Eu sou um cosmopolita. Estou inteiramente inserido na sociedade moderna, com seus confortos e tecnologias. Almoço em restaurantes por quilo, peço pizza em casa e ultimamente sequer estou indo ao supermercado. Dificilmente ando a pé. Se o lugar para onde preciso me deslocar estiver a mais de duas quadras de onde estou, não titubeio em pegar meu carro.

Inclusive, há muito tempo não ia à feira. Nem havia razão para isso. No entanto, era domingo e a Leticia ia ficar o dia todo ocupada com um curso. Decidi, então, gastar um pouquinho do meu tempo nessa instituição milenar.

Coloquei meus fones de ouvidos (daqueles grandes mesmo, que as pessoas já nem ousam iniciar uma conversa ou lhe fazer uma pergunta), liguei um Heavy Metal (este é o meu defeito, aliás. Inclusive, dizem que a música que você ouve na adolescência torna-se seu estilo preferido a vida toda. Foi assim que destruí minha capacidade de apreciar qualquer música que não pareça uma bigorna batendo no meu cérebro), fui direto ao carrinho de pastel e logo pedi um de queijo e uma coca-cola.

– Pra comer ou pra levar, senhor?
– Pra levar comendo, respondi.
– Melhor escolha, senhor.

Rimos.

Pastel numa mão, coca na outra e Threshold nos tímpanos – comecei meu passeio. De fato, eu não tinha o que fazer naquela feira, senão sentir o prazer de caminhar no meio da multidão (algo que eu não experimentava há algum tempo).

As feiras existem desde sempre. Foram elas que sustentaram os países da Europa Continental na Era das Trevas. Nelas, reúne-se verdadeiramente o povo. Não há nada mais democrático. Por isso, encontramos de tudo.

Enquanto eu andava, apreciava aquela sensação de realidade. O contraste com minha vida elitista e reclusa é evidente. Não há ali aquela ordem artificial criada por aqueles que pretendem manter tudo absolutamente seguro, nem a polidez de indivíduos carentes que se preocupam em demasia com a própria imagem. Na feira, há uma organização espontânea. De alguma maneira, cada um respeita o espaço do outro. E tudo funciona perfeitamente bem. Existe também uma expansividade exagerada, que torna-se histriônica. Os feirantes gritam muito e isso contagia o ambiente. Logo, não apenas eles, mas outros elementos ajudam a fazer daquele circo um lugar mais vivo e mais louco.

Durante minha travessia voluntária vi de tudo: discussões acaloradas, disputas por quem gritava mais alto o preço da fruta, velhinhos que pareciam perdidos em meio à balbúrdia, crentes evangelizando e até fazendo rodas de oração em volta de mendigos completamente confusos. Era dia de final de futebol e teve até guerra de gritos de torcidas. Já quase no fim, ainda me deparei com um “Sheik árabe” (vestido a caráter, obviamente), encenando uma luta de boxe (com luvas e tudo), com um sparring completamente machucado (mas não se preocupe, era só um assistente maquiado).

A sensação desse passeio foi deliciosa. Senti-me dentro do mundo, parte da sociedade na qual vivo e feliz por ter contato com aquilo que chamamos de povo. No entanto, pensando bem, todo esse sentimento só me ocorreu porque eu não precisava frequentar a feira todos os dias, nem acordar às três horas da manhã para preparar a barraca de frutas, nem voltar para casa esgotado depois de doze horas intensas entre gritos e esforços.

A glamourização da feira só me é possível porque ela, para mim, não passa de um ambiente exótico, sobre o qual eu posso romantizar e pintar quadros divertidos. Se eu precisasse viver nela cotidianamente, me enjoaria do pastel, perderia a paciência com os mendigos, acharia os crentes inconvenientes e ficaria louco para pular em cima e calar a boca do primeiro feirante que gritasse perto do meu ouvido. A balbúrdia da feira, para quem a visita de vez em quando, pode parecer romântica, mas para quem a frequenta diariamente é prosaica.

Da mesma maneira, a pobreza, com sua escassez, precariedade, falta de perspectiva, feiúra e insegurança não incomodam o pobre, mas também não o empolgam. É tudo apenas parte de sua realidade. Para o elitista, porém, que não a experimenta, senão pelas incursões semelhantes à minha, mas que pretende esbanjar populismo, a pobreza permite ser glamourizada, como se fosse algo até desejável em determinadas circunstâncias.

Tudo o que eu ouço da elite, quando ela se apresenta como defensora dos pobres, não passa de hipocrisia. Ela não suporta a vida simples, odeia suas limitações, não aguenta suas dificuldades e tem ojeriza do seu odor. A elite populista tem os ambientes pobres apenas como lugares exóticos, que ela resolve visitar, de vez em quando, quase como uma aventura no Safari.

Quando essa elite é política é ainda pior, porque a pobreza lhe serve como instrumento, para fornecer-lhe a aparência de virtude que ela tanto precisa para manter sua retórica hipócrita. Sempre quando alguém se apresenta como o defensor dos pobres, já sei que se trata de um pilantra.

Afinal, um defensor dos pobres, principalmente que vive desse discurso, depende que os pobres existam para que sua identidade não se perca.

A verdade é que os pobres não precisam ser defendidos. Eles só querem (como todo mundo) não ser impedidos de buscar sua própria felicidade. Os pobres não querem ser louvados. Eles só não querem (como todo mundo) ser tratados como massa de manobra nas mãos de especuladores ideológicos.

Os pobres, no fim das contas, só querem ter o direito de tentar deixar de ser pobres.