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Da libertas praestantissimum de Leão XIII à libertinagem da pós-civilização

 

“A liberdade, excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados de inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele é colocado entre as mãos do seu conselho e se torna senhor de seus atos.”

— Leão XIII

 O Sumo Pontífice Leão XIII, sem sombra de dúvidas, foi um dos maiores Bispos no que tange às exortações e ensinamentos doutrinários relacionados à política, à sociedade e às relações dos homens em geral. É indubitável a importância desse Santo Padre ao nortear o bem agir do Corpo Eclesiástico, trazendo, de maneira sóbria e objetiva, o bom e nunca ultrapassado tomismo e, reafirmando, reiteradas vezes, a primazia da doutrina do Aquinate sobre os erros da modernidade liberal, laica, secular e indiferentista. Teve a virtude de trazer à luz questões de fato cruciais para não somente combater às quimeras das filosofias liberais e modernistas como também influenciar membros do corpus politicum, como no caso da Princesa Isabel que, em toda sua coragem e fortaleza, decidira por implantar, em nossa Terra de Santa Cruz, um modelo político tal como estruturado na Carta Encíclica Rerum Novarum – o “pontapé” inicial para a Doutrina Social da Igreja. Entretanto, neste caso específico, sendo a própria Princesa sendo impedida pelas forças revolucionárias maçônicas e positivistas atuantes.

Neste artigo, como em todos os outros, opto por raciocinar em “contrastes”, isto é, trazendo a perspectiva católica em diferença com às perspectivas do secularismo – em todas às suas facetas – e do humanismo imanentista em sua dialética antropoteísta (ora panteísta, ora gnóstica).

O problema da liberdade é mister para compreendermos, literalmente, à verdadeira concepção desta em relação à libertinagem da pós-civilização que ergueu-se sob os ensinamentos do Anjo Caído e todas às heterodoxias, próprias da confusão, das contradições malignas, em suma, da língua bifurcada.

O Papa Leão XIII, em sua Libertas Praestantissimum(1), exorta-nos para a Verdade que nunca dependerá única e exclusivamente do tempo e do espaço para ser aquilo que é. Ou seja, trabalha com conceitos, definições precisas, com a razão natural dada por Deus iluminada pela fé.

O libertador do gênero humano, Jesus Cristo, tendo restaurado e aumentado a antiga dignidade da nossa natureza, fez sentir sua influência principalmente sobre a vontade mesma do homem; e, pela sua graça, que lhe prodigalizou os socorros, pela felicidade eterna, de que lhe abriu a perspectiva no Céu, elevou-o a um estado melhor.”

 Em contraste, como dito, com às falsas indagações da libertinagem moderna (ou pós-moderna), que absolutiza o imaginário em detrimento da ordem da vontade à razão, a verdadeira liberdade repousa como meio, nunca como princípio ou fim. O homem, sendo feito à imagem e semelhança de Deus, dotado de inteligência, vontade e sensibilidade, é capaz tanto de ser dono de seus atos pela via ética como também é livre ao sê-lo. Portanto, o homem só pode dizer-se livre em relação ao bem apetecível pela vontade.

Explique-se.

Nenhum homem pode considerar-se livre ao cometer um ato que fuja do juízo racional que repousa no ato de ser. Quando um sujeito acredita, subjetivamente, que eliminar vidas humanas apenas por ter essa vontade é estar realizando um verdadeiro bem, na realidade, está cometendo um ato bestial, irracional por excelência, pois desvia-se naturalmente das potencialidades circunscritas em sua alma. Considera que a desordem deste ato pode trazer um livramento, uma salvação ou um alguma outra espécie de compensação psicológica. Naturalmente que essa crença acidental e subjetiva, causando um mal moral relativo, decorre-se de uma influência maligna em si mesma.

Esse mecanismo relativista que domina praticamente toda forma mentis da modernidade e do neo-paganismo atual, foi o principal motor para que, posteriormente, um absolutismo macabro tomasse conta das relações sociais.

