PHVOX – Análises geopolíticas e Formação
Brasil

O Bom Selvagem de ontem e de hoje III – A Revolução silenciosa do Positivismo no Brasil

Introdução

 

Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão começo a suspeitar que é um continente.

Machado de Assis – O Alienista

Quando, em 1922, foi fundado o Partido Comunista Brasileiro o movimento Positivista já tinha pelo menos cinquenta anos de atuação no Brasil, já havia sido responsável por uma ruptura política que trocou ´manu militare´, um regime com pelo menos setenta anos de existência, já ocupava quase à maioria das cátedras universitárias, da burocracia e dos tribunais e parte importante da imprensa; era a coqueluche da elite ilustrada que, com seus óculos pince-nez, ditavam às regras da nova moral nos footings pela rua do Ouvidor. O movimento positivista é uma força político-cultural que tem uma continuidade histórica e um impacto intelectual crucial no desenrolar da vida Brasileira até os dias atuais. Aqui tivemos o apostolado positivista com mais devotos no mundo, inclusive mais que na própria terra natal de Augusto Comte. Criador e sumo sacerdote do Positivismo.

Assim como o Marxismo, a doutrina positivista propunha a construção de um novo homem, de uma nova sociedade por meio de bases ´racionais ´e desenvolveu, mesmo que de forma às vezes discreta (assim como o marxismo faria mais tarde), uma chamada cultura positivista. Uma arte que abrangia da arquitetura até a poesia, da urbanização até uma didática, que tinha seu calendário próprio, seus heróis, e dialogava com outros eventos históricos considerados importantes, como é o caso da Revolução Francesa e cuja influência foi enorme no Brasil, especialmente no pós 1889 quando virou uma espécie de política de Estado.

Já, diferentemente do Marxismo, que teve sua ideia apropriada pelo governo russo pós 1917 e virou por algum tempo sinônimo de sectarismo político[1], o positivismo sempre gracejou entre a universidade brasileira um ar de superioridade científica e distanciamento partidário. Colocando-se, assim como no clássico embate entre Jacobinos e Girondinos na França de 1789, como uma opção mais palatável, menos radical, sem a bandeira da revolução violenta contra os poderes constituídos. Tendo também todo o histórico relativo aos progressos alcançados nas ciências exatas, tomando primeiramente às escolas de engenharia, mas tendo também sua entrada nas ciências biológicas e humanas facultadas pela sua pseudo isonomia intelectual.

A lista de representantes brasileiros nas classes letradas é enorme. Na medicina nomes como Nina Rodrigues (1862-1906) e Arthur Ramos (1903-1949) que, não por acaso, também flertariam com a eugenia e que são, juntamente com Roquete Pinto (1884-1954) e Euclides da Cunha (1866-1909), a base de nossa antropologia darwinista / evolucionista. No direito nomes como Clóvis de Beviláqua (1859-1944), Pontes de Miranda (1892-1979), Caio Mário da Silva Pereira (1913-2004), Francisco Campos ( 1891-1968) traduziram o ´progresso´ da era positiva em uma Babel jurídica (mirando transformar o Brasil por meio de uma legislação ´perfeita´, pois abrangeria todas às relações sociais humanas). O feminismo no Brasil também deve ao positivismo a sua pioneira, Nísia Floresta (1810-1885), que chegou a manter correspondência com o próprio Comte. Não é coincidência a Universidade de São Paulo, a USP, ter começado com um corpo de professores franceses, em sua grande maioria, de formação positivista. Entre os quais, no campo da Antropologia e Ciências Sociais, destacam-se os nomes de Roger Bastide (1898-1974) e Claude Levi Strauss (1908-2009), mestres de gerações de professores e de alunos que se tornaram burocratas, políticos e chefes de departamentos de pesquisas universitárias pelo Brasil afora e que definiram o que é a política indigenista brasileira, consolidada na Constituição de 1988 e até hoje ensinada nas universidades.  A concepção do índio brasileiro como um patrimônio, como um ser imóvel, imutável, condenado a reencenar os mesmos roteiros de relações, a manter a mesma estrutura social dita tradicional (definidos e aprovados por zelosos antropólogos e burocratas), a viver em uma espécie de jardim zoológico humano em que ele é só mais uma das espécies, tem sua origem na concepção positivista de história.

