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Peçanha, contos do cotidiano – capítulo 1

  1. Despertar 

Peçanha acordou mais cedo do que de hábito, naquela manhã de quarta-feira. Conferiu as horas, e viu que eram 6 da manhã. Não era esse era o horário que acordava. Costumava ser pelo menos 1 hora a mais, às 7. Algo o havia feito perder o sono. E, uma vez desperto, não conseguia mais voltar a dormir.

Ficou pensando no que as pessoas mais velhas diziam aos jovens: “ah, meu filho, quando a gente envelhece acorda cedinho, junto com as galinhas”. Será por isso que estava começando a perder o sono, aos poucos? Mas, se fosse isso, seria bem estranho, pois tinha ainda recém passado dos 50…

Seja como for, falou para si mesmo: “bom, já que acordei então vou levantar”.

Beijou a esposa, que ainda dormia ao seu lado, e foi em direção ao banheiro. Tomou um banho bem quente, para compensar o frio intenso que fazia, que o deixava até um pouco ranzinza. “Agora o inverno chegou mesmo; com certeza esse é um dos dias mais gelados do ano”, murmurava. Talvez poderia até ter geado durante a madrugada, de tanto frio que estava. Olhou pela janela: o gramado todo branquinho, todo coberto pela camada fina de gelo.

“Que droga! Só para atrapalhar meu dia. Sair a essa hora com esse frio de rachar…”.

Sempre que se sentia assim, ranzinza, Peçanha falava, para quem perguntava o que estava acontecendo, que ele havia ficado “casmurro”. Usava a palavra em homenagem a Machado de Assis, um de seus escritores prediletos, que o fez amar a Língua Portuguesa e levar a pureza do idioma a um nível praticado por pouquíssimas pessoas, cotidianamente. “Muita gente nem sabe que o nome do livro Dom Casmurro é um jogo de palavras”, dizia para si mesmo, todo orgulhoso e feliz.

Passada a rabugice de perceber como estava frio, Peçanha começou a se arrumar para sair de casa rumo ao trabalho. Evitava com muito custo fazer barulho para não acordar a esposa. Ela continuava dormindo, e ele podia vê-la de canto de olho, admirando a sua beleza estática. “Incrível como essa mulher é bonita!”, ele não cansava de repetir a si mesmo.

Com seus pouco mais de 40 anos, ela quase não tinha uma ruga. Sua pele era tão macia e cheirosa que ele não entendia porque ela tinha o hábito de passar cremes à noite, antes de dormir. Ou será justamente por isso que a pele dela era assim?

Isso o fazia lembrar daquela frase boba: “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”, e ficava pensando: “será que a pele dela é assim por causa dos cremes, ou os cremes servem apenas para manter a suavidade e maciez que a pele já tem naturalmente?”

Pensava no cabelo dela:

“Meu Deus, o cabelo dessa mulher! Castanho claro, grande, ondulado, indo quase até a cintura. Deixa qualquer um louco.”

E as ancas? As ancas, então… Mas Peçanha parou com a divagação. O fato é que agora ele se esforçava para não fazer barulho, em consideração à mulher, que dormia de forma tão angelical.

Eles tomavam café da manhã juntos todos os dias. Ela sempre se entupia de iogurtes naturais, frutas e castanhas; e ele, de café de todos os tipos: puro, com um pouco de leite pingado, moído na hora na máquina moedora que ele se deu ao luxo de se presentear, ou em pó, passado no filtro.

“Vou deixar um bilhete para ela dizendo que saí mais cedo, me desculpando por não tê-la esperado acordar”.

Escreveu assim:

“Bom dia, paixãozinha. Tive insônia e saí mais cedo, não quis acordar você do seu sono encantado. Não deixa de tomar seu café da manhã, porque senão vou ficar preocupado de você não ter comido. Beijinho.”

Ele leu o bilhete depois que tinha escrito. Era estranho esse jeito quase infantil de ele escrever para a esposa. Logo ele, um homem tão polido e cheio de formalidades – especialmente com a Língua Portuguesa: “tem erros de conjugação do verbo que está no imperativo e ainda de concordância”.

Pensou: “deixa assim mesmo. Essa é a graça nisso tudo. Ela gosta de bilhetes carinhosos e informais”.

Saiu de casa.