Veja-se como Satanás é irônico!

Os jovens militantes, ao proclamarem uma batalha praticamente metafísica contra os dogmas cristãos, contra os ditos “fascistas” – acusação risível que não resiste à uma análise séria – contra os padrões impostos pela sociedade, etc., criam, a posteriori, dogmas materialistas e padrões infinitamente mais opressores do que àqueles imaginários que dizem combater. E isto é completamente constatável empiricamente ao visitar qualquer departamento de ciências sociais das faculdades contemporâneas. Todos estão falando às mesmas coisas, vestindo às mesmas roupas, servindo aos mesmos iníquos e sendo enganados da mesma maneira. De fato são padronizados ao combater os “padrões”.

Esses erros grotescos acontecem pela total ignorância intelectual do que realmente seja a liberdade e os conceitos de corpo e alma.

O grande problema é que para os desconstrucionistas, filosofia quimérica que bebe de influências neomarxistas cabalísticas, não há conceitos. Não há o Ser. Não há os transcendentais do Ser e os universais. O que existe, categoricamente, é a crítica de tudo que há. A cada conceito aplicado, o desconstrucionista aplica uma intervenção do sujeito para que aquele conceito não seja “imposto” e objetivado. Veja-se, por exemplo, a batalha desses desconstrucionistas contra o matrimônio, a castidade, o homem e a mulher, a vida desde à concepção, entre outras coisas.

O que diretamente Nós temos em vista é a liberdade moral, considerada quer nos indivíduos, quer na sociedade. É bom, entretanto, dizer em primeiro lugar algumas palavras sobre a liberdade natural, a qual, apesar de ser completamente distinta da liberdade moral, é contudo a fonte e o princípio donde toda a espécie de liberdade dimana por si mesma e como espontaneamente.

A liberdade natural é própria dos seres racionais.

Esta liberdade, que certamente é para nós a voz da natureza, o juízo e senso comum de todos os homens não a reconhecem senão aos seres que têm o uso da inteligência ou da razão, e é nela que consiste manifestamente a causa que nos faz considerar o homem responsável pelos seus atos. E não podia ser doutra maneira; porque, ao passo que os animais não obedecem senão aos sentidos e não são impelidos senão pelo instinto natural a procurar o que lhes é útil ou a evitar o que lhes seria prejudicial, o homem tem, em cada uma das ações de sua vida, a razão para o guiar. Ora, a razão, relativamente aos bens deste mundo, diz-nos de todos e de cada um que eles podem indiferentemente ser ou não ser; donde se conclui que, não lhes parecendo nenhum deles absolutamente necessário, ele dá à vontade o poder de opção para escolher o que lhe apraz. Mas se o homem pode julgar da contingência, como se diz, dos bens de que Nós falamos, é porque ele tem uma alma simples de sua natureza, espiritual e capaz de pensar; uma alma que, sendo tal, não tira sua origem das coisas corpóreas, visto que delas não depende na sua conservação; mas que, criada imediatamente por Deus e ultrapassando com uma imensa distância a condição comum dos corpos, tem o seu modo próprio e particular de vida e de ação: donde resulta que, compreendendo pelo seu pensamento as razões imutáveis e necessárias da verdade e do bem, vê que estes bens particulares não são de modo algum bens necessários. Assim provar que a alma humana está desligada de todo o elemento mortal e é dotada da faculdade de pensar, é estabelecer ao mesmo tempo a liberdade natural sobre o seu mais sólido fundamento.”

Percebe-se, diante da análise de Leão XIII, que o movimento revolucionário, em suma, transforma-nos em meros animais sem inteligência e vontade sãs. Como também ignora a existência universal do Corpo Místico de Cristo.

E isto é importantíssimo analisarmos.

