Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade […] em saber de que fontes esse estranho ser, o poeta, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes — Sigmund Freud, O poeta e o fantasiar (1908)
Crianças naturalmente brincam de fantasiar, de criar mundos imaginários, heróis, monstros, situações etc. A renúncia à brincadeira ou ao jogo do fantasiar é aquilo que distingue o adulto poeta de um adulto não poeta.
Sigmund Freud — o criador da psicanálise e a personalidade mais influente da história no campo da psicologia —, em seu texto O Poeta e o Fantasiar (1908), refere-se aos “poetas” de modo mais amplo, referindo-se a escritores (criadores), romancistas, novelistas, contistas, incluindo aqueles que fazem versos. E é esse o sentido que aqui emprego ao mesmo termo em nossa breve reflexão.
Em suma, todos os homens são poetas em potencial, mas se estabelecem como tais apenas aqueles que não abandonam na idade adulta o hábito de construção de realidades psíquicas organizadoras do mundo, através do fantasiar.
Ao crescerem, muitas pessoas passam a ter vergonha de fantasiar, mas o artista dá ordem às fantasias, fazendo arte. É por meio da obra poética que podemos nos conectar com nossas fantasias sem censura ou vergonha.
* * *
Fantasia sem ordem é doença: algumas patologias psíquicas também têm conexão com o fantasiar. O excessivo fantasiar é responsável pelo desenvolvimento de neuroses e psicoses, criam o ambiente psíquico do sofrimento.
* * *
Otto Maria Carpeaux já refletia: “o poeta com a vida mais desordenada chega a ser o construtor de supremas ordens verbais; superior à atitude é a intenção, e a intenção da poesia é: impor uma ordem ao caos das palavras desordenadas” — in Origens e Fins: Poesia e Ideologia, 1943
Para Freud, só fantasia quem é infeliz ou insatisfeito, do contrário, não necessitaria fantasiar. Acho a afirmação um pouco simplista e apressada, para dizer o mínimo, visto a complexidade da natureza humana e poética.
Shelley, importante poeta inglês, disse: “A poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos espíritos mais felizes e melhores” — in Uma Defesa da Poesia, 1821.
Assim como as crianças fantasiam, sem necessariamente estarem tristes ou insatisfeitas, fazem o mesmo os poetas, sendo eles tristes ou felizes. “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta” — Cecília Meireles in Motivo, 1939
Logo abaixo, trago um poema de Manuel de Barros, que aborda bem a relação menino-poeta-fantasiar e do fazer artístico.
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Referências
O poeta e o fantasiar (1908), de Sigmund Freud
Poesia e Ideologia (1943), de Otto Maria Carpeaux
Uma Defesa da Poesia (1821), de Percy B. Shelley
Motivo (1939), de Cecília Meireles
O menino que carregava água na peneira (1999), de Manuel de Barros
Por hoje é isso. Quer receber mais esse tipo de conteúdo, inscreva-se gratuitamente no Boletim Parnaso, clicando aqui!