A teoria positivista e o ´apocalipse do homem´

´Havendo herdado o dogma do Iluminismo sobre a invencível habilidade do homem de superar todos os erros, Comte não pode conter seu fascínio pelo que ele identificava como um resplandecer das luzes, assim também como Bacon, Gallileo e Descartes. Na sua perspectiva racionalista existe só luz versus trevas…´ Stanley L. Jaki – ´The Origin of Science and the science of its origin´ , 1979

Diferente de muitos revolucionários de ontem e de hoje, o criador e sumo sacerdote do Positivismo, Augusto Comte (1798-1857), teve uma formação tradicional, vindo de um berço Católico do sul francês, cedo torna-se convicto da causa republicana. João Camilo fala sobre Comte, que este:

´Em seus trabalhos sempre defendia a adoção de uma ditadura republicana. Era tão grande a sua preocupação de ordem, o seu desejo de combater a anarquia de seu tempo, que sua irmã mlle. Alix Comte escreveu-lhe, sugerindo que pusesse o seu talento a serviço do catolicismo e da realeza tradicional, ao invés de aplica-lo na elaboração de uma ordem nova. É interessante que Charles Maurras, também provençal, realiza-se, ao menos em teoria, o pensamento de Alix Comte. Comte, porém, não deu ouvidos à prudente irmã, pois queria ser o ordenador do novo cosmos a sair do caos revolucionário. Conseguira descobrir em De Maistre uma frase na qual o ilustre saboiano anunciava a fundação de uma nova religião, caso o catolicismo não vencesse a crise da Revolução Francesa, tomando-a logo para si. E, na divisa, ´´ordem e progresso´´, Augusto Comte sintetizou todas as suas concepções políticas. Nada de revoluções, mas, também, nada de Deus nem de reis. ´[1]

O pensador germânico Eric Voegelin dedica uma grande parte do seu último volume das Histórias das Ideias Políticas, com o muito apropriado subtítulo de a ´Crise e o Apocalipse do homem´, ao fenômeno positivista. Segundo ele ´mesmo hoje não há dúvida que Comte pertence, juntamente com Marx, Lenin e Hitler, a uma série de homens que salvaram a humanidade e eles mesmos pela divinização de sua existência particular e a imposição de suas leis como uma nova ordem social. O apocalipse satânico do Homem começa com Comte e tornou-se a marca da crise ocidental. ´[2]

E continua ele fazendo um paralelo entre a tradição ocidental cristã e a nova ordem revolucionária:

´Na visão cristã de mundo, a terra e o símbolo da substancia em que nos tornamos e na qual voltaremos em corpo; no nascimento e na morte ela une e liberta a alma; e o breve intervalo da vida terrestre é passado na misteriosa e ordenada tensão entre os dois deveres de manter alma e corpo juntos fisicamente e preservar a integridade da alma contra as tentações espirituais terrenas. Na hierarquia cristã da existência, a terra é, também nas suas características morfológicas assim como no reino do ser que ela representa, o presente de Deus ao homem como meio de subsistência e de sua estatura civilizacional. No século dezoito com a atrofia do cristianismo e o crescimento da ideia intra-mundana de homem e humanidade, este problema da terra não desaparece, mas assume uma forma intra-mundana correspondente. A substituição do drama da Salvação pela opção pelo progresso é paralela a substituição do mistério cristão da criação do mundo físico como cenário de um drama relativo ao espírito pela geografia política. A tribo da Humanidade agora tem o globo – o globo entendido como um objeto físico entre outros na qual é possível obter uma descrição assim como poderia ser dado por um observador olhando da lua com um bom telescópio[3] – rien que la terre. O progresso intra-mundano da massa total significa o aumento do conhecimento referente ao seu habitat e sua crescente exploração por meios da tecnologia; o mistério abismal da criação transformou-se no fenômeno de domar a superfície esférica e seus recursos.  ´ [4]