Com a instituição da Igreja, por Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, tornamo-nos irmãos em essência e continuamos diferentes nos aspectos acidentais. Somos chamados à unidade da fé, do batismo e de um único Corpo. Temos a possibilidade, mesmo após o pecado original, de retornarmos à amizade com Deus mediante a Graça. E só neste sentido podemos dizer que somos pessoas em sua integralidade, isto é, por ter relação consigo mesmo, com o próximo e com Deus mediante a Graça santificante. Segue-se, portanto, que não há liberdade maior. E é nesse sentido que a liberdade torna-se um bem, sendo atualizada no encontro da natureza humana com o Ser.

A Igreja Defensora da Liberdade.

  1. Ora, esta doutrina da liberdade como a da simplicidade, espiritualidade e imortalidade da alma humana, ninguém a prega mais algo e a afirma com mais constância do que a Igreja Católica; ela tem-na ensinado em todos os tempos e a defende como um dogma. Mais ainda: perante os ataques dos heréticos e dos fautores de novas opiniões, a Igreja tem tomado a liberdade sob a sua proteção e tem salvado da ruína este grande bem do homem. A este respeito, os monumentos da história testemunham a energia com repeliu os esforços insanos dos Maniqueus e outros; e, em tempos mais recentes, ninguém ignora com que zelo e força, quer no Concílio de Trento, quer mais tarde contra os sectários de Jansênio, ela combateu pela liberdade do homem, não deixando, em nenhum tempo e lugar, tomar incremento ao Fatalismo.” 

As construções gnósticas, sejam elas antigas ou modernas, condenam à defesa irrestrita do Corpo Místico de Cristo no que concerne a liberdade pois acreditam não pode haver bem agir ou ordem do sensível ao intelectual neste mundo. Pois, para os gnósticos, o mundo físico é pura maldade metafísica. Algumas seitas gnósticas históricas propuseram que, através da destruição, o homem poderia libertar-se do demiurgo mais rapidamente para alcançar o pleroma, o deus-bom preso na matéria substancialmente má. Eis o incentivo maior da Escola de Frankfurt, por exemplo, que propõe a Teoria Crítica pela a derrocada dos “valores burgueses” ou, como dizia o neomarxista húngaro Gyorgy Lukács, da “superestrutura” que repousa no Ocidente católico.

Já na metafísica católica, a liberdade é uma boa potência por adequar-se à hierarquia e à gradação do Ser por analogia. A síntese genial de Sto. Tomás de Aquino das filosofias platônica e aristotélica, da participação e do ato-potência, trouxe-nos uma autêntica Filosofia do Ser que sustenta todo o entendimento do homem em toda sua formação integral e seu devido fim.

Proteção e auxílios da liberdade. A lei.

Sendo tal a condição da liberdade humana, era necessário ministrar-lhe auxílios e socorros capazes de dirigir todos os seus movimentos para o bem e de desvia-los do mal. Sem isto, a liberdade teria sido para o homem uma coisa muito prejudicial. E primeiramente era-lhe necessária uma lei, isto é, uma norma do que era preciso fazer e omitir. Falando com propriedade, não pode dar-se isto entre os animais que operam por necessidade, porque todos os seus atos os realizam sob o impulso da natureza, sendo-lhes impossível adotar por si mesmos outro modo de ação. Mas os seres que gozam de liberdade têm por si mesmos o poder de operar ou não, proceder de tal ou qual forma, visto que o objeto da sua vontade não o escolhem senão quando intervenha o juízo da razão, de que Nós falamos. Este juízo diz-nos não somente o que é bem em si ou o que é o mal, mas também o que é bom e por conseguinte se deve realizar, ou o que é mau e por conseguinte se deve evitar. É, com efeito, a razão que prescreve à vontade o que ela deve procurar ou de que deve fugir para que o homem possa um dia atingir esse fim supremo, para o qual deve dirigir todos os seus atos. Ora, esta ordenação da razão é o que se chama lei. Se, pois, a lei é necessária ao homem, é no seu mesmo livre arbítrio, isto é, na necessidade que tem de não se pôr em desacordo com a reta razão, que é preciso procurar, como na sua raiz, a causa primeira. E nada se pode dizer ou imaginar de mais absurdo e mais contrário ao bom senso do que esta asserção: o homem sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei. Se assim fosse, resultaria que é necessário, para a liberdade, não estar de acordo com a razão, quando a verdade é inteiramente o contrário, isto é, o homem deve estar sujeito à lei precisamente por que é livre por natureza. Assim, pois, é a lei que guia o homem nas suas ações e é ela também que, pela sanção das recompensas e das penas, o leva a praticar o bem e o afasta do pecado.

Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrito e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo.”

 É de percepção praticamente geral – aos despertos dos enganos da revolução – que a lei natural, impressa na alma do ser racional como dizia S. Paulo, foi abolida de toda e qualquer instituição secular. O que temos hoje em dia são elites oligárquicas definindo, também ‘a posteriori’, aquilo que é lei e aquilo que não é. Na concepção universal cristã, como explica-nos o Santo Padre Leão XIII, toda lei positiva ordena-se necessariamente à lei natural e esta, por participar do Ser, ordena-se à lei divina. Os Dez Mandamentos, longe de serem imperativos categóricos ou objetos de crença, são à estrutura ontológica mesma do ser humano enquanto ser. É uma forma, simbolicamente falando, de Deus falar em nosso interior para possamos nos relacionar com toda realidade criada. Portanto, ao falarmos de relações interpessoais e sua finalidade temporal, que é o bem comum, não podemos descartar a objetividade da lei natural para o alcance mesmo da justiça e do direito.

Os libertinos da pós-civilização desconstroem essa beleza conceptual para pensamentos absurdos e quiméricos, infantis e padecentes de realismo sóbrio.

Acreditam que pelas meras frases de efeito, tais como: “liberdade de consciência, de imprensa, religiosa”, etc., estão postulando coisas substanciais, quando, na verdade, não dizem nem A nem B. Tanto a consciência como o restante não são absolutas em si mesmas se esvaziadas de sua adequação ontológica e com a realidade de todas as coisas. A tomada de consciência mecanicista, fruto dos atomismos dos últimos séculos, resultou, nada mais nada menos, em totalitarismos puros e simples.

Para ilustrar melhor essas “independências” absurdas, trago os ótimos ensinamentos do Padre francês Augustin Roussel(2)

“O liberal é fanático pela independência, ele a enaltece até ao absurdo, em todos os domínios:

— A independência do verdadeiro e do bem em relação ao ser: é a filosofia relativista da mobilidade e do devir;

— A independência da inteligência em relação a seu objeto: soberana, a razão não tem de se submeter a seu objeto, ela o cria, de onde a evolução radical da verdade; subjetivismo relativista.

— A independência da vontade em relação à inteligência: força arbitrária e cega, a vontade não tem de se preocupar com julgamentos e avaliações da razão, ela cria o bem como a razão cria o verdadeiro.

— A independência da consciência em relação à regra objetiva, à lei; ela mesma se erige em regra suprema da moralidade;

— A independência das potências anárquicas do sentimento em relação à razão: é um dos caracteres do romantismo, inimigo da presidência da razão (cf. Rousseau, Michelet…);

— A independência do corpo em relação à alma, da animalidade perante a razão: é a inversão radical dos princípios e bens humanos;

— A independência do presente em relação ao passado; de onde o menosprezo da tradição, o amor mórbido da novidade sob o pretexto de progresso;

— A independência da razão e da ciência em relação à fé: é o racionalismo, para que a razão, juíza soberana e medida do verdadeiro, se baste a si mesma e rejeite toda dominação alheia;

