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Um caminho para a guerra civil: a analogia espanhola

O Estado é desleixado em suas relações com o seu cidadão, permitindo-lhe ocasionalmente escapar do cumprimento de suas leis; ou vice-versa, quando é o próprio Estado que aplica as leis de forma fraudulenta e as torna um meio para enganar o cidadão.”

1. Na Espanha, a ditatura do general Miguel Primo de Rivera iniciou-se em setembro de 1923, com um golpe militar apoiado pelo rei. Isso se provaria uma solução temporária para um problema impossível de se resolver. Primo de Rivera governou sob o lema “País, Religião, Monarquia”. Só que para apaziguar a esquerda, ele tributou os ricos para que pagassem pelas obras públicas. Mas quando os ricos reclamaram, ele tentou pedir dinheiro emprestado aos bancos. E quando o resultado obtido foi a inflação da moeda, o exército se recusou a apoiá-lo. E em janeiro de 1930, Primo Rivera abandonou o país como um homem arruinado.

2. Os conservadores assistiram impotentes enquanto o rei Alfonso XIII fugia do país e a esquerda estabeleceu a Segunda República da Espanha. Ao contrário dos Pais Fundadores da América, os líderes da Espanha não conceberam uma república com base nas linhas clássicas romanas. Enquanto a centro-esquerda falava de “reforma”, a extrema esquerda falava de “revolução”. Tendo perdido o rumo e o sentido da história, os partidos de esquerda participaram do que José Ortega y Gasset chamou de “A Revolta das Massas”. Segundo Ortega y Gasset, essa revolta baseou-se em um fato “de extrema importância na vida pública da Europa …”, que foi a “adesão das massas para completar o poder social.” [A Revolta das Massas, p. 11].

3. Sendo que as “massas”, naturalmente, eram as pessoas comuns. Ortega destacou que as massas do século XX eram simples demais para manter uma civilização baseada em tradições clássicas complexas. Ele advertiu que a política estava fadada a se tornar um domínio de indivíduos de baixa qualidade. A administração do país, ele lamentou, iria cair nas mãos de pessoas que eram “não qualificadas, não qualificáveis e, por sua própria textura mental, desqualificadas”. [Revolta das Massas, p. 16]. Não importava se essas pessoas eram da nobreza ou da classe trabalhadora. Cada classe possui pessoas de excelência, disse ele, só que agora os excelentes seriam postos de lado por pessoas sem nenhuma excelência.

4. “Eu não posso disfarçar a minha grave dúvida de que exista”, disse Ortega, “neste dia, algum grupo capaz de realizar a reforma do Estado, ou … da universidade”. A presciência de Ortega foi notável ao associar o Estado à universidade neste assunto, visto que ambas as instituições estavam então semeando as sementes da revolução socialista (sob o pretexto de “reforma”). Ainda assim, como Ortega sugeriu, nenhum grupo dentro do Estado ou da universidade tinha a possibilidade de alcançar algo positivo de imediato. Na verdade, eles estavam semeando o vento apenas para colher o vendaval da guerra civil em alguns anos.

5. Se os socialistas e esquerdistas espanhóis acreditavam estar construindo uma utopia, estavam fadados ao fracasso (assim como a esquerda americana está fadada ao fracasso hoje). Ah, sim, os socialistas espanhóis tiveram a vontade de tentar realizar o seu próprio “grande reset”. Mas Ortega os advertiu: a vontade não é nada, é apenas mera obstinação. E quanto à crença apaixonada da esquerda no futuro do homem, Ortega avisou mais uma vez: a paixão não é nada, a inteligência penetrante é tudo. Com a exceção de Lenin e de seus discípulos, a profundidade intelectual é algo que sempre faltou à esquerda. Há um ditado entre a burguesia que diz que “um tolo e o seu dinheiro logo se separam”; já os leninistas poderiam dizer, por sua vez, que “um menchevique e o seu poder político também logo se separam”. (Lenin perguntou, a respeito do programa menchevique de 1907, “Você poderia imaginar algo mais difuso, vago e vazio?”).

