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Abortar é exercer a liberdade?

No último dia 11 de maio, o Senado dos Estados Unidos rejeitou um projeto de lei que garantiria, em nível federal, o acesso ao aborto até imediatamente antes do nascimento. “A votação de hoje é uma das mais importantes que celebraremos em décadas”, afirmou antes de emitir seu voto o líder dos democratas na Câmara alta, Chuck Schumer. Eram necessários 60 votos para que o projeto fosse levado em frente. Todos os senadores republicanos votaram contra, e a eles somou-se Joe Manchin, senador democrata e católico. A votação terminou em 49 votos a favor e 51 contra. Batalhas legislativas semelhantes a essa têm sido uma constante em vários países do mundo nos últimos 50 anos, pelo menos. O Presidente norte-americano, Joe Biden, escreveu no Twitter que “os republicanos do Senado escolheram interferir nos direitos dos americanos de tomar as decisões mais pessoais sobre seus próprios corpos, famílias e vidas”. A vice-presidente, Kamala Harris, presidiu à sessão e, no fim, publicou um vídeo no seu Instagram, destacando que o Senado “falhou no direito das mulheres fazerem decisões sobre o seu próprio corpo”.  A ONU também já alertou para um retrocesso global nos direitos reprodutivos caso venha a ser decidida a proibição do procedimento. As vozes que discordaram da decisão do Senado norte-americano fizeram-no reivindicando “direitos”. Mas qual a origem desses “direitos”?

Há que se recordar que a Assembleia Nacional Constituinte da França aprovou, em 26 de agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Centrado na ideia de definir os direitos individuais e coletivos dos homens como universais, o documento se propôs promover a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Essa Declaração, contudo, em nenhum dos seus 17 Artigos, fala em “direito sobre o próprio corpo”, nem sobre “família”, ou “vida”. Aliás, é curioso notar que o Artigo 2º, ao elencar os “direitos naturais e imprescritíveis do homem”, não faz referência à vida humana (“A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.”). Somente em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro daquele ano, é que surge, por exemplo, a palavra “vida”: “Artigo 3° – Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Contudo, é difícil saber se temos motivos para comemorar uma Declaração historicamente tão recente, para não dizer cronologicamente atrasada, como a de 1948, tendo em vista que aquele mandamento do Decálogo dado a Moisés (Ex 20,1-17) – “Não matarás” – tem quase quatro mil anos. Quanta injustiça foi cometida pelo não cumprimento da Lei de Deus…

Refletindo o Artigo 1º da Declaração de 1789 – “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos” – o chamado princípio da igualdade, ou da isonomia, (em que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza) é quase uma unanimidade entre os legisladores ocidentais, o que torna uma aberração a defesa do “corpo da mulher” em detrimento da vida do bebê no ventre materno. Não é possível emitir um juízo sobre qual vida é mais importante sem ferir o princípio da igualdade. O senhor presidente norte-americano e sua vice deveriam recordar que para defender da extinção a águia-de-cabeça-branca, um dos maiores símbolos americanos, fez-se, pelo menos até o final do século passado, um exaustivo trabalho de preservação e tutela dos ovos dessa espécie. Ou seja: o ovo de uma águia já é uma águia, que está em uma determinada fase do seu desenvolvimento, e não se transmudará em outra coisa, mas continuará a ser uma águia; da mesma forma, um feto humano não é um amontoado aleatório de células, nem simplesmente uma vida em potencial (ainda em construção, inacabada, em finalização), mas já é um ser humano, que está em uma determinada fase do seu desenvolvimento, e não se transmudará em outra coisa, mas continuará a ser um ser humano, tendo portanto direito à vida tanto quanto sua mãe.

