PHVOX – Análises geopolíticas e Formação
Anderson C. Sandes

Logos X Legos: a guerra poética que a direita inculta não percebe

Este é um assunto complicado, do qual pretendia falar há cerca de dois anos, mas sempre temi ser mal compreendido — normal para um poeta na modernidade —, taxado de arrogante e coisas do tipo. Mas como num lampejo de obviedade percebi que, quando o assunto é cultura, a taxa de leitores cai, e quando se trata de compreensão, os números descem ainda mais. “[…] quanto melhor for o poema, pior heis de pensar dele”, disse Chesterton, e é mais ou menos assim com outros gêneros textuais. E para completar a alfinetação própria no espírito deste texto, cito novamente o velho mestre:

“Caso nossa sociedade estivesse saudável, não seria necessário dizer a ninguém como ler ou escrever poesia, pois, naturalmente, recorreriam à forma poética sempre que desejassem escrever uma coluna sobre costura ou a história das leis secas”.

Vamos aqui, antes de prosseguirmos, delimitar o que quero dizer com os termos que utilizarei (façamos um pouco de poética). Poesia ou poética: A etimologia advém do grego poiein, significando criar, fazer. Será utilizado aqui no sentido mais generoso, enquanto sinônimo mesmo de linguagem; uma guerra poética é, portanto, uma guerra linguística, narrativa. Logos: é um terno de origem grega que significa fundamento, pensamento, palavra, fala, verbo, razão e discurso. Foi por meio do logos, que é também sinônimo de linguagem, que Deus criou o mundo, dando ordem ao caos através das palavras. Em seguida, Deus dá ao homem o dom da fala, que nomeia toda a criação divina, tornando-se assim portador também do logos, da poesia, sendo como que coparticipe na criação divina. Lego (uso também o termo no plural): são aqueles brinquedos coloridos (o nome da empresa), com formas prontas, predefinidas, projetados de modo que encaixem uns nos outros, formando outros objetos.

Que estamos em uma grande guerra, todos com alguma formação religioso ou política, por mínima que seja, sabem. Fala-se muito em guerra cultural, eu acredito que acima de tudo a beligerância é espiritual, pois não é apenas de problemas da carne que estamos falando. Sabemos todos que a esquerda tem grande vantagem na peleja, pois conseguiram permear toda a cultura nacional, de escolas a igrejas. Mas o menos óbvio para a direita que costuma brincar com legos linguísticos, encaixando jargões coloridos para montar discurso — próprio nos políticos e ativistas mais inflamados — é que a principal ferramenta utilizada pela esquerda foi a poesia, poética, linguagem. De modo não natural, trouxeram o caos com o logos.

Quando fala-se em “guerra cultural”, fala-se de guerra poética; quando fala-se em guerra de narrativas, fala-se estritamente de poesia, de linguagem. A verdade não obvia para a direita inculta que despreza a poesia é: todos os problemas de ordem moral que a esquerda trouxe tem origem na linguagem, na poesia. Este era o maior medo de Platão, que num arroubo de afetação, defendendo um governo de filósofos, sugeriu a expulsão de todos os poetas da República. Platão sabia do potencial da poesia — para o mal ou para o bem —, e por isso tanto a temia e a queria longe de seu mundinho ideal. Não discuto aqui a “inocência” do filósofo quanto a isso, pois poesia não se faz apenas com poetas — o próprio Platão utilizava-se de poesia em sua filosofia e discursos —. O temor de que a poesia por si mesma corromperia a república já foi suficientemente refutado, inclusive por seu discípulo Aristóteles, além de Sir P. Sidney e Percy Shelley. Não foi a existência de uma poesia da esquerda que corrompeu nossa nação, foi a ausência da boa poesia — que leva sabedoria aos homens, que educa e dá prazer —, que permaneceu rejeitada, atrás de discursos sobre economia, fronteira, minérios, e todas as outras batalhas que seguirão perdidas se não for trabalhado urgentemente o imaginário coletivo da população. Curiosamente toda a direita repete esse discursinho, sem fazer ideia de que estão falando de artes poéticas. Até mesmo os chamados olavistas, que leram muito pouco o filósofo, se perdem nesse objeto feito de legos coloridos. Falar em guerra cultural, narrativa, “adestramento do imaginário” é mero fetiche da direita sabichona, tão inculta quanto fingida.

Ao contrário de Platão, que defendia um governo de filósofos, não defenderei um governo de poetas ou linguistas, mas clamo para que a direita pare de brincar com os legos, sobretudo com os legos que a esquerda lhes deu, e passe a ver a importância do logos. Sei que temos uma direita que não ouve música, que aprendeu a ver filme na semana passada, que fala em filosofia política sem ler romances e novelas. Conheço todo os fingimentos e cacoetes. Mas se queremos vencer a tal guerra, precisamos de uma boa arma, e a linguagem é a mais poderosa do arsenal — e a mais complexa. O inimigo inverteu os valores apenas dando nomes novos às coisas, e continuam a perverter em seu favor toda a linguagem. “Não há mudanças na estética da música e da poesia sem mudanças nas leis mais importantes da cidade,” disse Platão em A República, conhecendo, repito, o potencial da poética, do logos. Shelley dizia que “os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. Na mesma obra (Uma defesa da poesia), o poeta afirma que “a própria linguagem é poesia”, sendo ela “algo divino”. O logos é puro poder, e está contra nós, que brincamos alegremente com nossos legos coloridos, pré-formatados.

O poeta Sir Philip Sidney, em sua obra Defesa da Poesia (1582), deixa uma maldição para todos aqueles que desprezam a poesia. O autor indigna-se com intelectuais ingratos que, utilizando-se da linguagem, corrompem a inteligência e desacreditam os verdadeiros sábios. Eis a maldição de Sidney aos que desdenham da poesia:

“[…] envio esta maldição, em nome de todos os poetas: que, enquanto viverdes, vivereis apaixonados e nunca sereis correspondidos porque vos faltará o talento para compor um soneto e, quando morrerdes, vossa memória será varrida da terra por falta de um epitáfio”.

Onde não há poesia ausenta-se a beleza e a memória. Se a direita se importar com tais conceitos, como alega, que passe a combater a guerra com as melhores armas. Que o Senhor nos livre de tal maldição. Amém!

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