6. Em 1930, com tudo preparado para uma república de esquerda na Espanha, não encontramos nada além de ideias difusas, vagas e vazias. A raiz do problema por trás de tudo isso, disse Ortega, era o desleixo. Segundo Ortega, o desleixo “penetra em toda a nossa vida nacional de cima a baixo, direcionando as suas (its) ações”. O desleixo da esquerda surgiu da complacência da burguesia urbana, que foi alimentada pelo casulo de “País, Religião, Monarquia”. Pois os agentes da ditadura conservadora, sugeriu ele, também eram desleixados – nulidades que não entendiam o próprio slogan que eram obrigados a apoiar. O vulgar e o banal da esquerda não podiam ser aplacados por sua imagem refletida no espelho da direita; pois acontece que mediocridades oportunistas não são um baluarte contra mediocridades ambiciosas.

7. Ortega disse à Federação de Estudantes Universitários: “Vós mesmos vedes um esforço petulante de reforma do país por parte de um grupo de pessoas que não pensou um momento sequer na questão de primeiro se dotar do mínimo de equipamento necessário. Essa tem sido a ditadura. Tudo o que conseguiu foi levar o nosso desleixo nacional ao ponto da loucura.” Ortega disse ainda, em relação à aplicação “fraudulenta” da lei por parte da ditadura que “essa conduta do governo é um crime, um abuso intolerável e uma traição à confiança dos cidadãos.” Ele dizia que era tudo tão estúpido “que temos até vergonha de chamar de crime”. Atualmente, o crime violento, explicou ele, é algo respeitável em comparação porque engendra uma reação imediata. Oh! Porém, quão errado ele estava: pois pouco sabia Ortega que a esquerda estava prestes a iniciar uma série de crimes violentos e com quase nenhuma reação imediata da direita.

8. A Segunda República começou em 14 de abril de 1931. O historiador espanhol Javier Tusell a descreveu como uma “democracia não democrática”. Desde o início, turbas esquerdistas foram libertadas. Num instante, mais de 100 prédios foram queimados em Madri – incluindo igrejas. O exército restaurou a ordem, mas o governo não estava interessado em punir os rebeldes da esquerda. Em alguns casos, o governo prendia “extremistas de direita” após a violência realizada pela esquerda.

9.Os conservadores reagiram com a formação da Confederação Espanhola de Direitistas Autônomos (CEDA); também conhecido como partido católico, que se tornou o maior partido político do país. Como observou o historiador Stanley Payne, os conservadores não precisaram de uma organização política sob a ditadura de Primo de Rivera; mas agora viviam sob um regime hostil, perseguidos e sujeitos a uma violência à margem da lei (ilegal/fora da lei). Os seus direitos eram restringidos pelo governo, que os considerava cidadãos de segunda classe. Para citar apenas um exemplo da violência perpetrada pela esquerda espanhola contra os conservadores, os Ativistas da Federação Anarquista cometeram 23 assassinatos políticos nas primeiras semanas da Segunda República.

10. Na extrema direita também havia agitações, mas a Falange Espanhola – uma organização fascista – não produziu igual quantitativo. De fato, o partido católico foi acusado de ser fascista (o que não era verdade). E quando os conservadores venceram as eleições gerais espanholas de 1933, a esquerda trabalhou para cancelar o resultado, mudando as regras das eleições ex post facto. De acordo com Payne, “a esquerda argumentou que o partido católico não poderia ganhar eleições – porque o CEDA propôs mudanças fundamentais no sistema republicano”.

11. Os líderes de esquerda, determinados a suprimir os católicos, pediram ao presidente Zamora que cancelasse a vitória eleitoral conservadora. A recusa de Zamora resultou em uma insurreição esquerdista que começou em dezembro de 1933. Quase 100 pessoas foram mortas. Grandes bombas foram detonadas em Barcelona. Tumultos ocorreram em oito cidades; trens foram descarrilados, uma ponte foi destruída, postos avançados do exército se amotinaram. Zamora então permitiu a formação de um governo de centro-direita, mas decidiu excluir os católicos – embora eles tivessem conquistado mais votos do que qualquer outro partido.

