1. CHANG

Chang acordou às 5:30 da manhã naquele dia, na cidade do Novo Rio de Janeiro, exatamente no momento em que as luzes do alvorecer começaram a aparecer. Como ninguém podia ter cortinas nas janelas das casas, para não dificultar o trabalho das autoridades quando precisassem salvar algum cidadão e mantê-lo em segurança, Chang não conseguia mais dormir quando os primeiros raios de sol irrompiam no horizonte.

Após espreguiçar-se na cama e se lavar no banheiro, ligou a televisão para assistir ao pronunciamento do Líder Democrático Nacional, que começava sempre às 6 da manhã em ponto. Chang sentia necessidade de ficar atualizado sobre as ações que o Governo havia feito para melhoria da vida dos cidadãos, e por isso não perdia nenhum desses pronunciamentos diários matutinos.

O Líder estava no seu segundo mandato consecutivo, de 8 anos cada, e sua popularidade beirava as alturas: era uma figura adorada, com sua imagem estampada em todos os locais públicos, com bustos, painéis, quadros e retratos.

Chang morava no bairro de Nova Copacabana. Tinha orgulho de morar naquela localidade. Sentia-se importante, e o melhor era que ser morador do bairro conferia a ele status social que lhe garantia participar do trabalho com turismo, quando abrisse a estação, e ele poderia obter ganhos extras, além do salário percebido na agência de turismo.

Depois da Grande Reforma, o programa de reconstrução e replanejamento de todo o país financiado pelo Fundo Mundial Global, a cidade do Rio de Janeiro passou a figurar como um dos destinos turísticos mais procurados no mundo, e o seu bairro, o local que concentrava praticamente todos os turistas.

Os mais velhos diziam para Chang que o Rio de Janeiro sempre foi assim: a cidade sempre foi um polo turístico desde sempre, desde a sua existência, e bem antes de tudo acontecer, diziam eles.

– Meu jovem, foi o fechamento momentâneo das viagens internacionais e a proibição de locomoção dentro do país, que perdurou por anos a fio, no período anterior à Grande Reforma, que provoca isso na sua cabeça, de você achar que só agora existe turismo. – repetiam eles todo o tempo.

Chang ouvia isso e ficava aborrecido. Ele não tinha muita paciência com essas pessoas de mais idade, nascidas antes que aconteceu tudo, que eram da geração anterior. Elas ficavam repetindo coisas sem sentido, quase como um mantra: “no meu tempo era assim”, “no meu tempo era assado”, “isso não existia antes”.

O fato é que tudo o que eles diziam pouco importava para ele, pois não mudava em nada a sua realidade e a forma de ver as coisas. A geração dos jovens, da qual Chang fazia parte, aprendeu a ser pragmática e objetiva. Chang ouvia o que dizia uma pessoa mais velha dessa (que já tinha lá os seus 60 ou 70 anos) e pensava: “esse negócio de ideologia é que atrapalhou tudo, na época desse tipo. Ele não enxerga isso; mas, paciência. De nada importa o que eram as coisas na época dele. O que importa é como será o futuro.”

A verdade é que aproximava-se o período de abertura do turismo na cidade, a durar 3 meses no ano. Os turistas chegariam, e Chang estava animado porque poderia faturar bastante, como fazia todos os últimos anos.

Não deixaria que nada o fizesse perder o foco e a determinação de poder trabalhar na estação. Do alto dos seus 20 e poucos anos, tinha força e disposição o suficiente para continuar trabalhando duro na agência de turismo, servindo de guia turístico para os visitantes. “As gorjetas são o melhor”, pensava ele. Facilitava bastante para os turistas ele ser fluente em vários idiomas.

Uma coisa que o jovem não conseguia entender era porque as pessoas antes da Grande Reforma saíram em protestos tão violentos, e perturbaram tanto a ordem e a paz social, apenas para desestabilizar as coisas e impedir o progresso e o avanço da sociedade.

