Publicado no Mídia Sem Máscara em 28/06/2008
“… a mais comum e durável causa de divisões da sociedade tem sido a distribuição variável e desigual da propriedade. Os que possuem bens e os que não os possuem sempre tiveram interesses divergentes na sociedade
É muito importante, numa república, não apenas defender a sociedade contra a opressão de seus legisladores, mas também proteger uma parte da sociedade contra a injustiça da outra parte” —JAMES MADISON Jr.
As duas frases do “Pai da Constituição Americana” e autor das dez primeiras emendas (Bill of Rights) indicam que os framers da mais duradoura Constituição Democrática e Republicana de todos os tempos não desconheciam a ameaça permanente do confronto entre os que têm e os que não têm. Pelo contrário, e nisto reside a sabedoria que norteou suas decisões, tais divisões foram claramente admitidas. É ainda Madison quem diz, nas discussões que se seguiram à proclamação e durante o processo de referendo pelas colônias, que “… as causas das divisões não podem ser removidas, e para o alívio (das tensões) devem ser procurados os meios de controlar seus efeitos” (Federalist Papers #10, as ênfases são de Madison). É uma demonstração cabal não apenas de lucidez, mas de perfeita sintonia com a tradição judaico-cristã: o Deus de Israel é o Deus de todo o povo eleito, sem distinções; e Jesus Cristo pregou a solidariedade entre todos os homens estabelecendo, através do amai-vos uns aos outros as bases da solidariedade cristã.
Por outro lado, aqueles que negam os fundamentos religiosos e morais da nossa civilização abandonaram o conceito de solidariedade e a necessidade de “controlar os efeitos” da desigualdade entre os homens e o substituíram, uns, pela crença fervorosa e onipotente na “mão invisível” do mercado como único regulador necessário – são os que se autodenominam libertários; outros perceberam como poderiam, ao invés de controlar, explorar tais desigualdades em proveito próprio, para aumento do seu poder – os comunistas. Esclareço: não uso o termo “socialista” porque acredito que social-democracia, liberal-socialismo ou social-liberalismo são contradições em termos, usados para mascarar as verdadeiras intenções totalitárias que em nada se diferenciam das dos primeiros.
À tese de Marx de que a “história dos homens é a história das lutas de classes”, Lenin completou com a recomendação de “acirrar todas as contradições, e aonde não existirem, criá-las”. Como já demonstrei anteriormente, o comunismo é uma máquina ininterrupta de produção de mentiras e a maior de todas é a de que através de engenharia social – comandada obviamente por eles mesmos – é possível chegar a uma sociedade onde as diferenças entre os homens serão abolidas e a paz eterna reinará. Esta falsa utopia serve na medida para conquistar idiotas úteis para a luta pela hegemonia e, em última análise, pelo poder total e irrestrito dos doutrinadores, uma vez tornados hegemônicos. Estes sabem que não existe utopia alguma, é puro engodo.
É lamentável ver como esta mentira viceja dentro das próprias comunidades judaicas e igrejas cristãs – a Demonologia da “Libertação” é o exemplo maior que prometendo na Terra o que Cristo prometeu para os justos na vida eterna. De nada adiantou Jesus Cristo ter dito que “meu Reino não é deste mundo” – pilar da Doutrina Social da Igreja – pois os demonólogos da “libertação” afirmam que seu reino poderá ser implantado aqui e agora, aderindo às teses marxistas-leninistas e mandando às favas aquela Doutrina.
Libertários e comunistas parecem ser opostos, mas são na verdade complementares – e ambos se opõem, embora por motivos diversos, à democracia liberal. A onipotência do “deus” mercado acirra tanto as contradições entre as classes quanto a práxis marxista. Como os seres humanos são desiguais, o mercado tende a acirrar as diferenças entre os que têm – e querem manter o monopólio da posse – e os que não têm, e o resultado inevitável é o mesmo da práxis marxista. Eliminando a solidariedade acirram uma guerra de morte entre os segmentos da sociedade, criando um terreno fértil para a implantação das idéias comunistas. Diga a um rapaz pobre nascido numa favela que ele pode um dia, por esforço próprio e confiando no “mercado”, chegar à mesma situação de seu patrão, em cuja mansão trabalha em troca de salário de fome, e estará criando as condições para torná-lo um comunista – ou petista – militante. Um libertário é um equivocado, cujos equívocos abrem caminho para as mentiras marxistas parecerem promessas maravilhosas. Lula, com sua sagacidade e hipocrisia – e talvez numa ameaça velada – afirmou (O Globo, 25/06/08): “Vamos deixar as ideologias de lado. Ninguém se importa se a China tem partido único, imprensa controlada, o que importa é que estão ganhando muito dinheiro”. Já ouvi este argumento de grandes empresários e intelectuais libertários: a abertura da economia chinesa para o mercado mundial e a política de “um país, dois sistemas” levará inevitavelmente à abertura política. Da parte dos empresários não passa de uma falácia para encherem as burras – suas e dos déspotas chineses corruptos – à custa da mão-de-obra irrisória do trabalho escravo; da parte dos intelectuais não passa de uma burrice, se bem ou mal intencionada, não sei.