12. Esse novo governo de centro-direita era inaceitável para a esquerda. Portanto, uma insurreição socialista ocorreu em 1934. A esquerda espanhola defendeu esta insurreição como “defensiva”. De acordo com o historiador Stanley Payne, a insurreição socialista de 1934 foi uma agressão cuidadosamente planejada que esteve “em gestação por mais de um ano e taticamente em preparação por nove meses”. Enquanto isso, os republicanos de esquerda sob a liderança de Manuel Azaña importunaram o presidente Zamora para nomear um governo de minoria, barrando os partidos de maioria de direita do poder. Usando a ameaça de uma “greve geral” apoiada pelos socialistas, e que certamente envolveria violência generalizada, Azaña vociferou: “Antes que a República seja convertida em um carrasco fascista ou monarquista … preferimos qualquer outra catástrofe, mesmo se formos derrotados”.

13. O presidente Zamora se recusou a nomear Azaña primeiro-ministro e, embora por pouco tempo, uma maioria conservadora governou a Espanha – que finalmente incluiu três ministros do partido católico. Isso foi demais para o Partido Socialista, que começou outra insurreição em 4 de outubro de 1934. Comparando os católicos a Hitler e Mussolini, os socialistas justificaram incêndios criminosos, saques e tumultos. O veterano político socialista Julian Besteiro ironicamente observou que o Partido Socialista da Espanha “tinha mais características de uma organização fascista do que o CEDA [partido católico]”.

14. A violenta insurreição de outubro de 1934 incluiu uma revolta do governo catalão em Barcelona que foi abortada, uma revolução em quinze das cinquenta províncias da Espanha, o assassinato de quase 100 clérigos, destruição generalizada e incêndios criminosos, o saque de bancos; e teve o saldo de 1.500 pessoas mortas e 15.000 presas. Uma observação: o governo conservador espanhol, assim como o governo de Trump no verão de 2020, foi surpreendentemente leniente com os rebeldes. O Partido Socialista, apesar de sua sedição, nunca foi proscrito. Apenas algumas sentenças duras foram executadas.

15. O país capengou por quase outro ano, até que o governo se desintegrou em setembro de 1935, após dois pequenos escândalos financeiros. O presidente Zamora então nomeou um amigo pessoal como primeiro-ministro, argumentando que a maioria dos conservadores estava “muito à direita”. Novas eleições foram convocadas para fevereiro de 1936. A Espanha estava agora completamente polarizada enquanto a esquerda continuava a aumentar sua violência. O caminho agora estava aberto para a revolução socialista. Os conservadores e católicos mostraram-se fracos diante da violência esquerdista, enquanto o presidente Zamora ignorou a posição da maioria da direita.

16. Havia muita coisa em jogo nas eleições de fevereiro de 1936. O Partido Socialista declarou que estavam prontos para a guerra civil caso a esquerda perdesse as eleições. Ao mesmo tempo, a esquerda prometeu purgar o governo de todos os funcionários conservadores para criar um “regime de esquerda”. A esquerda também queria anistia total para todos os presos durante a insurreição de outubro de 1934. Eles falaram de punição, também, mas para a polícia e os funcionários de segurança que reprimiram a insurreição.

17. As tensões estavam altas quando a votação começou em 16 de fevereiro de 1936. Multidões da esquerda foram às ruas e interferiram na votação. Em alguns distritos, a votação foi interrompida. Em outras áreas, as cédulas foram destruídas. Os eleitores de direita foram intimidados, e oficiais de votação renunciaram em repulsa. Votações repetidas foram realizadas e votos adicionais foram colhidos para a esquerda. Os governadores provinciais renunciaram; e, apesar disso, o primeiro-ministro não declarou a lei marcial. O chefe do Estado-Maior do Exército, Francisco Franco, instou o ministro da Guerra e o comandante da guarda civil a intervir, mas eles se recusaram. Então, todo o governo renunciou e um novo governo republicano formado pela minoria de esquerda assumiu o poder. As comissões eleitorais anularam as eleições de Cuenca e Granada – onde a direita havia vencido. Em outros lugares, as cadeiras foram simplesmente dadas à Frente Popular da esquerda. As eleições gerais espanholas de 1936 foram uma farsa.