— A independência do indivíduo em relação a qualquer sociedade; do filho perante seus pais, da mulher em relação ao marido, do cidadão em relação ao Estado, do fiel perante a Igreja. É o individualismo anárquico, para que o homem, naturalmente bom (Rousseau) ou em progresso fatal (Payot, Bayet), possa evoluir à sua maneira, com toda a liberdade, viver intensamente sua vida; qualquer ataque a esta liberdade sagrada é tirania, despotismo, crime de lesa-humanidade;

— A independência do operário em relação ao patrão: de onde a tendência a substituir a hierarquia corporativa pela igualdade cooperativa e a participação dos lucros e da gestão pelo acionariado operário, é a marcha rumo ao Sovietismo da indústria;

— A independência do homem, da família, da profissão, do Estado, sobretudo, em relação a Deus, a Jesus Cristo, à Igreja, isso, segundo os pontos de vista, é o naturalismo, o laicismo, o latitudinarismo… por consequências ou por princípios, com as “liberdades modernas” veneradas como as divindades do advir;

— A independência do povo e de seus representantes em relação a Deus: soberania popular e sufrágio universal, entendidos como medida do verdadeiro e do bem, fonte de todos os direitos da nação; daí a apostasia oficial dos povos rejeitando a realeza social de Jesus Cristo, menosprezando a autoridade divina da Igreja.”

Dois pontos a serem mais destacados da análise assertiva do Pe. Roussel seriam à verdadeira Tradição católica e à emancipação das sociedades.

Com o advento do feminismo, outra criação quimérica-gnóstica do racionalismo iluminista, deu-se mais um front de Lúcifer contra a lei e o direito natural. Engana-se quem pensa que o feminismo é apenas mais um movimento esquerdista puro e simples. Não! O feminismo inicia-se como um movimento místico, torna-se liberal e descamba, por efeito, no esquerdismo. É uma luta contra a tradição, contra a família, contra a mulher, contra o homem, contra o matrimônio, contra os nascituros e contra a verdadeira liberdade. Como dito, os gnósticos não aceitam à ordem da liberdade e do ser. Em algumas seitas antigas, como os cátaros, era de costume assassinar mulheres grávidas pois, para aqueles hereges, o nascituro representava mais um Éon da divindade preso num corpo maligno. Eliminar às crianças era mister para impedir o mal metafísico de se proliferar no mundo demiúrgico. Qualquer semelhança com o modus operandi do liberalismo feminista não é mera coincidência!

Liberalismo do Estado.

Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais conseqüentes consigo mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa conseqüência da separação da Igreja e do Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se compreende. É necessário, — a própria natureza o proclama — é necessário que a sociedade dê aos cidadãos os meios e as facilidades de passarem a sua vida segundo a honestidade, isto é, segundo as leis de Deus, pois que Deus é o princípio de toda a honestidade e de toda a justiça. Repugnaria, pois, absolutamente que o Estado pudesse desinteressar-se destas mesmas leis ou ir mesmo contra elas, fosse no que fosse.

Demais, aqueles que governam os povos devem certamente procurar à causa pública, pela sabedoria das suas leis, não somente as vantagens e os bens exteriores, mas também e principalmente os bens da alma. Ora, para conseguir estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do que essas leis de que Deus é o autor; e, por isso, aqueles que não querem, no governo dos Estados, ter em conta alguma as leis divinas, desviam realmente o poder político da sua instituição, e da ordem prescrita pela natureza.

Mas há uma observação ainda mais importante e que Nós mesmos temos recordado mais de uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado, conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem contudo encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais duma vez, sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas, e estabelecer o acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida.”

O atual estado de coisas, caótico e confuso, público e notório, dá-se por efeitos do pensamento laicista e indiferentista, frutos maiores da Revolução Francesa e de sua dialética: girondinos e jacobinos. Se observarmos às direitas e às esquerdas pós-revolução, mesmo em suas diferenças contingentes, ambas marcham para o mesmíssimo lugar: o anti-catolicismo sistemático, a negação de dogmas e posterior romantização do subjetivismo religioso. Pois ambas as criações resultam do maçonismo que inicia-se na Inglaterra e espalha-se como um vírus em toda Europa e Américas. Alguns conservadores argumentam que não podemos juntar a Maçonaria num único balaio pois existem diferenças em suas seitas e modos de ação. Contudo, apesar dessa proposição ser de alguma forma verossímil, não podemos desconsiderar que, no pano de fundo, há um liberalismo fundamental.