Ou seja, a concepção da terra em seu sentido espiritual foi extirpada por uma visão prática, técnica, funcional do que poderia advir da exploração de seus infindáveis recursos em conjunto com um suposto conhecimento acumulado que seria capaz de superar todos os problemas e desafios. Haveria desequilíbrios entre nações por conta de recursos mas o ser humano, abolido o misticismo, e agora representado por uma casta de intelectuais superiores, pertencentes à esta nova modalidade que seria a tribo da humanidade, governariam a todos por meio da ciência e da razão. Teoria advinda da famosa lei Comtista dos três estados civilizatórios , que começa com o estado teológico ou fictício, depois com o estado metafisico ou abstrato e termina no estado positivo ou científico. Impossível não relacionar com outras formas de evolucionismo histórico como o Iluminismo , o jacobinismo revolucionário de 1789 e, claro, o Comunismo Marxista, que seguem a mesma dinâmica em tomar a história em um sentido intramundano , terreno, um sentido em si mesmo. Assim como partir do princípio, do ideal de liberdade, igualdade e fraternidade com uma dinâmica quase maçônica, de privilegiar os iniciados, correligionários, parentes e amigos.

´O positivismo, ainda em vida de Comte, já possuía hereges e ortodoxos. Emile Littré, o primeiro discípulo a vulgarizar as ideias de Comte, este também foi o primeiro dos dissidentes. O Celebre filosofo jamais aceitou a segunda parte da obra de Augusto Comte. Sempre considerou a Politique positive, com sua respectiva religião da humanidade, obra de demente.´[5]

Sobre o tema escreve Eric Voegelin: `No conflito entre Comte e Littré deparamo-nos com o principal problema da crise ocidental.´…´O comteano é o megalómano que presume ver o plano da história e que tem profundidade suficiente para se aperceber da natureza e dimensão da crise. O tipo de Littré representa a mistura peculiar de destrutividade e de conservadorismo., característica do complexo de ideias e sentimentos que designamos por liberal. Participam nas revoluções até que a civilização esteja destruída ao nível da respectiva personalidade fragmentária. Como não tem cultura suficiente para distinguir entre cristianismo e corrupção da Igreja, estão prontos a extinguir o cristianismo, porque não gostam da Igreja, e julgam assim resolver o problema social. Não percebem o problema da institucionalização do espirito. Como vivem nesta ilusão, surpreendem-se quando surgem novas variantes do espirito a clamar pela institucionalização, e ainda mais ´´ detestáveis´´ que o cristianismo. Não percebem o que se passa porque não tem substancia espiritual suficiente para lidar com problemas espirituais. ´[6]

E continua falando de Comte…´O ressentimento ilimitado culmina na abolição de Cristo. O horizonte humano está dentro dos muros dos fatos e leis dos fenômenos. O decurso da historia é a evolução da mente racional. Se existissem deuses, não se lhes permitiria participar da história; de qualquer modo, são apenas ilusões. O cristianismo existiu como um sistema de crenças que corresponde a uma etapa do espírito. Jesus, a incarnarão do espírito, não existiu. Cristo é uma invenção, motivo pela qual o caléndrier[7] só inclui os criadores do ´´mito cristão´ ´A mente humana esta a evoluir para liquidar ficções até que a mentalidade exclusiva da mente humana se torne visível – o que veio a acontecer em 1845, em Comte.´