18. Voltando ao diagnóstico de Ortega de 1930, é assim que o “desleixo” da Espanha funcionou. A esquerda estava agindo à margem da lei. O governo estava agindo à margem da lei. Apenas os católicos e conservadores permaneceram fiéis à ordem civil e ao comportamento correto. Mas essas eram as mesmas pessoas alvo de repressão. A guerra civil estava na boca de todos. A juventude católica, anteriormente moderada, passou a contemplar a resistência armada. A lealdade do exército foi examinada pelo governo. Todos os generais da Espanha eram considerados confiáveis, exceto um. O general Franco foi destituído de sua posição sênior e enviado para comandar as Ilhas Canárias. Ao deixar a Espanha, Franco começou a estudar inglês, brincando com sua família que o estudo da língua lhe daria algo para fazer na prisão.

19. Em seguida, ocorreu um assassinato chocantemente brutal. Calvo Sotelo, um importante político de direita, foi sequestrado e assassinado por Indalecio Prieto, que era o guarda-costas do líder do Partido Socialista. Pior ainda, o governo não tomou nenhuma ação efetiva contra os assassinos. O assassinato teve um efeito eletrizante sobre os conservadores. Como explicou o historiador Stanley Payne: “Agora parecia mais perigoso não se rebelar do que se rebelar”. [P. 70]

20. Em 18 de julho de 1936, uma insurreição militar começou. A Espanha foi engolfada por uma guerra civil sangrenta. Conforme relata Payne, “a esquerda tinha cerca de metade do exército, dois terços da marinha, o grosso da força aérea e quase dois terços das forças de segurança”. No início, as probabilidades favoreciam a esquerda. Na verdade, a revolta deveria ter sido esmagada enquanto o governo rapidamente mobilizou “o povo” para a guerra. A direita foi salva por duas coisas: (1) firmeza no combate e (2) rapinagem da esquerda. Em vez de lutar, a maioria das formações esquerdistas se entregou ao que Payne descreveu como “uma orgia de prisões, ataques a igrejas, assassinatos em massa e incêndio criminoso e pilhagem em geral”. [P. 79]

21. Uma revolução socialista improvisada e brutal começou na esteira do levante militar. Como Payne destacou, “a revolução ajudou a salvar a causa dos insurgentes [de direita] porque sua fixação na atrocidade e na pilhagem desviava massivamente a energia do conflito militar, enquanto os horrores da revolução violenta em marcha atraíram a simpatia da maioria das classes média e baixa, e de quase toda a sociedade católica para o lado dos insurgentes, dando-lhes apoio em massa …” [P. 79]

22. A Guerra Civil Espanhola durou quase três anos, terminando em 1º de abril de 1939. Uma coalizão esquerdista de anarquistas, comunistas e sindicalistas foi derrotada por uma coalizão de direita formada por nacionalistas, monarquistas, conservadores e falangistas liderada pelo general Francisco Franco. Entre 500.000 a um milhão de pessoas foram mortas em uma população de 23,8 milhões.

23. Para se ter ideia do que isso significa hoje em dia, o período que antecedeu a Guerra Civil Espanhola oferece insights sobre a dinâmica da polarização esquerda / direita. Podemos observar por quais meios a esquerda, a princípio, ganhou a vantagem. Vemos também como a direita ficou inicialmente desamparada por causa de seu respeito pela lei e pela ordem. Enxergamos o gradual aumento da violência contra a direita, combinada com a injustiça oficial e padrões duplos aplicados pelo governo. Vemos a tirania do estado reforçada pela anarquia vinda de baixo. E no final, temos o evento catalisador inevitável que galvanizou a direita para uma guerra aberta.

24. Como nota final: Jose Ortega y Gasset – o famoso filósofo espanhol citado acima – manteve-se fiel às suas crenças liberais (esquerdistas) / aristocráticas. Eleito deputado pela Província de Leão na assembleia constituinte da Segunda República, tornou-se líder da Agrupación al Servicio de la República – um grupo de intelectuais que apoiavam a plataforma dos republicanos socialistas. Desiludido com o governo parlamentar, Ortega abandonou rapidamente a política. Com a eclosão da Guerra Civil Espanhola, ele fugiu para a Argentina. Ele escreveu vários livros brilhantes, mas sem profundidade real, continuando o tema do lamento iniciado em “A Revolta das Missas”. Claro, o que ele mais lamentou foi a ascensão do general Franco.

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