Chang sempre aprendeu, desde que entrou no colégio no Primeiro Ensino, e mesmo depois, até terminar o curso universitário, que essas pessoas não queriam viver em um regime democrático; o que elas planejavam era manter o Brasil isolado do resto do mundo, para que o país não se modernizasse e não se abrisse ao comércio mundial; elas queriam instaurar um regime totalitário e suprimir as liberdades e a democracia.

“Ainda bem que os vândalos foram vencidos, e o Brasil pôde receber o enorme aporte de dinheiro que o Fundo Mundial Global se dispôs a fazer, para reconstrução de tudo e para executar o maior planejamento viário urbano já visto em todo o planeta”, pensava Chang, aliviado.

Assim é que o jovem achava mais do que acertada a decisão do Governo Federal de acatar a sugestão dos líderes dos países que compunham o Fundo Mundial Global para trocar o nome do país, passando de República Federativa do Brasil para República Democrática do Novo Brasil. Ele sabia o poder que as palavras tinham: isso – a troca de nome – deixava claro que se tratava de um novo país, e que aquele antigo Brasil já não existia mais, inaugurando um novo marco temporal.

Definitivamente, a melhor coisa que, na cabeça de Chang, havia acontecido para o mundo, e que ele leu nos livros de História Moderna lançados após a Grande Reforma, tinha sido a criação desse bloco de países onde estava o dinheiro do Fundo Mundial que financiou a modernização e reconstrução de tudo, chamado Comunidade Mundial Global, ou simplesmente CoMunGlo.

Agora o Novo Brasil fazia parte, finalmente, da elite econômica e política mundial, e Chang sentia um enorme orgulho de ver para onde o seu país progrediu. Graças ao trabalho do Líder Democrático Nacional, o país estava pronto para executar o Enorme Pulo à Frente, um programa idealizado pelo Governo que objetivava levar a Nação Brasileira a um patamar de desenvolvimento nunca visto antes.

A única coisa que Chang não achava justo, na questão do seu trabalho com o turismo, era que de todos os turistas que aportariam na cidade do Novo Rio de Janeiro ele pudesse lidar apenas com os que vinham de uma certa região do planeta, previamente estipulada pelo Governo e pelas Agências de Controle de Turismo.

Mas, no fundo, isso também não mudava em nada a vida de Chang. Ele sabia que essa restrição era apenas um formalismo e uma maneira de manter a ordem, evitando concorrência entre aqueles que trabalhariam na estação, considerando que existia uma fiscalização muito rígida para que nenhuma pessoa lucrasse mais do que outra. Independentemente do número de turistas atendidos, todos teriam garantido a mesma margem de lucro.

“O Governo é sábio”, ele pensava. “Deixa tudo feito direitinho para manter a ordem e evitar que os invejosos e ciumentos tenham motivo para arrumar confusão”. Chang sabia que era apenas não se meter em confusão e não questionar as normas das autoridades, que no final ele sempre se daria bem. Não teria a sua licença de guia turístico revogada, e o lucro com os turistas era garantido.

Ele já sabia quanto ganharia antes mesmo de começar a temporada, e isso tornava tudo muito mais fácil. “Veja que beleza isso! Dá vontade de perguntar para um desses lunáticos mais velhos se na época deles era assim. Queria que eles dissessem se já tinham visto algo dessa natureza antes, de o Governo garantir que quando o cidadão entre em um trabalho saiba exatamente quanto vai ganhar, independentemente do faturamento global do negócio, equilibrando tudo e tornando todos os trabalhadores iguais em condições.”

Em suma, Chang tinha para si que a melhor coisa a fazer era pensar no futuro, e esquecer essas pessoas que viviam presas a um passado, ligadas a um país que não existia mais há tempo. Ele vivia com um enorme otimismo, e confiava em si mesmo e nas oportunidades que o Governo oferecia, dentro das condições por ele previamente estipuladas, e nos termos da fiscalização dos órgãos de controle.

Esse era o seu estado de espírito naquele dia rotineiro, e esses eram seus pensamentos.