Paisanisação e burocratização dos militares e a Prática Positivista

´Mas aí se acha uma seita, anticristã, hostil mesmo a toda religião revelada, e para qual o exercito permanente é uma criação detestável, que cumpre extirpar; nem deve o Brasil continuar como é, gigantesco em sua unidade, mas urge espatifa-lo em muitíssimas republiquetas positivistas. Se em dezessete a França em quantas seria o nosso Brasil? Pois bem, a seita que isso planeia, inimiga das classes armadas, infensa à unidade nacional, é a religião dos mais ardentes republicanos´ Carlos de Laet – Microcosmos 22-06-1910

Segundo August Comte , com a chegada da fase Positiva da história, os conflitos armados seriam abolidos e a Fraternidade Universal resolveria todas às questões por meios pacíficos, racionais e científicos. Os militares não teriam mais o papel de guerreiros, de estrategistas, e os exércitos remanescentes iriam sendo utilizados em funções de policiamento e burocracia até dissolverem-se por falta de utilidade. O mestre Oliveira Lima já falava da paisanisação desse soldado durante o monopólio positivistas nas escolas, segundo ele ao invés de lá formar um profissional da guerra, formavam-se matemáticos… Rondon foi, talvez o grande modelo ´Militar, reconhecendo simultaneamente que as guerras eram coisas do passado, mas que o Exército – mormente no Brasil – é uma força social de grande importância, resolveu orientar as suas atividades militares no sentido estritamente civilizador e pacifico. Fez o que faria – não um general – mas um governo pacifista: utilizar extra militarmente o exército, empregando em funções civis, que poderiam ser levadas a vante por força militar graças às suas condições de disciplina e ordem.´[1]

Porém, é possível ver que o uso da violência de forma, digamos, pouco nobre, no caso do movimento positivista nacional. Gilberto Freyre usa em seu terceiro volume da sua monumental trilogia sobre a sociedade patriarcal; que começa com Casa Grande e Senzala, continua com ´Sobrados e Mucambos´ e termina com ´Ordem e Progresso´; em um abrangente questionário que foi enviado aos mais diversos membros letrados da sociedade dos anos 40 e 50 do século vinte. E o mestre de Apipucos nos conta que:

´´ Ao proclamar-se a república no Brasil […]correu o sangue de alguns negros em São Luis (Maranhão), os quais estavam convencidos que deviam a sua libertação ao trono´´ recorda um simpatizante do positivismo e da república, José luso Tôrres, nascido no Maranhão em 1879, numa das respostas mais esclarecedoras provocadas pelo inquérito que serve de lastro a este ensaio. Acerca do que, pormenoriza: ´´As balas que os vitimaram foram disparadas por um pelotão do quinto batalhão e eu passei a respeitar, muito mais ainda, o Major Tavares“ , isto é, o comandante de tal pelotão. Esse major Tavares Tôrres – futuro engenheiro e futuro frequentador das conferencias de Teixeira Mendes no apostolado Positivista, no Rio de Janeiro – quando era menino, no Maranhão, invejava-o de tal maneira, que, pela impressão da ´´importância´´ e dos ´´galões dourados´ ´do major, é que seguira, o adolescente, para a Escola Militar da Praia Vermelha e daí para de Rio Pardo. Daí o depoimento não ter sido escrito contra, mas a favor, do militar republicano que não hesitou em matar a bala os negros desarmados que no Maranhão se conservaram fiéis à Monarquia, considerando – no que não deixam de ter alguma razão – os Major Tavares, os Deodoro, os Floriano, os Benjamin Constant – militares desleais aos seus juramentos de lealdade ao trono. Se, retrospectivamente, valorizarmos a virtude da lealdade acima de outras  virtudes, dentre as que estiveram dramaticamente em choque na consciência de alguns brasileiros que desde 1888 se foram sentido obrigados a atitudes de definição pelo Trono ou pela República, temos que reconhecer heróis e até mártires – heróis e mártires ignorados pela História oficial – quase sempre exclusivista e estreita no seu modo de consagrar vencedores – em negros e ex-escravos como as vítimas do Major Tavares em São Luís do Maranhão. Negros e ex-escravos espontâneos na sua dedicação ao trono que fizera deles homens livres. Porque negar-se espontaneidade à atitude de lealdade de muitos desses negros e ex-escravos à Monarquia, redentora e protetora deles, não se compreende: essa espontaneidade existiu tanto da parte de negros que, no Maranhão, foram abatidos pelos tiros um tanto covardes dos soldados do Major Tavares como pelos que, no Rio de Janeiro, foram abatidos por tiros , da parte de ioiôs republicanos igualmente armados de armas de fogo ao se defenderem de pretos da chamada ´´Guarda Negra´´, armados simplesmente de cacetetes denominados ´´petrópolis´´ :quando muito de navalhas. É o que depreende do depoimento insuspeitíssimo de Medeiros e Albuquerque. Ele próprio, Medeiros, foi então um dos agitadores republicanos; e confessa ter saído de casa, para enfrentar os seus rivais, os agitadores redentoristas ou monarquistas – a chamada ´´ Guarda Negra“ – levando ´´um excelente Smith Wesson´´e ´´ duas caixas de balas´´. Isto em plena vigência da Monarquia. Assim armados, é que os ioiôs brancos – entre os quais, alguns, decerto, mestiços – do Clube Republicano , se dispuseram a repelir o que fosse ou parecesse agressão contra eles , da parte dos pretos da ´´Guarda Negra´´, armados apenas – reconhece Medeiros – de “cacetetes e navalhas ´´.Não é de admirar que do ´´fogo que do clube se fez contra eles – pretos da ´´Guarda Negra´´ – tenha resultado a morte de ´´muitos´´ desses pretos, na verdade heroicos, ´´cujos cadáveres a polícia escondeu´´, recorda Medeiros. Pois  ´´ a Travessa da Barreira estava literalmente apinhada de uma turba-multa ululante e sanguinária´´, isto é, a massa de pretos da ´´ Guarda Negra´´, nenhum deles armado de arma de fogo: todos apenas confiantes nas suas artes de capoeiras; alguns nos seus cacetes e nas suas navalhas. Medeiros acrescenta este pormenor sobre o modo por que os ioiôs  republicanos enfrentavam aquela turba-multa de pretos e homens de cor, para eles, republicanos mais ou menos intelectualizados, retardados sociais, por se conservarem fieis a Monarquia.´[1]….´Em minoria organizaram, esses burgueses brancos ou quase brancos, entre nós, o movimento republicado, a base da superioridade técnica de suas armas e empregando-as contra brasileiros de cor, cujo crime vinha principalmente do excesso de uma virtude , não possuída ou revelada por alguns dos mesmos republicanos: a lealdade, a fidelidade, a gratidão. Gratidão ativa e não apenas passiva. ´[2] E termina ele ´Comprometeu-se assim durante o movimento republicano agitado no País por essa minoria de Ioiôs privilegiados – alguns privilegiadíssimos, pelo fato de serem militares e, como militares armados, servirem a causa antimonárquica. ´[3]

Atentados semelhantes foram cometidos por um exercito profissional em face à uma população civil que foi pega de surpresa com a mudança subida de regime no Rio de Janeiro em 1889. A violência utilizada em revoltas conservadoras, e até mesmo restauradoras, de cunho popular como foi o caso de Canudos e depois de Contestado, foi justificada pela certeza da inexorabilidade dos preceitos positivistas e do receio de um ´retrocesso´ institucional aonde muitas exonerações funcionais com certeza aconteceriam.