Diz-nos o Prof. Sidney Silveira(3):

O liberalismo, em qualquer de suas correntes – estamos falando de uma hidra multicéfala – não é propriamente uma teoria, mas o espírito engendrador de mil teorias. Um espírito de negação dos princípios da ordem do ser, que, apelando a uma maliciosa profilaxia, fecha culpavelmente os olhos para o arcabouço metafísico que impugnaria as suas teses religiosas e políticas, assim como parte das econômicas”.

E também o Prof. Daniel Scherer(4):

“O liberalismo fundamental tem desdobramentos diversos, e frequentemente antiéticos, em diferentes campos. Ele pode manifestar-se como uma defesa da autonomia do teólogo diante do Magistério da Igreja, de uma concepção anticlerical do estado ou da pretensa autonomia do mercado – compreendido como uma esfera regida por certas leis naturais – com relação à esfera política ou cultural, por exemplo.”

 Para maior percepção dessas falsas autonomias, leia-se a Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis do Sumo Pontífice São Pio X contra o Modernismo.

Por fim, ao analisar todo processo da Libido Dominandi, o autor E. Michael Jones lembra-nos muito bem que o indiferentismo em relação a toda ordem apresentada entre à vontade e à razão natural, descambam na absolutização das paixões mais baixas do homem. E acabam sistematizadas em modelos de sociedade e teorias estapafúrdias que trouxeram perdição, desilusão e engano. A libertinagem sexual é o maior exemplo que temos, também apreendido empiricamente, como uma das maiores perdição de almas dos últimos séculos.

Não é fácil virar as costas para a realidade, dizia Wolfgang Smith, com muita razão.

Para que o nosso caro leitor se situe, em todas as épocas históricas encontraremos resquícios da maior heresia que já existiu, a saber, a Gnose. Como também os outros pecados cometidos por Adão no Jardim do Éden. O orgulho de não aceitarmos que somos partícipes – e não donos em si mesmos – de uma ordem que nos transcende mas nos abarca. Que dita nossas ações e nos leva para o verdadeiro bem. Ora, é claro que somos livres, mas, como demonstrado, apenas para buscarmos o bem universal apetecível pela nossa vontade e adequado para nossa razão natural.

Fora da ordem não há liberdade possível e sequer podemos tratar esse conceito, senão que, sinceramente, trata-se de escravidão literal.

Que os ensinamentos do Sumo Sacerdote Leão XIII, assim como muitos outros que nortearam a razão de suas ovelhas, possam chegar àqueles que estudam e buscam à Verdade de coração aberto e com a docilidade própria da vida intelectual sincera.

Na pós-civilização não podemos mais falar em liberdade de modo geral, mas apenas analisando caso a caso dos sujeitos que ainda buscam estar em consonância consigo, com o próximo e com Deus, ou seja, sendo pessoas de fato.

A pós-civilização é um antro de autoengano. É a Cidade dos Homens tentando suplantar a Cidade de Deus.

É o reino do iníquo!

Que Deus tenha misericórdia de todos nós!

Daniel Ferraz.

São Carlos, 03 de Abril de 2021.

 

(1) – Carta Encíclica “Libertas Praestantissimum: Sobre a Liberdade Humana” do Sumo Pontífice Leão XIII;

(2) – Liberalismo e Catolicismo, Pe. Augustin Roussel

(3) – A Alma do Liberalismo, Sidney Silveira

(4) – A Raiz Antitomista da Modernidade Filosófica, Daniel C. Scherer

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