~ ~ ~

  1. Café

Desceu à garagem do prédio e entrou em seu automóvel. Resolveu tomar café na padaria, quando fosse rumo ao caminho do escritório, considerando que naquela manhã saiu muito mais cedo do que de costume.

“Adoro esse carro, mas já está tão velho. Como eu queria comprar um novo, daqueles 0 quilômetros que anunciam por aí. Nunca tive um carro tão velho assim. Infelizmente, são os tempos de crise”, ele dizia para si mesmo.

Saiu dirigindo até chegar à padaria. Estacionou o carro e entrou. Lembrava-se ainda da primeira vez em que esteve naquele local. Lá se vão, daquela data, mais de duas décadas, e o estabelecimento já trocou de nome e de dono umas duas vezes. Mas sua lealdade ao local, no seu apego às rotinas e ao cotidiano, continua, e ele não consegue deixar de ir lá para de vez em quando tomar café da manhã.

“Café preto, por favor”.

“Sem leite?”, indaga a atendente.

“Sim; apenas café”.

O cheiro do grão moído na hora se espalha imediatamente pelo ambiente. “Não existe bebida melhor”, pensa ele.

“Pode trazer também um pão com uma fatia de queijo?”, pede à atendente.

“Queijo minas ou prato?”, pergunta a funcionária.

“Prefiro Minas”.

Ficava agora pensando na razão pela qual as pessoas chamavam o queijo da região em ele que morava, que era feito ali mesmo, pelos produtores locais, de Minas. Ele vivia em outro estado, bem longe das belas montanhas das Minas Gerais. “Mais uma impureza da Língua Portuguesa, que as pessoas promovem”, ele pensava.

Mas imediatamente percebia que dessa vez se equivocava, pois nesse caso específico não se tratava da região propriamente dita onde o queijo Minas era produzido, mas sim ao seu tipo, ao seu modo de manuseio e produção.

“Fosse assim, o que dizer do churrasco de costela gaúcha que adoro comer, onde o gado não vivia no Rio Grande do Sul, mas provavelmente em algum estado do Centro Oeste do Brasil, como Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul?”, indagava Peçanha a si mesmo.

“Definitivamente, tenho que controlar essa minha mania de corrigir as coisas de acordo com a pureza do idioma. Está beirando a obsessividade-compulsiva. Vou me policiar”.

Bebeu o café e comeu o pão com queijo.

Pagou a conta, e rumou em direção ao escritório.

~ ~ ~

  1. Tráfego

Para variar, tráfego pesado. Quando Peçanha tomou a resolução de se mudar para a cidade mais calma em que vivia, há anos e anos, longe da confusão da metrópole, jamais imaginou que um local com uma população tão pequena, de no máximo umas 50.000 pessoas, pudesse um dia vir a ter um trânsito tão carregado.

“São essas obras por aí pela rua, que provocam isso”, dizia ele. “É a falta de planejamento viário; não existem vias alternativas para o carro passar”, prosseguia.

Sempre que pensava no trânsito, pegava-se imaginando como deveriam ser as cidades grandes espalhadas pelo Brasil, cujas imagens a televisão mostra abarrotadas de carros por todos os lados, há uns 60 ou 70 anos. Gostava de fazer esse exercício mental. Ia mais longe ainda, na sua imaginação:

“E na época do Império? Como deveria ser? Como será que Machado de Assis descia o Cosme Velho até o Largo do Machado, o Catete, ou o Centro, para ir até o Real Gabinete Português de Leitura?”

Continuava:

“Óbvio que ele deveria ir de bonde, mas certamente muitas vezes ia a pé mesmo… Não era tão longe assim. Nós, em nossa vida moderna, é que acabamos nos auto escravizando por essas máquinas cheias de cilindradas, e esquecemos que o ser humano foi feito para caminhar.”

Então, nessas horas em que estava metido no trânsito parado a única coisa que Peçanha pensava era que deveria acostumar-se logo de uma vez a ir para o trabalho caminhando, deixando o carro em casa.

“Bem melhor movimentar-se a pé do que ficar parado dentro do carro. Faz bem para a saúde, e é capaz até de eu chegar mais rápido. São apenas 3 quilômetros”.

Avista o prédio onde fica a sala na qual passa os dias da semana, menos sábados e domingos.

~ ~ ~

  1. Trabalho

A primeira coisa que Peçanha faz quando entra no escritório, antes mesmo de ligar o computador e os outros equipamentos eletrônicos, é abrir a janela. Na verdade, abrir não; escancarar. Como o escritório fica no 4º andar do edifício comercial, não existe risco de o barulho da rua e a fumaça do cano de descarga dos carros entrarem pela janela.