~ ~ ~

  1. NOVA COPACABANA

Ao caminho da agência de turismo, localizada na orla do bairro de Nova Copacabana, Chang fica olhando a praia pela grade eletrificada que a circunda, rodeada por dezenas de câmeras de vigilância, e presta atenção em tudo: aquela areia clarinha, com aquela água límpida, na qual se podia ver até golfinhos nadando… Ele esperava ansioso pela abertura da praia para os moradores do bairro, durante a estação da temporada de turismo.

“Claro que foi muito melhor o Governo ter conseguido preservar a beleza da praia e da orla inteira da cidade, ao tomar a resolução de fechá-la definitivamente, acatando a sugestão da CoMunGlo. Era necessário preservar a natureza. Claro que isso que era o mais importante”, refletia Chang. Mas, por um pequeno lapso de tempo, ele pensou consigo mesmo: “como seria se a gente pudesse entrar na praia direto, livremente, sem restrições, todos os dias? E se a praia não abrisse apenas na temporada de turismo? Isso não seria melhor?”

Com uma pitada de culpa pelo pensamento que achava um pouco antipatriótico, Chang novamente recobrou a normalidade e largou as divagações de antes. Disse para si mesmo: “O bom de eu ter conseguido uma vaga para morador do bairro é isso: ter direito a frequentar a praia, que nunca fica entupida de gente como na data de antes da Grande Reforma, quando as multidões de banhistas provocavam o caos e impacto ambiental.”

O número de moradores em Nova Copacabana passava por um rígido controle das autoridades. Muitos prédios foram demolidos na Grande Reforma, reconstruindo-se outros em seu lugar de acordo com o padrão arquitetônico dos novos tempos; as favelas foram totalmente erradicadas; a vegetação nativa foi toda ela reflorestada e replantada; as ruas foram remodeladas e ampliadas.

Ninguém sabe o que aconteceu com a população que vivia lá, que dizem que já havia ultrapassado os 200.000 naquela época. Ela simplesmente sumiu. O itálico aqui é para destacar o verbo sumir, porque a população de fato sumiu mesmo, quase como que abduzida por extraterrestres, ou então arrebatada pelo Espírito Santo, para quem acreditava nessas coisas de Bíblia e religião ainda, como aquelas pessoas mais velhas.

Mas para Chang pouco importava isso. O que importava é o futuro, e não o passado.

Hoje, Nova Copacabana, com sua orla intocada, sem qualquer presença humana, tem aproximadamente uns 30.000 moradores, espalhados em apartamentos amplos, com no máximo 2 ou 3 pessoas (os pais e o filho único) em cada um. Aliás, na opinião de Chang o controle populacional instituído pelo Governo tinha sido uma das melhores coisas já feitas.

Agora, o Novo Brasil igualava-se aos demais países que compunham o bloco da CoMunGlo na política de filho único, que dava uma qualidade de vida nunca tida antes à população do país. Não havia mais aquele monte de criança espalhada pelas ruas, como antes.

Não eram poucos os casais que aceitavam o bônus fiscal concedido pelo Governo para que optassem por não ter filhos, e pudessem, assim, aproveitar melhor a vida sem as responsabilidades da paternidade.

Chang conseguiu a vaga para ser morador de Nova Copacabana quando namorou a filha de uma pessoa ligada ao Governo. Ela lhe disse que se ele arrumasse a quantia de NR$ 50.000,00 (cinquenta mil novos-reais), em dinheiro vivo (em espécie), seu pai conseguiria colocá-lo em um apartamento próximo à orla.

Chang fez as contas: 50.000 era equivalente a uns 3 anos de aluguel do apartamento onde morava, situado próximo ao Centro da Cidade. Era bastante dinheiro. Pensou: “quanto será o aluguel lá em Nova Copacabana? E se o apartamento for requisitado pelo Governo e eu tiver que sair? Já ouvi casos de pessoas que tiveram que sair de um dia para o outro, sem que tivessem tempo de organizar a mudança.”

