PHVOX – Análises geopolíticas e Formação
América Latina

O bom selvagem de ontem e de Hoje: Habitantes pré-cabralinos como personagens da fábula política revolucionária

 

O Século XVI e os primeiros contatos

´Florescia o Império Lusitano, muitos séculos depois de ser fundado por Tubal, ampliado por Luso e por Lysias, e de terem os seus naturais gloriosamente na pátria obrado ações heroicas, e concorrido fora dela para maiores empresas , já no socorro que deram aos Cartagineses, conduzidos por Sapho, para domar a Mauritânia, já os que acompanharam Aníbal para conquistar a Itália, já concorrendo com  Mirthridates contra Pompeu, e com Pompeu e seus filhos contra César; e de haverem na defesa da própria liberdade feito admiráveis provas de valor com os seus capitães Viriato e Sertório contra os Romanos; e finalmente depois que livres da sujeição dos Suevos, dos Alanos, dos Godos e dos Sarracenos, tendo logrado no seu primeiro rei português o invicto D. Afonso Henriques, e na sua real prole, o suave domínio de treze sucessivos monarcas naturais, se acha na obediência do felicíssimo rei D. Manuel. ` Sebastião da Rocha Pita – História da América Portuguesa (1730)’

A história do Brasil começa antes do próprio descobrimento e ocupação da terra; os portugueses que aqui chegaram, muito ao contrário dos bárbaros, degredados e indesejáveis que pintam, eram homens que traziam consigo toda a expertise de uma Civilização. Naquele momento, em que culminaria na chegada de Cabral à Terra de Santa Cruz, Portugal liderava nas tecnologias de construção e navegação marítimas, já vivia sob um sistema legal e administrativo sofisticado, com uma diplomacia consolidada assim como uma estrutura comercial e econômica diversificada e sedenta por novos empreendimentos. No campo intelectual filosófico temos o papel formador dos Jesuítas, servindo cada um deles como um difusor civilizacional de proporções continentais. Formar é um termo fundamental pois o Brasil não foi conquistado, invadido, não existia entre os habitantes da terra em 1500, no espaço geográfico do Tratado de Tordesilhas e do que seriam os contornos finais do Brasil, uma estrutura uniforme de estado. Eram comunidades dispersas, em constante atrito e que faziam guerra entre si e, muitas vezes, comiam parte das tribos vizinhas em elaborados rituais antropofágicos. Neste contexto a questão da própria humanidade dos povos do novo mundo, algo que vai permear a discussão sobre o tema até os dias de hoje.

A figura do nativo, do chamado Índio Brasileiro, está intrinsicamente ligada ao legado histórico e cultural e da própria percepção, interna e externa, do que se constitui o Brasil. O problema, e centro deste pequeno ensaio, seria o da construção, apropriação e consequente institucionalização do elemento autóctone que habitava o território que hoje conhecemos por Brasil. Com ênfase na metamorfose política que vai aos extremos do bem e do mal; de um ser feroz, limitado, bestial a um exemplo de virtude civilizacional, de convivência equilibrada com o ecossistema, uma prova que o homem em seu ´estado natural´ teria uma boa índole. Gostaria de começar dos primórdios, ou seja, o século XVI e às duas apreensões distintas da figura do nativo, seguindo com a metamorfose Positivista que colocava o índio como um ser pré lógico, passível de uma catequese laica. E terminando com a apropriação e impacto destas idealizações revolucionárias no que veio a ser conhecido como Semana de Arte Moderna de 22 e seu dois fronts culturais, a Antropofagia anti-Vieira[1] que iria embasar a fundação da USP em 1936 e o movimento Pau Brasil que foi o celeiro da Ação Integralista Brasileira.

 

[2]
Uma expressão importantíssima no Manifesto Antropofágico, anti Vieira é a negação da nossa tradição lusitana, ibérica, europeia, ocidental  e especialmente Crista , em prol de uma mitologia revolucionária de um nativo maleável ás necessidades do momento. Sendo intelectualmente proxenetados por uma burguesia que queria transportar o Sena para o Tietê, cujas referências longe de estarem no Brasil pré Cabral estavam nas últimas tendências da Academia Francesa ou do cabaré Moulin Rouge.

As duas abordagens:

 

 

´Entre estes índios se avantajavam uns na destreza do atirar , outros no ânimo de acometer, mas em geral se experimentou em todos desta capitania grande ódio aos contrários e maior fidelidade aos nossos, porque, sendo assim que muito negros de Guiné, e ainda alguns brancos, se meteram com os holandeses, nenhum índio houve que travasse amizade com eles, o que foi muito particular e especial mercê de Deus, indústria também dos nossos Padres, os quais sempre, e agora mais do que nunca e com mais eficácia , os instruíram na fé, intimando-lhes o amor que deviam a Cristo, e lealdade a Sua Majestade: grande bem espiritual e não menor temporal para os moradores deste Brasil, porque sem índios não podem viver nem conservar-se como todos confessam.´ Padre Antônio Vieira – Carta 1624

 

A primeira leva de sacerdotes da Companhia aportou em 1549 no litoral da antiga povoação do Pereira (o antigo donatário, Francisco Pereira Coutinho, foi morto e devorado pelos Tupinambás em 1545), juntamente com o primeiro governador geral Tomé de Souza que trazia em sua frota artesãos, armeiros, engenheiros, colonos e a própria mudança de eixo das Capitanias Hereditárias para a colonização já como uma política de Estado.  Entre os sete padres Jesuítas que fundaram Salvador estava o primeiro líder da ordem no Brasil, o padre Manuel da Nóbrega.

