Mário Ferreira dos Santos dizia que todo conhecimento começa por uma síntese confusa à qual se segue a etapa analítica, que conduz ao conhecimento distinto. Essa síntese é tanto mais confusa quanto mais complexa é a realidade com a qual nos debruçamos.
Aristóteles havia entendido que o conhecimento, em si, é um processo complexo, uma vez que implica sempre um ir e vir do concreto para o abstrato e do abstrato para o concreto. Sem esse vai-e-vem, caímos em dois perigos opostos: o de anularmos todo conhecimento pelo ceticismo materialista ou o de nos perdermos em abstrações que nos conduzirão a idealismos etéreos, os quais nos deixarão ainda mais confusos.
Deste segundo mal padecem os homens modernos. Reféns de ideologias, aprisionados em sentimentos de torcida, imunizam-se para entender qualquer coisa, uma vez que, por assim dizer, já escolheram um lado que sempre terá razão, ainda que a não tenha.
Contudo, já Aristóteles havia ensinado que o conhecimento das realidades metafísicas é mais difícil que o das físicas, e que o das morais o é mais que o das metafísicas, e que o das políticas o é muito mais que o das morais. E isso porque as circunstâncias que incidem sobre os objetos são tão variáveis que aumentam o grau de complexidade da análise.
Pressuposto isso, posso dizer sem receio que a pressa em tomar posição sobre uma realidade política é a sepultura de qualquer seriedade analítica. E tal sepultura é ainda enfeitada com as coroas de flores dos diferentes partidarismos, que justificam a priori quase tudo do seu lado e condenam também a priori quase tudo do lado oposto, coisa muito útil para fazer-nos não entender o que realmente pode estar acontecendo.
Passada a fase de síntese confusa, podemos começar a tentar fazer uma análise do fenômeno do último fim de semana, fazendo as distinções devidas e resguardando-nos de emitir apressadamente um juízo moral (o moralismo é uma doença congênita a qualquer ideologia).
O trabalho da mídia não tem sido, em sua maior parte, verdadeiro jornalismo, mas uma ação propagandística de repressão comunicativa. Digo-o, pois, ao fim e ao cabo, ao invés de nos permitir sair da síntese confusa, confunde muito mais a síntese visando apenas formar uma opinião a respeito.
Todo grupo heterogêneo é, por definição, heterogêneo (a redundância é proposital e irônica). Por exemplo, uma torcida organizada de um time de futebol comete atos de vandalismo após uma partida… Quem seria insensato de culpar a torcida inteira pela parte organizada dela?, ou pior: quem culparia a parte organizada por desmandos cometidos por uma parte menor contra a qual a parte maior protestou em ato?, ou ainda: quem poderia alegar organização do desmando quando o próprio desmando, em si, é uma demonstração de desorganização, uma vez que uma das partes fazia uma coisa enquanto a outra fazia outras que não eram apenas diferentes, mas antagônicas àquelas feitas pelos primeiros?…
Quando a conduta de um grupo é sempre e em todos os lugares pacífica e ordeira, um ato incoerente com isso pode ser-lhe atribuído realmente ou apenas convenientemente? São perguntas. E, sem perguntas, não há análise.
A mídia, ademais, tem cometido mil e uma ambiguidades atrozes com fim eminentemente político. Por exemplo, chamam terraplanistas de conservadores, como se o pensamento conservador não fosse uma corrente filosófico-política séria, fundada no ceticismo, por exemplo, de Hume; chamam um povo que protesta contra o totalitarismo estatal de fascista, quando o fascismo é a ideologia que apregoa “tudo pelo Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”; chamam também de bolsonaristas aqueles cujos sentimentos transcendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o qual apenas se elegeu porque interpretou esses sentimentos e soube capitalizá-los politicamente, coisa que a esquerda identitária odeia, pois tem bandeiras burguesas e antipopulares que não podem conviver com uma concorrência verdadeiramente popular.
Contudo, a ambiguidade mais absurda é chamar de “terroristas” todas aquelas pessoas, quando, na verdade, apenas uma parte delas cometeu efetivamente um grotesco, absurdo e criminoso “vandalismo”.
É aqui que as pessoas se confundem: elas são induzidas pela mídia a fazerem um raciocínio de tipo metonímico, isto é, tomam a parte pelo todo, julgam o todo pela parte e, como não conseguem explicá-lo como eu estou fazendo aqui, permanecem hipnotizados pela pressa de formular um rápido juízo moral.