Mas a vida é feita de riscos, e Chang sequer titubeou: deu os NR$ 50.000,00 (cinquenta mil novos-reais) à namorada, para que ela os repassasse ao pai, e esse último cumpriu o combinado, colocando o jovem para morar no bairro com o maior status social, que lhe concedia, imediatamente, o privilégio de poder trabalhar na estação de turismo, podendo ainda frequentar a praia.

No final, o namoro não deu certo. Na verdade, assim que Chang conseguiu a vaga no apartamento de Nova Copacabana sua namorada terminou com ele, dizendo-lhe que, além de estar um pouco desinteressada com a relação, seu pai havia recomendado à filha que passasse a se relacionar apenas com homens ligados ao Governo.

– Preciso pensar no meu futuro e me livrar dessa relação. Espero que não fique chateado. Mas gostei de você, e a gente se divertiu bastante. Boa sorte. – ela lhe disse na ocasião.

Chang não ficou triste com o término do namoro, feito pela namorada assim tão abruptamente. Na verdade, o jovem era grato por tê-la conhecido, porque graças a ela conseguiu conquistar um apartamento no melhor bairro da cidade: “tudo na vida é feito de interesses mesmo; o que importa é realmente o futuro”, dizia ele.

~ ~ ~

  1. A AGÊNCIA DE TURISMO

Chang chega à agência exatamente às 8 da manhã, hora em que começa o expediente regular, que vai até às 6 da tarde. A agência chama-se Turismo Global do Novo Brasil, e é a maior existente na cidade do Novo Rio de Janeiro. O rapaz sente orgulho de trabalhar naquele local. É grato ao Governo, por ter arrumado uma vaga para ele lá.

Apresenta-se ao seu supervisor, assina o relatório que esse último havia feito sobre sua conduta na empresa, que seria enviado para as autoridades, e segue para sua mesa de trabalho, no segundo andar.

A função que Chang desempenha é de extrema importância. Ele é responsável pela inspeção nos estabelecimentos hoteleiros situados na orla do bairro de Nova Copacabana e ainda nos do seu entorno, como Neo-Ipanema e Leblon Novo. O jovem conferia se os hotéis estão de acordo com as rígidas exigências das autoridades para poderem receber os turistas durante a estação.

O acesso a esses bairros vizinhos (que, diga-se, também passaram pela remodelação e replanejamento da Grande Reforma) mesmo fora da estação de turismo é liberado para Chang, pois ele tem a licença de guia turístico, além do status social de morador de Nova Copacabana.

O jovem pega a planilha com a rota que deve seguir naquela manhã, mas primeiro, antes de sair, resolve pegar um café na copa, que fica no andar térreo da agência. Nesse momento ele se depara com uma moça, na faixa dos 20 anos, que nunca tinha visto por lá.

– Bom dia, mocinha bonita. – diz Chang.

– Oh, bom dia – diz a jovem, ruborizada.

– Meu nome é Chang. Significa “livre” em chinês. Sou responsável pela inspeção nos hotéis. Qual o seu nome e função?

– Hope. Significa “esperança” em inglês. Sou nova aqui, hoje é meu primeiro dia. Não sei bem qual será minha função específica. Mandaram-me aguardar nesse local até que me chamassem. Acho que trabalharei por aqui mesmo, abastecendo os suprimentos da copa e servindo as pessoas.

A lei que instituiu a obrigatoriedade de escolha de nomes próprios estrangeiros no Novo Brasil foi uma das melhores coisas para as pessoas, pensava Chang, pois as instigava a aprenderem outro idioma além da Língua Portuguesa. Ele sabia que hope significava esperança. Ele era poliglota. Era fluente em uns 7 ou 8 idiomas. Sentia um enorme orgulho disso. Mas não quis dizer isso para a menina, para não constrangê-la.