Ele gosta de sentir o ar puro do lado de fora, ao invés de ficar com o ar-condicionado ligado.

Olha para a cafeteira elétrica na bancada e pensa: “puxa, já tomei café. Tomo outro ou não? Será que faz mal?”

Lembra dos conselhos da mulher para que ele diminua aos poucos a quantidade de cafezinhos durante o dia. Parece mesmo que ela está ao lado dele, dizendo-lhe:

“Café em demasia deixa os dentes escurecidos. Pode também dar algum problema estomacal. Tome apenas uns 2, na parte da tarde, antes de vir embora. Não precisa exagerar.”

E daí reconsiderou o impulso de beber mais café.

Peçanha liga o computador para começar a escrever as colunas nos veículos de comunicação onde trabalhava como jornalista, e participar, via videoconferência, dos programas de debates jornalísticos diários. Tem muita coisa para ser escrita naquele dia, e muita coisa para ser dita a respeito dos últimos acontecimentos políticos do Brasil.

Algumas vezes no mês, Peçanha tinha que se deslocar até a Capital, onde se localizava a sede dos jornais onde trabalhava, para reuniões e participação presencial em alguns programas. Mas na grande maioria das vezes, ele trabalhava de seu próprio escritório.

“Essa é a maravilha da internet”, ele repetia para si mesmo.

No exato momento em que começaria sua rotina diária com as escritas naquela manhã, ele recebe uma chamada da esposa pelo telefone. Começa a conversa:

“Oi, amorzinho. Acordou? Viu meu bilhete?”

“Bom dia, Carlos. Senti sua falta na cama, quando olhei para o lado. Pensei logo: hmmm, ele deve ter saído cedo e tomou café na padaria, me deixando aqui sozinha.”

Peçanha achava bom a esposa chamá-lo pelo nome próprio, e não pelo sobrenome, como todos, rigorosamente todos faziam. Demonstrava intimidade.

“Não quis acordar você, meu bem. Diga, o que posso fazer para ajudá-la no seu dia?”, pergunta Peçanha, todo formal e prestativo.

“Nada não. Não se preocupe. Queria saber se está tudo bem, só isso. E perguntar se podemos sair para jantar fora. Você tem que compensar a sua ausência no café-da-manhã.”

“Que ótimo. Lógico que podemos sim. Até já sei onde podemos ir. Arrume-se toda bonita para mim.”

A mulher finaliza, com a voz suave peculiar, baixinha, quase como um sussurro:

“Hmmm, então tá. Colocarei aquele vestido azul de fenda nas costas que você gosta, e usarei por baixo um conjunto que você ainda nem conhece. Está bom assim para você, meu amor?”

A mulher dá uma risadinha, e antes de desligar o telefone ainda fala:

“Me pegue às 8. Estarei com muita fome no jantar. Prepare-se”.

Após a mulher desligar, Peçanha fica com o telefone na mão, olhando para o vazio, meio catatônico. Fica pensando no poder que a mulher tem sobre ele, de deixá-lo tão vulnerável e tão entregue.

“Cara, não abra tanto a guarda assim para sua mulher”, diziam os colegas do jornal quando Peçanha ia lá para a Capital. “Não crie uma rotina tão rígida e não se deixe ser dominado pela esposa”, alertavam. Uns, que se achavam mais vividos do que ele, chegavam a aconselhar: “quando vier aqui para a Capital fique na cidade de um dia para o outro, não volte para casa no mesmo dia, como você faz; saia para ‘espairecer’, entende? O que os olhos não veem o coração não sente.”

“Tolos. Fúteis. Imaturos. Homens vazios e ocos, isso que eles são”, pensava Peçanha sempre que ouvia os tais conselhos dos colegas. “Não conseguem compreender o relacionamento que tenho com minha esposa porque não conhecem o amor verdadeiro”.

Peçanha tinha convicção que o que o fazia ser tão feliz com a esposa era, justamente, não ouvir conselhos matrimoniais de quem quer que fosse, e fechar-se em uma sólida relação conjugal, imune a qualquer tipo de ataque externo. “Aí está uma das mazelas do mundo: casamentos fracos, que não se sustentam e não resistem às intempéries!”