Quando o rapaz do exemplo acima, se desiludir – e se não for burro será logo, logo – se tornará presa fácil para os doutrinadores comunistas e o próximo a empunhar a bandeira vermelha.
A expressão cabal do jus naturalismo – a série de pressupostos gerais que antecede o direito positivo – é o preâmbulo da Declaração de Independência americana: “Acreditamos que estas verdade são evidentes por si mesmas, que todos os homens nascem iguais e são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis; entre eles, a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. A base do uso alternativo do direito é fruto direto da concepção marxista da luta de classes: a noção do justo natural é uma invenção da classe dominante para, através da justiça, manter a opressão sobre a classe proletária e é preciso solapar cada vez mais as bases de sustentação da ordem e da justiça, e refutar o jus naturalismo clássico e suas verdades metafísicas por não atenderem mais ao estágio atual do desenvolvimento social. Seguindo ainda outra máxima de Lenin – “acuse o outro de fazer o que você faz ou pretende fazer” – usou-se o “conhecimento” do homem comum – que não é totalmente errado – de que “a justiça é para os ricos que se livram fácil enquanto os pobres não têm vez”. Conseqüentemente, o uso alternativo do direito leva em conta o pertencer a pessoa à classe burguesa (opressora) ou à classe proletária (oprimida) para ditar a sentença. O que antes era uma deficiência da aplicação da lei ou mesmo uma malversação da lei devida à corrupção de alguns juízes – nunca um erro essencial do conceito de justo – transforma-se em axioma central de uma nova construção jurídica. Sua base ideológica é que “toda desigualdade (incluindo os planos metafísico e religioso) é uma injustiça, um mal em si mesma; toda autoridade um perigo e a liberdade absoluta um bem supremo”. A base econômica está no que Ubiratan Iorio [1] denomina “os dois ‘teoremas do atraso’: (1º) ‘João é pobre porque Pedro é rico’ e (2º) ‘O somatório das pobrezas é igual à riqueza’”.
Sei que me atrevo a trilhar caminhos diversos daqueles aos quais estou acostumado por força das minhas funções, mas tive um guia excelente para ordenar minhas observações anteriores sobre o tema [2] e minha experiência anterior com o alternativismo em outras áreas do conhecimento humano. Tanto no direito quanto nestas outras áreas “a teoria alternativa não surgiu espontaneamente, como fruto de movimentos populares acoroçoados pela opressão da classe burguesa (nem) seus objetivos são incertos. Suas idéias propulsoras têm sido engendradas (…) por juristas sagacíssimos (o ‘Juiz Cidadão’), que delas se têm servido como meio para realizar (…) o processo revolucionário alternativo. Estes juristas (…) atuam com grave astúcia retórica (…) investindo contra uma sociedade indefesa e carente de (outros) juristas preparados para o necessário confronto”.
Assim também foi em outras áreas das quais posso falar com conhecimento de causa: na medicina, na psiquiatria e na psicanálise. De início de forma titubeante e depois com enorme arrogância foram aparecendo, como fruto da New Age e das revoltas de 68 contra a ordem estabelecida, as medicinas alternativas, a anti-psiquiatria e o movimento antinosocomial, e a psicanálise alternativa. Na medicina surgiram as terapias orientais baseadas em idéias já abandonadas pelos povos que as criaram, como os chineses que hoje preferem montar modernos hospitais com o que há de melhor na ciência médica ocidental. A anti-psiquiatria, fruto direto das idéias marxistas: os pais são os burgueses que oprimem os filhos proletários (o filme Pai Patrão é a expressão artística desta fase). O movimento antinosocomial, baseado na crença de que a loucura é apenas uma invenção da classe dominante para oprimir os “diferentes e inconformados”. A psicanálise, que impõe enormes esforços e sacrifícios materiais e psicológicos – entre os quais o principal é o reconhecimento da responsabilidade pessoal pela própria vida, incluindo sucessos e fracassos – foi sendo substituída por formas alternativas facilitadoras e suavizadas, baseadas na exaltação das “transgressões” às teorias e técnicas tradicionais, onde a culpa é sempre dos pais e os filhos são vítimas. Simultaneamente, preconiza-se que o profissional não deve manter a neutralidade, mas sim interferir diretamente nas decisões do paciente (o filme Gente como a Gente é o símbolo). Infelizmente, tais idéias vêm sendo oficializadas e estimuladas pelas próprias Sociedades e Associações psicanalíticas.