Emendou a conversa:

– Tenho direito ao passe para os outros bairros, pois possuo status social de morador. Já estou com minha rota diária traçada para o dia. Você quer ir comigo à inspeção nos hotéis? Vou ensinar tudo a você sobre como supervisionar as instalações hoteleiras – e continuou Chang, cheio de confiança: – Adoraria conhecê-la melhor. Podemos almoçar juntos em um restaurante bem legal que conheço, aqui na orla mesmo, o que acha?

Hope corou, e desviou o olhar imediatamente. Sentiu-se invadida e afrontada pela arrogância do jovem rapaz que estava à sua frente. “Como pode ele falar assim comigo, tão diretamente?”

Respondeu rápido:

– Creio que não poderei. Preciso esperar minha supervisora, que me mandou aguardar aqui. Talvez um outro dia. Mas muito obrigada pelo convite. Fico encantada pelo seu interesse.

Chang ficou tão empolgado para chamar aquela menina para sair que nem se tocou que era de fato necessário que a supervisora dela aprovasse a sua saída com ele. “Funcionários homens sob a supervisão de homens, e funcionários mulheres sob a supervisão de mulheres” – eis uma das regras que ele momentaneamente havia esquecido.

– Tudo bem, moça linda, mas não esquecerei de você. Quando eu chegar vou acompanhá-la até sua casa então, e não adianta dizer que não precisa ou algo parecido. Não aceitarei “não” como resposta. Se você se liberar antes de mim me espere por aqui mesmo. – e terminou, usando um jogo de palavras: – Tenho esperança de que faremos um ótimo percurso até sua residência. Quero retribuir o que você fez por mim, ao alegrar meu dia com sua bonita presença aqui na copa.

Chang se afastou após piscar o olho para Hope.

O rubor da menina só aumentou. “Mas como esse daí é cara-de-pau! Que petulância. De onde esse carinha saiu? E agora? Será que ele percebeu meu mal-estar? Será que se eu for embora sem esperá-lo terei problemas para ser efetivada aqui?”, pensava a jovem.

A supervisora feminina chegou, e foi conversar com Hope.

Ao caminho dos hotéis que deveria inspecionar no dia, Chang pensava na garota que tinha acabado de ver lá na agência. “Como é bonita! Tomara que eles fiquem com ela. E ela que me espere, porque à tardinha já a acompanho até sua casa e assim a conheço melhor.”

Chegou ao primeiro hotel da sua rota, o Palácio de Nova Copacabana. Era o hotel mais conhecido do Novo Rio de Janeiro. Ele tinha ido à falência há muitos anos, bem antes da Grande Reforma acontecer. Mas o Fundo Mundial, controlado pela CoMunGlo, injetou dinheiro em uma empresa brasileira, para que adquirisse o controle do hotel e saneasse todas as suas dívidas. Essa empresa fez, então, a reestruturação do antigo hotel, mudando apenas o seu nome, mas mantendo a mesma fachada de antes.

Chang, após minuciosa inspeção, aprovou facilmente as instalações do hotel, que tinha sabidamente o conhecido padrão de excelência, e servia de modelo e parâmetro a todos os demais estabelecimentos que possuíam a licença para operar durante a temporada de turismo.

Todos os cômodos do hotel, inclusive as áreas externas, estavam com câmeras de filmagem de último modelo instaladas, ligadas à central de monitoramento do Governo; todas as cortinas haviam sido removidas, para que nenhum hóspede ficasse sem poder ser visto do lado de fora; e o hotel estava mais do que abastecido de produtos, todos de primeira linha. Enfim, tudo na mais perfeita ordem, como esperado.

Chang pega a assinatura do gerente do hotel no relatório e segue na sua rota, visitando outros hotéis espalhados pela orla do bairro e ainda nos bairros vizinhos, repetindo o mesmo procedimento até o final do dia.

Nenhum hotel foi reprovado. Estavam todos de acordo com os critérios de controle estipulados pelo Governo para poderem operar, especialmente durante a estação de turismo, quando aumentaria consideravelmente o número de hóspedes.