Tanto os africanos como os indígenas eram considerados pelos positivistas brasileiros como fetichistas, a primeira fase do ´estado teológico´ comteano.  Sociedades que pertenciam a um estágio civilizacional inferior.  O fetichismo seria uma espécie de biomorfismo que consiste em ver os corpos exteriores como animados por uma vida análoga à nossa. Comte vê no fetichismo ´´o equivalente efetivo a uma espécie de alucinação permanente comum. ´´[1] Segundo ele, é preciso fazer justiça a essa síntese inicial que, fornecendo o primeiro vinculo com as observações, permitiu à inteligência sair de seu torpor.´[2]

No clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil[3] ele cita que:…´em um documento datado de Homero 102 [4],isto é, quando contávamos dois meses de vida republicana, propunham que se subdividisse o país em duas sortes de Estados: ´´os Estados Ocidentais Brasileiros, sistematicamente confederados e que provem da fusão do elemento europeu com o elemento africano e o elemento americano aborígine ´´ e os ´´Estados Americanos Brasileiros, empiricamente confederados, constituídos por hordas fetichistas esparsas pelo território de toda a república; a federação deles limitar-se-ia à manutenção de relações amistosas hoje reconhecidas como um dever entre nações distintas e simpáticas, por um lado; e por outro em garantir-lhes a proteção do governo federal contra qualquer violência, etc. [5]´´

O índio e a conclusão

´O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida em que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe para não desaparecer uma missão difícil: descobrir, sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras relações mais altas em que as verdades desvendadas pela análise objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante.´ Euclides da Cunha – Contrastes e Confrontos (1906)

Assim como o elemento africano foi menosprezado e subjugado pela teoria e pela prática Positivista, também o índio foi designado como um ser em uma fase inferior no processo civilizatório. A doutrina de August Comte que, dialoga a todo momento com a inteligência do Iluminismo e deles retira a sua legitimidade, é uma das mais, se não a mais, importante bússola acadêmica na República Brasileira. E é ela quem provêm os fundamentos teóricos para às políticas indigenistas que foram implementadas, desde 1910, pelo então Serviço de Proteção do Índio, e que em 1967, em pleno governo militar, transformou-se na FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Sendo consolidada na constituição de 1988, vigente até os dias de hoje, com a concepção de um índio como um cidadão inimputável, com direitos e deveres bem diferentes de um cidadão comum, tendo como seu guardião ad aeternum o Estado Brasileiro na figura de seu zeloso corpo de funcionários. Burocratas muitas vezes fardados que, seja na linha de frente protegendo às tribos da civilização, seja no conforto de seu gabinete em um dos vários palácios que abrigam a alta hierarquia do funcionalismo público, não possuem mais a expertise do combate militar. Dela só mesmo a lembrança pelo gestuário e pelo uniforme. A figura do Marechal Candido Rondon, seu perfil de ´explorador´ e ´protetor´, assim como o seu lema com seu lema ´afrontar todos os perigos, até à morte, matar nunca. Transformou-se não em uma exceção de militar de caráter indigenista, mas uma espécie de modelo de soldado perfeito, legitimando uma interpretação da histórica do Brasil, que vai ganhar primazia no regime militar, de um país ausente de conflitos, pacífico, um impávido colosso que está deitado eternamente em berço esplêndido.

Na prática jurídica temos a figura do bacharel militante que defende um tal de Estado Laico, que necessita apagar todo o traço, todo o vestígio, toda a menção de fé, retirar imagens religiosas de prédios públicos, etc etc São os mesmos que defendem a manutenção compulsória de tradições indígenas que eles desconhecem peremptoriamente, mas que, por um princípio antropo-arqueológico de quem já entrou na fase ´positiva´, insistem no confinamento desses ´primitivos´ para fins didáticos.

Por outro lado, existe uma crença generalizada entre nós, sociedade brasileira, no poder, quase mágico, das leis. Na busca de um código legal perfeito que vai, daí emanar a justiça e a paz e resolver ´o problema do Brasil´. Um tema muito comum nas conversas do dia a dia são as frases ´tinha-se que proibir isto´, ´deveríamos ter uma lei para tal coisa´… que são proferidas como um credo cívico, até por quem se diz de correntes políticas conservadoras, parecendo não ter em mente que o Brasil é o campeão de leis, decretos, portarias, normas, resoluções…E, pior, não tendo consciência de que quando se criminaliza algo, este algo não se extingue no tempo e no espaço mas, é  incorporado dentro de um código institucional que vai demandar recursos, pessoas, tempo, etc para reprimi-lo. E, exponencialmente pior , dando o mérito da interpretação e da palavra final a mesma intelligentsia jurídica positivista defensora do Estado Laico/científico/positivo.

