Após a troca na Casa Branca, em Janeiro, com a Administração Biden chegando ao poder nos Estados Unidos, as relações internacionais entre os Americanos e Russos se transformaram rapidamente de posicionamento de redução de hostilidades para um cenário de acusações e constantes atritos.

O Presidente Donald Trump, durante a sua administração do Governo Americano, reconhecendo a prioridade de conter a China e de esvaziar a estratégia de Guerra Fria perpétua com a Rússia, havia estabelecido claramente o novo grande adversário internacional dos Estados Unido: o Partido Comunista Chinês. Contudo, como tradicionalmente ocorre quando o Partido Democrata está no poder, o grande antagonista (se não, inimigo) dos Americanos voltou a ser a Rússia sob o governo de Joe Biden. Assim, além da natural, crescente e inevitável rivalidade com os Chineses, os Democratas revigoraram os conflitos com Vladmir Putin, especialmente no tocante ao Leste Europeu, gerando duas (grandes) frentes de oposição aos Estados Unidos e ao Ocidente no mundo.

Naturalmente, ainda que ambos os países tenham algumas divergências do ponto de vista econômico e geopolítico, a proximidade histórica, geográfica e política entre a China e a Rússia levou a um aumento de interações e da cooperação entre o Governo Chinês e o Governo Russo sem precedentes. Em poucas palavras, o aumento de hostilidades americanas e europeias contra a Rússia acabaram jogando o Kremlin no colo do Partido Comunista Chinês, reforçando o início de uma frente internacional anti-ocidente. A pergunta que nos resta agora é: o quão significativa pode ser essa (re)aproximação?

Sabemos que, embora grandes alianças tenham existido ao longo da história, quando analisadas as conjunturas com maior critério, temos de poucos exemplos de laços significativamente profundos entre os Estados. Na maioria dos casos, as alianças internacionais e os movimentos de cooperação ocorrem com base em interesses específicos que são compartilhados pelas nações em determinado momento, muitos deles, inclusive, com objetivos de defesa e sobrevivência, como observamos nos casos de grandes guerras ou em cooperações econômicas/comerciais. Vínculos mais profundos, entretanto, são fenômenos muito mais raros, e muito mais difíceis de se sustentar, uma vez que eles necessitam não apenas de estratégias e objetivos comuns, mas fundamentalmente de um compartilhamento robusto de valores e princípios bem definidos.

Essa sintonia é especialmente difícil de se estruturar, uma vez que o elemento fundamental para isso é a cultura. Não por acaso, temos pouquíssimos exemplos de tal relação, sendo a maioria deles nações que se fundiram politicamente, e os mais recentes e significativos aqueles observados na Relação-Especial (Special- Relationship) Reino Unido-Estados Unidos, Europa-Estados Unidos e na União Europeia. No caso Anglo-Americano, um vínculo bem mais profundo do que aquele compartilhado pelos países europeus, temos uma relação única na história, que se estruturou a partir de uma mesma cultura e se fortaleceu ao longo das décadas por meio da defesa de seus valores mais fundamentais, ainda que os dois países (Estados Unidos e Reino Unido) tenham sido inimigos em determinado ponto da história.

Observando apenas alguns aspectos desse rico e único exemplo, podemos destacar uma troca sem precedentes de know-how, tecnologia, comércio e apoio militar, dentre inúmeras outras, além, é claro, de uma estruturação conjunta de regras, sistemas e instituições, que formam não apenas as suas bases nacionais até hoje, mas toda a estrutura do Sistema Internacional vigente. Não por acaso, trata-se de uma relação (MUITO) especial, que nos remete até mesmo a uma relação entre Pai e Filho.

Quando trazemos essa análise para a atualidade das relações Rússia-China, apesar de naturalmente se esperar grandes avanços e grandes movimentos de cooperação (para o bem, e para o mal), é muito difícil, se não impossível, imaginar que tal aproximação possa resultar em uma nova “Special-Relationship” do século XXI, a exemplo da relação Anglo-Americana. Para apoiar essa percepção, temos como destaque três aspectos de extrema importância a considerar:

  1. Russia e China, ainda que tenham, no momento, muitos interesses convergentes, desenvolvem uma aproximação muito mais baseada na oposição a um inimigo comum do que em objetivos comuns. Uma aliança estratégica por si só não fornece bases suficientes para uma “Relação- Especial”, e está muito suscetível às mudanças externas.
  2. Russia e China são muito diferentes. Não apenas em termos culturais – o que já torna extremamente difícil um compartilhamento profundo de valores e princípios, interesses e objetivos – mas também em termos de poder e capacidades. Ainda que a Rússia tenha sido uma potência importante no século XX, e continue sendo um importante expoente militar/nuclear, a China é um país com potencial infinitamente maior e capacidades muito superiores, quando comparada à Rússia, fazendo da China um país muito mais enérgico e expansionista.
  3. Russia e China, apesar de suas pretenções globais, são duas potências que necessitam MUITO da hegemonia regional – aspecto imprescindível para o seu desenvolvimento e aprimoramento. De forma inconveniente, ambas dependem basicamente das mesmas regiões (na Ásia, incluindo-se o Oriente Médio, e no Pacífico), e é extremamente improvável que, algum dia, a Rússia e a China se tornem um Estado Único ou um Bloco tão integrado quanto a União Europeia (inviabilizando a formação de um “Heartland”, como muitos estrategistas e estudiosos ao longo da história já propuseram). Assim, ainda que os dois governos resolvam deixar de lado algumas divergências em prol de uma aliança contra o Ocidente, cedo ou tarde essas questões prejudicarão essa relação, e um dos dois países começará a prejudicar, em maior ou menor grau, os interesses do outro.

Dessa forma, ainda que observemos com preocupação (absolutamente justificada) a grande aproximação entre os chineses e os russos – que pode, de fato, ameaçar significativamente o

Ocidente e a liberdade no mundo – é pouco provável que os laços entre os dois países venham a ser tão profundos quanto aqueles observados no caso Reino Unido-Estados Unidos. Não apenas pela impossibilidade de se superarem em definitivo diversos conflitos e contradições, mas principalmente pela ausência de elementos de ligação mais profundos entre as duas nações, que possam ir além da simples conveniência e da oportunidade no presente.

É certo que, especialmente enquanto tratadas como capacidades e necessidades complementares, Rússia e China têm hoje um grande potencial para estreitarem seus laços – dois grandes exemplos são: o know-how tecnológico da Rússia e a capacidade material (recursos e pessoal) da China, em projetos militares, aeroespaciais e nucleares; e a influência política da Rússia no Oriente Médio e no Leste Europeu e os grandes projetos de investimento da China – mas também é certo que não temos (até então) elementos que indiquem que há espaço nessa relação bilateral para algo “mais especial”. De todo modo, é momento para o máximo de cuidado nas relações internacionais.

Marcus L L Chagas – Analista de Relações Internacionais para o PHVox