Chang retorna à agência de turismo. Entrega o relatório nas mãos do seu supervisor, devidamente assinado por ele e pelos gerentes de todos os hotéis, com a identificação minuciosa de cada um deles, e sai em direção à copa, para encontrar Hope, cheio de determinação e confiança.

  1. HOPE

Já eram quase 6 da tarde daquele primeiro dia no seu novo trabalho, e Hope começava a se sentir nervosa e desconfortável. Não parava de pensar naquele sujeitinho petulante que a abordou de manhã cedo na copa.

“Por onde ele andará?”, pensava ela.

O tal Chang era de fato um abusado! Ela nunca tinha visto alguém daquele jeito, tão cheio de si que parecia até que não tinha noção das coisas.

Mas no fundo, bem no fundo, ultrapassado o incômodo inicial provocando por Chang, ao refletir sobre o episódio Hope percebeu que o rapaz pareceu divertido e simpático. Isso ela não podia negar.

Lembrou-se da maneira pela qual ele a abordou: “Bom dia, mocinha bonita…”

“Onde já se viu falar assim comigo, sem nem me conhecer?”, pensou.

Exatamente às 6 horas, no final do expediente, Chang apareceu novamente na copa da agência. Disse, com aquele jeito que para Hope já parecia peculiar a ele:

– Oi, senhorita linda. Sentiu minha falta? Chegou aqui seu Salvador, aquele que vai escoltá-la até sua residência, sã e salva.

– Ai, ai… Nem consegui me concentrar durante o dia, de tanta saudade que senti. Agora estou aliviada. – respondeu a jovem, entrando na brincadeira do rapaz e dando um sorrisinho discreto por dentro.

Ao saírem da agência, Hope contou a Chang que a supervisora a tinha efetivado na agência, e que seu trabalho seria, de fato, trabalhar na copa, com o pessoal da limpeza e do almoxarifado. Mas ela havia lhe garantido que assim que abrisse uma vaga para o segundo andar, onde ficavam os guias turísticos, seria qualificada para uma promoção.

Chang sabia quanto a menina ganharia de salário: apenas 10% a menos do que ele e os demais iguais a ele. Não importava o tipo de serviço, todos os funcionários recebiam praticamente a mesma coisa. A planificação de salários estipulada pelo Governo, por sugestão da CoMunGlo, tornava tudo mais justo e mais fácil.

Hope disse a Chang que não vivia em Nova Copacabana como ele, mas no bairro de New Glory, um pouco mais afastado, que era o último localizado na região da orla da cidade do Novo Rio de Janeiro que poderia recepcionar os turistas durante a estação. “Conheço bem. É o bairro imediatamente anterior ao Centro da Cidade, onde morei antes”, pensou Chang.

Como a jovem não tinha o passe para locomoção por toda a cidade, Chang imediatamente se apresentou ao guarda responsável pelo controle de entrada e saída do bairro de Nova Copacabana, intercedendo por ela para que não passasse pela revista regular. O jovem apresentou o seu próprio passe ao guarda, dizendo que a moça estava sob a responsabilidade dele, e que por isso não precisava ser revistada.

Hope deu um sorrisinho ao ver Chang falar com um ar de pessoa importante, gesticulado, com voz empostada, olhando e apontando para a menina, e no final apertando a mão do guarda e ganhando em troca um tapinha nas costas e a garantia de uma passagem sem revista na menina, mesmo ela não possuindo o passe.

Fizeram todo o caminho a pé. Não era muito longe assim. Talvez, no máximo, uns 8 quilômetros apenas. Era raríssimo ver carros transitando pelas ruas. Apenas as autoridades do Governo tinham direito de possuir automóveis. Já tinha tempo que o metrô que cobria a cidade no passado não existia mais. “Nenhuma poluição visual; nenhuma interferência na Natureza”, dizia o Governo.

Às vezes Chang pensava que ser obrigado a fazer longos percursos a pé atrapalhava um pouco as coisas, pois perdia muito tempo se locomovendo. Mas naquele dia ficou feliz por não ter cargo no Governo e não possuir direito a comprar um carro, porque assim pôde conversar bastante com Hope.