Nas tensões institucionais e acadêmicas, os Positivistas conseguiram manter-se com uma aura de isentos e equilibrados comparados com anarquistas, socialistas, comunistas e do sentimento de uma crescente desilusão com o status quo. Sua discrição e institucionalidade faz com que o nosso imaginário não o coloque como uma doutrina revolucionária, e historicamente existiram momentos em que os positivistas de fato foram contrários e até, pode-se dizer, foram barreiras políticas contra o comunismo. Porém é impossível negar que existem muito mais semelhanças do que diferenças nas duas concepções filosóficas, ainda mais no que tange a negação da metafísica e, consequentemente, de Deus. E como já dizia Charles Baudelaire:

´o maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe. ´

 

[1] Comte, A ´Curse de Philosophie Positive´

[2]   Kury, Lorelay & Fedi, Laurenti `Rondon e o Positivismo: a Ciência dos Fetichistas` In  ´Rondon Inventários do Brasil 1900-1930´ Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2017

[3] Holanda, Sérgio Buarque ´Raízes do Brasil´ José Olympio Ed., Sp, terceira edição 1955

[4] Usando a data no calendário oficial positivista.

[5] Miguel Lemos e R. Teixeira Mendes ´Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a República Brasileira´ citado por Sérgio Buarque de Holanda

[1] Freyre, Gilberto `Ordem e Progresso : Processo de Desintegração das Sociedades Patriarcal e semi patriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre : Aspectos de um Quase meio século de transição do  trabalho escravo para o trabalho livre; e da Monarquia para a Republica.` Tomo I , Livraria José Olympio Editora , Rio de Janeiro – 1959. Pág. 12-13

[2] Op. Cit.

[3] Freyre, Giberto Op.Cit

[1] In Torres, João Camilo de Oliveira ´O Positivismo no Brasil´ Edições Câmara , Brasília, 2020

[1] Torres, João Camilo de Oliveira ´O Positivismo no Brasil´ Edições Câmara , Brasília, 2020

[2] In Voegelin, Eric ´History of the Political Ideas, Volume VIII – Crisis and the apocalypse of man´University of Missouri Press, Columbia 1999 Pag. 185

[3] Turgot, Anne Robert Jacques ´Geographie Politique`  In Oeuvres de Turgot´ Eric Voegelin traça uma genealogia das idéias que embasaram Augusto Comte e a criação da doutrina Positivista e coloca Turgot como importante influência .

[4] Op.Cit Pág. 141.

[5] Torres, João Camilo de Oliveira ´O Positivismo no Brasil´ Edições Câmara , Brasília, 2020

[6] Voegelin, Eric Op. Cit

[7] O Positivismo tinha o seu próprio calendário em que cada dia era dedicado a um herói da humanidade. Bacon, Galileu, Descartes, Rousseau, no Brasil foram acrescentados figuras como José Bonifácio (O Patriarca da Independência) e o poeta romântico e com fortes tons indigenistas, Gonsalves Dias.

[1] Mudança que acontece nos anos 1960-80.

Pode lhe interessar

Cristianismo e realidade: breves notas sobre os erros fundamentais do modernismo filosófico

Daniel Ferraz
14 de novembro de 2023

A Ucrânia está sendo passada para trás pela OTAN?

Paulo Henrique Araujo
13 de julho de 2023

O Papa, os jovens e as “doenças mentais”

Heitor De Paola
8 de setembro de 2023
Sair da versão mobile