O terrorismo moderno não tem nada a ver com o terrorismo antigo, cometido por aqueles que foram chamados pelos xiitas muçulmanos de “hashashim” (palavra da qual deriva a nossa, portuguesa, assassino). Estes eram uma seita homicida-suicida fundada por Haçane Saba, no sec. XI, para combater um governo sunita. O método era simples: camuflavam-se em meio à população e, quando conseguiam chegar à sua vítima, fingindo dar-lhe um grande abraço, davam-lhe um golpe de punhal, matando-a e sendo mortos logo em seguida.
O terrorismo moderno foi criado e definido por Stálin como “propaganda armada” e consiste em aterrorizar uma população através de ataques de bombas e armas de grande destruição para obter um benefício político.
Quando Sayyid Qutb, fundador da “Irmandade Muçulmana”, foi preso pelo governo do Egito, escreveu um comentário marxista do Alcorão, inaugurando uma espécie de “teologia da libertação islâmica” na qual o conceito de “jihad”, originalmente concebido para tratar da disciplina ascética que o muçulmano deve ter em sua vida espiritual, foi interpretado como luta armada para combater toda autoridade usurpada, isto é, que não seja submetida a Allah. Ele tomava o conceito stalinista de terrorismo e aplicava à “jihad”.
Esses grupos terroristas foram se difundindo pelas sociedades islâmicas, até chegarmos à situação em que um deles conseguiu dominar alguns Estados, como o Afeganistão e o Iraque, mediante a sua política interna de terror (Al Qaeda significa, literalmente, “O quartel”).
Ora, o que isso tem a ver com o que aconteceu no domingo? Pessoas desarmadas podem causar terror? Que benefício político obtiveram do suposto “medo” incutido na sociedade? Esses atos são atos consistentes ou apenas ações de um ativismo desesperado? São perguntas. E, sem perguntas, não há análise.
Stálin, pela sua definição, havia entendido que o “terrorismo é propaganda armada”, ou seja, que os beneficiados, paradoxalmente, são sempre as vítimas, as quais, exatamente por isso, devem ser consideradas no ról dos suspeitos, ainda mais quando, num grupo heterogêneo (que, por definição, é heterogêneo, hahaha), podem-se facilmente infiltrar pessoas que, diferentemente do comportamento coerente dele, estavam ali justamente destinadas a realizar o contrário do que ele queria e sempre fez. Essas coisas acontecem: lembram do atentado de Juiz de Fora, quando um infiltrado entre os apoiadores tentou assassinar o candidato?…
Diante disso e com as alegações de que os responsáveis por não permitir aqueles atos de vandalismo foram informados do perigo ao menos 24h antes, não temos um quadro suficientemente estranho para suspeitarmos com fundamento das explicações apressadas que foram dadas e, sobretudo, das ações que consequentemente foram tomadas, as quais aumentaram ainda mais o totalitarismo contra o qual aquela população protestava?
Mais um detalhe histórico interessante. Em 27 de fevereiro de 1933, um grupo incendiou o parlamento alemão, três semanas antes da posse de Hitler (os historiadores, em sua maioria, dizem que o ato não foi protagonizado por opositores, mas por apoiadores do nazismo). Essa foi a deixa para que o ditador acusasse os culpados de golpe de Estado, os prendesse, e promulgasse um decreto em que suspendeu a liberdade civil, deu amplos poderes às forças policiais para prenderem suspeitos de atos antidemocráticos, suprimiu a liberdade de expressão, de imprensa, de livre associação e de reunião pública, e a quebra do sigilo postal e telefônico de toda a população.
Um ato de vandalismo merece um tratamento pontual ou pode ser usado como pretexto para o aumento do totalitarismo estatal? Pode haver democracia mediante a supressão de direitos fundamentais? É possível haver pacificação quando os supostos pacificadores são os próprios causadores do tumulto? São perguntas. E, sem perguntas, não há análise.
Fato é que a ambiguidade não favorece a compreensão e que, para sair da síntese confusa, é preciso proceder a uma desambiguação necessária.
Muito oportuno tais esclarecimentos.
Prezado Pe José Eduardo,
Um texto primoroso e intelectualmente rico. Ter a oportunidade de lê-lo, realmente engrandece a nossa alma.
Olá boa noite! Quero agradecer pelas informações precisas, nas quais sabemos ter credibilidade. Deus os abençoe! Viva Cristo Rei e sua Mãe Maria Santíssima! 🙏🏻✝️