Poderia falar ainda nas outras áreas em que o alternativismo tem penetrado profundamente, como as morais alternativas, as dietas alternativas, sexualidades e famílias alternativas – enfim, todas as áreas em que imperavam as tradições da civilização ocidental.
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Com sua impressionante argúcia, capacidade de síntese e simplificação – só comparável à de Adolf Hitler, inclusive pela falta de conhecimento adequado dos temas – Lula disse numa entrevista à Folha de SP em 26/05/1994: “Coisa justa vale mais que lei…. Entre a lei e a coisa justa e legítima, eu sempre disse que o justo e o legítimo é muito mais importante” (sic). Tal afirmação por parte do Presidente da República que jurou proteger e respeitar a Constituição e as Leis do País seria motivo de pedido de impeachment imediato, não fora o estado de total anestesia da população, que há anos vem sendo martelada incessantemente por slogans revolucionários de “justiça social” e “direitos humanos” ao ponto de ninguém mais se escandalizar com o que, noutros países mais civilizados, sequer seria admitido. É o que Gramsci pleiteava como modificação do senso comum. O justo a que se referiu Lula não é a desejável preponderância do direito natural sobre o positivo. É antes a imposição do “socialmente justo” sobre os outros dois. O socialmente justo se impõe para modificar o próprio sentido do justo e do equilíbrio entre o natural e o positivo, “com vistas a eliminá-lo e a implantar uma juridicidade igualitária”. Como observa Olavo de Carvalho, ao se referir a outra origem do alternativismo, o desconstrucionismo, [3] “Juízes, promotores e advogados são hoje formados sob a crença dominante de que as leis não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores politicamente interessados. (…) uma ‘comunidade interpretativa’ (pode) impor a sua leitura dos textos legais por meio da gritaria, da chantagem, da intimidação”.
Em setembro de 2005 tive a desagradável oportunidade de debater com um “Juíz-Cidadão” [4] no Seminário Drogas – Questões e Práticas Atuais, organizado pelo Serviço de Apoio aos Psicólogos da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Na primeira mesa de debates – Drogas: Perspectiva Histórica e Atual – fiquei pasmo ao ouvir o Juiz que me precedia afirmar ser o primeiro Magistrado que não mais expedia sentença de prisão para narcotraficantes, mas os condenava a “trabalhos sociais”. Minha perplexidade era porque este Magistrado estava simplesmente se recusando a aplicar a Lei, “impondo a sua leitura baseada em setores politicamente interessados”, no caso, os grupos de pressão pela legalização das drogas. Como não tenho sangue de barata, na minha vez contestei esta afirmação na base de que, data vênia, um Juiz deve cumprir a Lei, ressaltei ainda que tais sujeitos são assassinos extremamente perigosos e que condená-los a trabalhos sociais era o mesmo que lhes dar o aval para distribuir a droga, agora legalmente. O Juiz ficou visivelmente embaraçado, mas os protestos da platéia lhe deram novas forças. Escusado dizer que os aplausos no final da minha exposição foram apenas protocolares, enquanto o tal Juiz foi ovacionado!
É assim que se constrói o Estado Democrático de Direito: com gente que precisa de aplausos, pois são doutrinária, técnica e teoricamente fracos e despreparados. Não compareci à sessão da tarde porque tinha outros compromissos, mas soube posteriormente que quem dominou o restante do Seminário foi um sujeito de uma ONG que defende a Redução de Danos (ver Drogas: repressão não resolve? e Drogas: liberdade de escolha ou compulsão destrutiva?) visivelmente drogado! É a raposa cuidando do galinheiro!
Notas
1. As ameaças à Liberdade no Brasil, Palestra proferida em 13/06/08, no Rio de Janeiro no Seminário A Realidade Política Brasileira: uma Proposta Liberal-Democrática para a Reversão da Crise, organizado pelo Farol da Democracia Representativa.
2. A Verdadeira Face do Direito Alternativo, do Doutor Gilberto Callado de Oliveira, ed. Juruá, Curitiba, PR, 4ª Edição revista e ampliada com estudo da influência do gramcismo no direito alternativo. Todas as citações em itálico sem ressalvas, são deste livro.
3. Enquanto a Zé-Lite Dorme, Diário do Comércio, SP, 04/12/06. 4. O conceito é de Marco Aurélio Dutra Aydos, citado no livro do Dr. Callado.