Depois da ligação da mulher chamando-o para jantar e se sugerindo a ele daquela maneira, Peçanha não conseguiu mais trabalhar. Tentou ler as notícias, procurou escrever as suas colunas, fez ligações para os jornais perguntando sobre as pautas…

Tudo em vão. A cabeça não funcionava direito. A única coisa que conseguia pensar era na voz sedutora da mulher, falando do tal vestido e do que vai ter por baixo dele, à noite, quando saírem para jantar.

Naquele dia, Peçanha gazetou o próprio trabalho. Autossabotou-se no escritório. Não conseguiu produzir nada, pois a única coisa que fazia era contar as horas para ir embora, para pegar a mulher para saírem para jantar.

“Depois eu compenso escrevendo duas colunas, três, quatro, isso pouco importa! Se eu não puder ter um dia ruim, sem inspiração para escrever nos jornais, e eles não puderem compreender isso após tantos anos, então paciência… Hoje é quarta-feira, e a agenda nem é tão pesada assim. Amanhã eu mando tudo”, pensava Peçanha, quase com um espírito rebelde juvenil.

~ ~ ~

  1. Mulher

Peçanha tinha o hábito de sempre ir para o escritório vestido de forma impecável. “A maneira como um homem se apresenta trajado é tudo!”, tinha para si mesmo.

Então, pensava que não precisava mudar de roupa para sair para jantar. “Os homens são diferentes das mulheres nesse ponto”, pensava ele consigo mesmo. “Elas se trocam várias vezes ao dia, para cada ocasião, enquanto nós o fazemos talvez apenas para dormir.”

A única coisa que Peçanha fez, antes de ir buscar a mulher, foi passar um pouco da água de colônia que tinha no escritório, que ganhou da esposa como presente, e escovar os dentes, para tirar o cheio dos dois cafés que havia bebido à tardinha.

Rumou em direção à casa.

Exatamente às 8 em ponto (“pontualidade é tudo”, dizia sempre), telefonou para a esposa e pediu a ela para descer, pois a estava esperando. Poucos minutos depois, olhou de soslaio a figura que aparecia, dentro de um belo vestido longo azul, com um sobretudo de lã por cima dos ombros, e que quando entrou no carro espalhou pelo ar o perfume inebriante.

“Oi, amor. Senti sua falta. Acordei e vi que não estava… Me abandonou, é?”, diz a mulher com um sorriso largo no rosto, ajeitando-se para se sentar de lado. Sempre que a esposa sorria assim suas covinhas apareciam, e Peçanha a achava mais charmosa ainda; e quando ela sentava dessa maneira, meio de lado e com as pernas cruzadas, Peçanha percebia o poder de sedução que a esposa tinha:

“Ela só pode fazer de propósito! Não é possível isso!”, pensava consigo mesmo.

Ela usava a gargantilha magnífica que Peçanha havia comprado para ela quando eles fizeram 20 anos de casados, há uns 3 ou 4 anos. Escura, de ônix, toda trabalhada manualmente, e que deixava o belo pescoço da esposa destacado. Além da gargantilha, ela usava ainda como acessório final um brinco com um pingente de ouro, que se perdia por entre os cabelos castanhos longos.

“Você está linda! Vamos jantar?”.

Peçanha pega o caminho do restaurante, e a mulher fala sobre o seu dia. Conta tudo o que fez, mesclando todos os afazeres domésticos e profissionais, no trabalho em casa que ela vinha tentando manter, no home office que organizou e projetou. “Pobrezinha, fica o dia inteiro em casa… Desde que parou de trabalhar comigo no escritório a vida dela ficou mais limitada.”

Quando parou no sinal vermelho, a mulher lhe deu um beijo carinhoso e segurou na sua mão, sorrindo um sorriso puro. Abriu o sinal, Peçanha arrancou com o carro, e pensou: “Como teria sido tudo, se tivéssemos tido filhos?”.

Na verdade, ultimamente ele sempre pensava nisso. Agora, que atingia a meia-idade, pensava que talvez ter consigo um pedacinho da esposa, na forma de um filho, deixar um pedaço dela e dele no mundo, não teria sido uma má ideia.

Peçanha pensava que a vida era de fato perfeita, que o homem de fato funcionava em um equilíbrio metafísico, e que tudo tinha de fato um propósito: “se não pudemos ter filhos, então não pudemos! Simples assim! Paciência!”.