Ele ficou sabendo que a jovem tinha 19 anos recém-completados, e não 20 e pouco como havia pensado. Ela não havia nascido no Novo Rio de Janeiro como ele, mas sim na Região de Proteção Internacional – RPI que se situava no norte do país, onde a Floresta Tropical Mundial se localizava.

Já fazia muitos anos que o Novo Brasil havia acatado a sugestão da CoMunGlo de transformar aquela região em uma área de preservação internacional, quase com um enclave. É que a Grande Reforma tinha envolvido também a criação de um plano estratégico de resgate da Floresta Mundial, já que os brasileiros do passado, diante da sua conhecida falta de capacidade de se autogovernar, não conseguiram preservar a área, o que era motivo de grande vergonha para eles até aquele momento, passadas já duas gerações. Era uma mancha na história do Brasil, que o tempo não conseguia apagar.

Todos sabiam praticamente de cor o slogan adotado pela CoMunGlo quando da criação da RPI, assim: “perdoar o Novo Brasil pelos erros do passado, e ajudá-lo a cuidar da Floresta Mundial Tropical a partir de agora e no futuro”.

O plano foi realmente muito bom para o país. O território nacional permaneceria hígido e manteria o mesmo traçado geográfico de sempre, mas a região da Floresta passaria a ser responsabilidade da CoMunGlo, que garantiria a sua preservação, para o bem da humanidade. Ficaria muito mais fácil para o Governo do Novo Brasil administrar o país sem a preocupação com uma região tão vasta como a do norte, onde a Floresta se situava, de dimensão territorial maior do que de muitos países.

É bom que se diga que a responsabilidade da CoMunGlo se limitava apenas à preservação da Floresta, tendo ela autoridade para exercer todo tipo de controle de acesso à região, e ainda estabelecer regras jurídicas a ela aplicáveis.

Foi de fato um ótimo negócio, repita-se. No final, o Novo Brasil manteve a higidez territorial, e os próprios habitantes da RPI não deixaram de ser brasileiros, apesar de se submeterem a um regime jurídico especial imposto pela CoMunGlo.

Hope tinha nascido na região onde se localizava a antiga cidade de Manaus, que depois da Grande Reforma passou a se chamar Pólo Comunitário Global Manaós da Região de Proteção Internacional.

Um nome tão bonito desse, que passava tanta autoridade, era mesmo de orgulhar a todos! Ou melhor; a todos não. Tinha o problema daquelas pessoas mais velhas, ranzinzas e saudosistas, que só sabiam reclamar do Governo e torcer contra os avanços do país. Mas pessoas como Chang, da nova geração, sentiam orgulho de ver como a Floresta Tropical Mundial estava preservada, e como ela abastecia o planeta inteiro com oxigênio puro.

Hope contou a Chang que veio morar no Novo Rio de Janeiro há 2 anos, quando sua família foi desalojada da casa em que sempre tinha vivido, desde antes mesmo da Grande Reforma, em virtude da chegada de novos moradores, que deveriam vir dos países da CoMunGlo.

Na verdade, o que Chang não sabia, e que lhe foi contado por Hope, era que toda a região da RPI começou a ser esvaziada de brasileiros já havia um tempo, para passar a incluir entre seus habitantes apenas moradores internacionais, selecionados pela CoMunGlo.

– Se fosse permitido que você viajasse para lá, veria que praticamente não existem mais brasileiros vivendo na região. Todos tiveram que sair, por ordem dos representantes da CoMunGlo – dizia-lhe Hope. E continuava: – viemos para cá, meus pais, eu e minha irmã, depois de o Governo nos garantir vaga de trabalho e nos arrumar um apartamento.

Caminharam mais um pouco, até avistarem um prédio alto todo espelhado, novíssimo, em formato de torre, no mesmo estilo arquitetônico pós-moderno tão comum na cidade, que se destacava no meio de outros mais baixos, e Hope anunciou:

– Chegamos. É aqui onde moro.