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU, o mundo passou a debater e refletir criticamente sobre um conjunto de situações colocadas historicamente que tornou possível a ampliação da concepção de direitos humanos, reconhecidos após a Segunda Guerra Mundial. Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos emergem historicamente a partir dessa discussão e o auge de seu reconhecimento se dá durante a realização, em 1994, da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, convocada pela Organização das Nações Unidas, no Cairo. No capítulo II das resoluções da CIPD/1994 estão explicitados os Princípios gerais, e neles podemos ver o interesse em disseminar uma espécie de liberdade em relação à contracepção, o que fatalmente veio a influenciar sentenças judiciais e formulações legislativas em todo o mundo. No Princípio 4, por exemplo, diz-se que “assegurar que ela [a mulher] seja quem controla sua própria fecundidade é a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento”. O Princípio 8 é apresentado em tom de exigência, indicando que “os países devem tomar todas as medidas apropriadas para garantir, em termos de igualdade entre homens e mulheres, o acesso universal a serviços de cuidados de saúde, incluindo os relacionados com a saúde reprodutiva, o planeamento familiar e a saúde sexual. Os programas de saúde reprodutiva deverão fornecer a mais ampla gama de serviços, sem qualquer forma de coerção. Todos os casais e todas as pessoas têm o direito fundamental de decidir livre e responsavelmente o número e o espaçamento dos seus filhos”. Ora, é preciso que alguém seja muito ingênuo para não ver nisso tudo uma preparação para que o aborto, em nível mundial, possa ser oferecido como um desses “serviços” prestados à “saúde reprodutiva”, tudo bem mascarado como exercício da liberdade natural da mulher. Daí, não obstante, surge uma pergunta decisiva: abortar é exercer a liberdade?

 

Quem defende o aborto como um ato de liberdade, defende, ipso facto, que o assassinato de um inocente, no ventre materno, com o consentimento da mãe, sem ter esse inocente a chance de defesa ou de fuga, é um ato de liberdade. Esse tipo de falsa liberdade é aquele que sempre pregou, por exemplo, John Stuart Mill, filósofo inglês do século XIX que sonhava desfrutar de uma liberdade sem freios morais, que luta contra a autoridade e apega-se ao pragmatismo e ao utilitarismo, afirmando a ideia de que “as ações são boas quando tendem a promover a felicidade e más quando tendem a promover o oposto da felicidade”. Para Stuart Mill, o fundamental é a afirmação da capacidade do ser humano de exercer a liberdade, escolhendo e decidindo entre o bem e o mal. A questão é: será sábio decidir entre o bem e o mal sem se valer de referências éticas e morais extrínsecas ao próprio homem? Não é justamente isso que prega a atual corrente de pensamento do transumanismo? Qual o conceito de felicidade que permite classificar a ação que a gerou como boa? A intrincada rede de conceitos confusos acaba por produzir, nesse tipo de corrente de pensamento – que nutre intelectualmente e de maneira intensa movimentos como o feminismo e a ideologia de gênero –, um mau uso da liberdade, que é o que está na origem da militância pela livre prática do aborto. A postura intelectual dos anti-vida sequer é original, ou inovadora, posto que sem esforço pode ser classificada como herdeira do pensamento de Protágoras de Abdera, um dos grandes filósofos sofistas na Grécia Antiga, que é conhecido por sua célebre frase: “O homem é a medida de todas as coisas”. Essa frase representa seu pensamento sobre a subjetividade e particularidade de cada indivíduo. Ou seja, para ele, tudo é relativo e não existe uma verdade absoluta.

Entretanto, nas palavras do filósofo Francisco Razzo, “a liberdade não gira em torno do próprio eixo, ou patina no vazio de pretensões vazias. Se liberdade implica responsabilidade, então responsabilidade se define antes pelo exercício humano de dar respostas seguras e impor limites às próprias decisões – boas ou ruins” (RAZZO, Francisco. Contra o aborto. p. 28). O aborto, como um ato que prejudica um terceiro, não pode ser compreendido como uma liberdade natural da mulher. Aliás, o que fundamenta a liberdade é, isso sim, a verdade – “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).

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