A avalanche de lixo que tem sido provocada pela política nacional com a CPI da Covid e o avanço das pautas do totalitarismo sanitário Brasil e mundo afora quase me fizeram esquecer de duas datas muito importantes para a história do Brasil no mês de julho: os dias 2 e 9.
O 2 de Julho ganhou valor especial para mim quando estive me aprofundando na história da literatura baiana, em especial enquanto estudava a biografia de Francisco Moniz Barreto, poeta romântico e militar veterano de Independência, que trocou o curso de Direito em Coimbra para servir ao Brasil. A data, conhecida como Independência do Brasil na Bahia, remete aos conflitos ocorridos naquele estado entre brasileiros patriotas e um grupo de portugueses que, mesmo após o Sete de Setembro, queriam manter a Bahia como território luso. A luta começou meses antes do Grito do Ipiranga, em fevereiro de 1822, e só terminou em 2 de julho de 1823. Em torno dela juntaram-se liberais, conservadores e até mesmo republicanos, unidos pela soberania da Bahia enquanto território brasileiro. Foi a primeira de diversas vitórias de D. Pedro I, que para lá enviou reforços em favor dos baianos, em seu esforço de garantir a unidade nacional após a Independência. Para quem quiser conhecer um pouco mais do 2 de Julho em nossa literatura, recomendo a coletânea O 2 de Julho na Bahia – Antologia Poética, organizada pela professora Lizir Arcanjo Alves.
O dia 9, muito mais conhecido entre os brasileiros, dispensa maiores explanações. Remete à luta dos paulistas, em 1932, contra o tirano Getúlio Vargas, queridinho da esquerda que, até hoje, infelizmente, povoa de maneira positiva o imaginário político de boa parte dos brasileiros. Para mim, a data é ainda mais especial, por minha árvore genealógica trazer dois veteranos de 32: meus bisavós João e Sebastiana da Nóbrega.
João e Tiana, pouco antes de mudarem-se para Londrina, onde viriam a ser pioneiros em um tempo em que, literalmente, era tudo mato, moravam em Ourinhos, e tão logo se soube dos conflitos na capital, os homens da cidade se coçaram num misto de sede de luta e liberdade, e rumaram para se juntar à tropas voluntárias. A bisa Tiana foi uma das tantas mulheres que tiveram que ficar e se virar com pudessem. O biso deixou-lhe as economias, umas compras do armazém, a horta, a roça e as galinhas do quintal, e as cinco crianças para cuidar – uma ainda de colo -, sem data para voltar.
Pouco tempo após a partida dos homens, eis que um destacamento de gaúchos desordeiros passou por Ourinhos e resolveu acampar justamente no quintal dos meus bisavós. Bisa Tiana se trancou em casa com as crianças e ficou de prontidão, um olho nos filhos e outro na porta, a espingarda pronta para disparar. Os arruaceiros mataram todas as galinhas, destruíram a horta e a roça do quintal, churrasquearam e, quando já estavam bem bêbados, começaram a ameaçar entrar, queriam “galantear e se divertir com a moça bonita” (a bisa não passava ainda dos 25). Quando já era alta noite e ninguém, exceto a bebê, dormia, tentaram forçar a porta para entrar. A bisa, então, fez mira e atirou, várias vezes. Silenciado o último tiro, só se ouvia lá fora o alvoroço de tralhas sendo arrumadas, cavalos sendo encilhados e rumando embora, tudo às pressas. Os gaúchos sumiram, não só daquele quintal, mas da cidade. Quando o biso voltou, ficou estupefato com o estrago na porta e o relato da bisa – mesmo depois de cinco filhos, não fazia ideia da força da mulher com que se casara.
Esta história de 32 sobrevive no imaginário da família graças à minha vó Maria, que era uma excelente contadora de histórias e que foi uma das crianças presentes naquela noite – como era uma das meninas mais velhas, ficara com a tarefa de cuidar da nenê enquanto a bisa protegia a casa e a família. O causo também foi eternizado, com suas licenças poéticas, por meu pai Domingos em um de seus mais belos contos, Guerra em Família.
A memória dos baianos de 1823 e dos paulistas de 1932 talvez devesse falar mais alto à consciência um tanto amortecida dos brasileiros, mas nem tudo está perdido. O evento pró-armas da última sexta-feira (aliás, na significativa data do 9 de Julho) mostra que o brasileiro ainda quer lutar por sua liberdade. No entanto, aqueles 20 mil manifestantes ainda precisam crescer para 200 mil, e, depois disso, para 2 milhões, e assim por diante. Que o espírito e a coragem de pessoas como Moniz Barreto e os bisos Tiana e João possam crescer entre os brasileiros, para que não tenhamos que um dia nos defender de tiranos e oportunistas com pedras e tijolos, como vimos acontecer em Cuba. E que possamos bradar, antes que o mês acabe: Viva o 2 de Julho! Viva o 9 de Julho! Viva o Brasil! Viva a liberdade!