Mas teria sido muito bom, de verdade, ver aquela mulher estonteante, que ele amava tanto de forma tão intensa e com tanta sofreguidão, continuar a viver em um pedacinho de gente que ele e ela, juntos, fariam em seu ato de amor.

~ ~ ~

  1. Jantar

Peçanha e a mulher chegam ao restaurante. Eles queriam sentar-se na varanda, mas desistiram, devido ao frio que fazia – “agora o inverno chegou mesmo”, Peçanha repete o mesmo pensamento da manhã.

Era um restaurante típico da região em que viviam: familiar, onde pais e filhos trabalhavam juntos, preparando os pratos e atendendo a clientela. A comida era muito, mas muito boa. Aliás, neste particular, Peçanha sempre pensava que saber cozinhar bem era quase como um dom divino. Tinha para si que alimentar um outro ser humano, saciando-lhe a fome, era algo de uma importância tão grande que nem conseguia mensurar.

O jantar transcorre sem qualquer tipo de problema. A mulher come peixe, e bebe meia garrafa de vinho. Peçanha come cordeiro, mas não bebe álcool, apenas água.

A mulher fala mais e mais, e quando falava sorria a todo o tempo para o marido, buscando encostar-se nele e tocá-lo. O vinho a deixava alegre. “Alegre é diferente de feliz, e sorrir é diferente de rir”, pensava Peçanha já buscando não incorrer nos vícios etimológicas do dia-a-dia que todos cometem quanto à pureza da Língua Portuguesa.

“Vinho é a bebida dos deuses”, repetia ele sempre. “É bíblico: in vino veritas, ou seja, a verdade está no vinho”, dizia também. Quando Peçanha bebia, dificilmente ficava apenas em meia garrafa de vinho, como a mulher, que era fraca para bebidas. Certamente seria mais de uma, se resolvesse beber. “Ora, se fosse para beber eu teria vindo de táxi. E hoje é uma noite especial. Não quero beber nada de álcool que possa atrapalhar meus pensamentos e minha ação depois.”

Peçanha pagou a conta, e rumou para casa.

~ ~ ~

  1. Casa

Ao entrar em casa, a mulher deixou o sobretudo de lã próximo ao aparador da sala, e ambos subiram ao quarto. Peçanha não conseguia dormir sem tomar banho. E, metódico como era, também não conseguia sair de casa sem fazê-lo. Então, eram 2 por dia.

Foi tomar um banho bem quente para, segundo ele, “tirar o cheiro da rua”, enquanto a mulher ligava o aquecedor do quarto para deixá-lo na temperatura de aproximadamente uns 23ºC e não precisar de algo mais do que um lençol para se cobrir durante a madrugada.

Ao sair do banheiro, Peçanha deparou-se com uma das imagens mais bonitas que ele tinha visto até aquele momento, em seu meio século de existência no planeta. Ele pôde conferir, enfim, o que a mulher trazia no corpo por baixo do vestido. Ela havia o instigado de propósito, na ligação telefônica da parte da manhã, apenas para deixá-lo curioso.

O conjunto de lingerie que a mulher vestia, todo de renda florida, no qual se via a marca da costura, quase como feito à mão, era de uma delicadeza ímpar. Quem quer que tenha costurado aquilo o fez imbuído de uma inspiração quase que divina, Peçanha pensava.

A parte de baixo realçava bem a cintura da esposa, descia bem abaixo do umbigo e deixava à mostra a sua barriga torneada, com a fitinha de renda tornando tudo mais delicado do que já era naturalmente. Já a parte de cima realçava os peitos, deixando-os com aspecto de serem um pouco maiores do que de fato são.

Peçanha não queria soar piegas, mas olhando a mulher ali, sentada na cama, sorrindo para ele com aquele conjunto maravilhoso de lingerie cobrindo o seu corpo, sentiu uma pontada de emoção que quase o fez desabar. Teve que se controlar para não deixar a esposa perceber a gotinha de lágrima que quase pulava para fora do olho.

A mulher sorriu, com aquele sorriso de canto de lábios que lhe era peculiar, que fazia aparecer as covinhas da bochecha, e levantou-se da cama para apagar a luz.

Nesse momento, Peçanha a segurou firme pelos braços e disse, com voz impostada e decidida:

“Deixe a luz acesa, meu amor, quero enxergar você”.

 

Por: Guillermo Federico Piacesi Ramos

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