[xxxv] PR-276 – Setembro-Outubro/1984 – Veritatis Splendor

[xxxvi] Instrução sobre alguns aspectos da ‘Teologia da Libertação’, 6 de agosto de 1984 (vatican.va)

[xxxvii] VII – 1,2.7.

[xxxviii] BOFF, Clodovis M. Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento. REB, nº 268, vol. 67, Outubro 2007. pp. 1004, 1005, 1007, 1010.