Chang conferiu o relógio e falou:

– Exatamente 8 horas da noite. Ufa! Demoramos 2 horas. Mas viemos bem devagar, e falta bastante ainda para a sirene. Não disse que traria você sã e salva para casa?

Todos os dias, às 22 horas, o Governo tocava a sirene de recolher, restringindo a locomoção apenas às pessoas que tinham o passe, como era o caso de Chang. Ele sabia que Hope não tinha o passe, e por isso mesmo já tinha intercedido em favor da jovem junto ao controle da saída do bairro de Nova Copacabana, para que ela não fosse revistada pelo guarda de plantão, e provavelmente, muito provavelmente, se fosse pega na rua poderia ter complicações. E a única coisa que o rapaz não queria era que aquela moça que parecia tão frágil e indefesa tivesse algum tipo de complicação.

Agora que acabara de chegar ao seu destino, Hope percebeu que tinha na verdade sentido muito prazer com a tal escolta que Chang lhe fez ao conduzi-la até sua casa. Havia muito tempo que não conversava assim, tão abertamente, com alguém que estivesse disposto e interessado a escutá-la; falou sobre a própria vida, e até mesmo sobre futilidades. Mas também ouviu tudo que o rapaz lhe disse em todo o caminho, sempre com aquele ar de galanteio piegas, que ali naquele momento já parecia até agradável à moça.

– Muito obrigada pela companhia, Chang. Vai voltar para casa agora? Cuidado, hein? Não demore pela rua. – disse Hope.

– Não vai me convidar para entrar? – perguntou Chang.

– Prefiro não. Não avisei meus pais, e eles não gostariam que eu trouxesse alguém assim, à noite, com a sirene se aproximando… – Hope continuou: – Ademais, temos o hábito de jantar juntos, todos os dias, em volta da mesa. Eu, minha irmã, e meus pais. É um compromisso familiar que não posso falhar, e que tentamos preservar. São pequenas coisas, mas que para nossa família é muito importante.

E emendou:

– Na próxima vez eu os aviso, e você fica para o jantar, se quiser, tá? Eu adoraria que minha família conhecesse você. É muito importante para mim isso. Só me dê mais um pouquinho de tempo.

Repetiu, mais uma vez:

– Na próxima vez você janta conosco.

Chang escuta a menina e fica refletindo sobre o tal “compromisso familiar” e o jantar em volta da mesa. Há muitos e muitos anos que ele havia se acostumado a ser só. Nem se lembrava direito do rosto dos pais. Desde que ele tomou a resolução de viver sozinho, incentivado pelos representantes do Ministério da Juventude e dos Cidadãos do Futuro, aderindo ao programa do Governo que distribuía bolsas de estudo a adolescentes, que não tinha mais qualquer notícia dos pais.

Ele procurava nem pensar nisso, porque no fundo esse assunto o deixava triste. “O que importa é o futuro, e não o passado”, repetia ele, sempre.

E a verdade é que ele adorou ouvir a menina dizer “na próxima vez eu os aviso, e você fica para jantar”. Significava que ela tinha gostado da companhia dele, e isso o deixou radiante.

Por fim, ouviu Hope falar:

– Até amanhã. Estarei na agência no horário do expediente regular, às 8 horas. – e finaliza a conversa: – Obrigado pela escolta, cavalheiro.

Hope aproxima-se, dá um beijo no rosto de Chang, abraça-o de leve, e se despede, pegando o elevador em direção ao apartamento.

Chang leva as mãos ao rosto, onde sentiu os lábios da menina estalando, e começa a rumar em sentido contrário, caminhando a mesma distância de volta para casa e pensando no que tinha acabado de acontecer.

Tinha certeza que nunca em toda a sua vida havia experimentado uma sensação tão boa como a que vivenciava naquele momento. Ele mal podia esperar para o dia seguinte, quando chegasse na agência e encontrasse com Hope novamente.