Naquele momento ‘os índios na selva eram livres: Nóbrega procurou que não fosse ofendida a sua liberdade a uns, que tinham sido injustamente cativos, agenciou com o Ouvidor que ela lhes fosse restituída; também achou índios escravos e com eles redobrou de boas maneiras e os instruía de modo particular em catequese apropriada. Os índios tinham os seus costumes: Nóbrega não os contrariou abertamente senão naquilo em que se opunham à religião cristã, a antropofagia e a poligamia; os mais usos não combateu, procurando apenas modera-los, como a inclinação excessiva às bebidas, enquanto tentava fixa-los em aldeias.  Não se preocupou com que os meninos cortassem o cabelo desta forma ou daquela, nem como o modo que cantavam. Sem lhes impor de chofre estas exterioridades, começou a ensina-los a ler e a escrever, a confessa-los por intérprete, a admiti-los na Igreja, como já se fazia antes, junto com os batizados, e desenvolveu o canto e a música para mais os atrair. Adaptação ao secundário, ainda assim não total e nem definitiva, apenas com a intenção de não os espantar de início com radicalismos nem violências psicológicas escusadas[3]. 

 

[4]

Na prática, porém, os eclesiásticos tinham que enfrentar circunstâncias extremas, seja no aprender línguas ainda não codificadas, ou na experiência cotidiana com uma geografia e astronomia desconhecidas, um clima imprevisível, ou mesmo na adaptação de seu instinto e paladar para prover-se do básico de víveres em um ambiente inaudito. Além de sobreviver aos mais vastos perigos que vão das diversas doenças tropicais até tribos canibais pouco receptivas ao diálogo. O massacre ocorrido com a então maior autoridade Eclesiástica do Brasil, o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, e sua comitiva de cerca de noventa pessoas em 1556 foi a gota d´água para uma reação militar do segundo governador geral, Duarte da Costa. Conflito que dizimou os dois lados, com árdua campanha Lusa e que, como em toda guerra, transformava a figura do inimigo em um sinônimo de monstro. E é neste contexto adverso para a sua causa que Nóbrega escreve o seu Magnum opus, o `Diálogo sobre a conversão dos Gentios´, o modelo que vai pautar a questão missionária da Companhia de Jesus e sua inserção nas comunidades do novo mundo.  Tal obra refletia diretamente a Bula do Papa Paulo III, `Sublimis Deus` de 1537, que dizia:

`Nós outros, pois, que ainda que indignos, temos as vezes de Deus na terra, e procuramos com todas as forças achar suas ovelhas, que andam perdidas fora de seu rebanho, pera reduzi-las a ele, pois este é nosso oficio : conhecendo que aqueles mesmos Índios, como verdadeiros homens, não somente são capazes da Fé de Cristo, senão que acodem a ela, correndo com grandissima prontidão, segundo nos consta: e querendo prover nestas cousas de remédio conveniente, com autoridade Apostólica, pelo teor das presentes letras, determinamos, e declaramos, que os ditos Indios, e todas as mais gentes que daqui em diante vierem à notícia dos Cristãos, ainda que estejam fóra da Fé de Cristo, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e que não devem ser reduzidos a servidão. Declarando que os ditos índios, e as demais gentes hão de ser atraídas, e convidadas à dita Fé de Cristo, com a pregação da palavra divina, e com o exemplo de boa vida.[5]

 

´…tendo afirmado que partira de França a fim de empregar todos os meus esforços no incremento do reino de Jesus Cristo, pareceu-me que daria aos homens motivos para me denegrirem e censurarem se me desviasse de meus fins por temor ao trabalho e ao perigo; e como tratava de uma ação em prol de Cristo, tinha a convicção de que Ele me assistiria afinal e tudo terminaria bem. Recobrei animo, portanto, e me devotei inteiramente a levar a cabo a causa que com tanto amor eu empreendera e na qual eu desejava empregar a vida. E parece que só o conseguiria afastando do convívio dos gentios os artesões que comigo trouxera. E refletindo sobre isso, compreendi que não fora sem audiência de Deus que nos temêramos nesses negócios e tudo ocorria em virtude de nos levar o ócio a dar rédeas aos nossos desordenados apetites. ´ carta de Villegnon a Calvino em 31 de março de 1557[6]

Entre os anos de 1555 a 1570 foi estabelecida na Baía do Rio de Janeiro uma colônia francesa de maioria calvinista. Cerca de trezentas pessoas comandadas pelo experiente navegador Nicolas Durand de Villegagnon e com o apoio local dos temidos guerreiros Tamoios tinham a intenção de reivindicar tais terras como um refúgio protestante. O que nos interessa aqui é mais o impacto dos Tamoios na França, pois foram exportados, assim como araras, micos e jacarés, como objetos de curiosidade. Chegando a ensejar o famoso ensaio de Michael Montaigne (1533-1592) ´Dos canibais`, fruto de interações do autor com navegadores e, em especial, com três índios tamoios no porto de Rouen em 1562. Diz ele em suas reflexões:

´A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. [7]

`Não há razão para que a arte sobrepuje em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mãe. Sobrecarregamos de tal modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas invenções, que a abafamos completamente`

´Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las.[8]

Como se vê Montaigne é um dos precursores do método relativista, dando ênfase à importância da `Mãe Natureza´ em sua plenitude em contraposição ao `gosto corrompido` que caracterizaria a sociedade europeia. Tal interpretação era comum no mundo Calvinista e deriva da ideia de ser possível um retorno ao Jardim do Éden em vida. Um lugar de leite e mel, sol e permissividade da qual os índios tamoios eram a prova palpável de sua existência terrena.

 

[9]

Segundo o excelente estudo sobre o período de Afonso Arinos de Mello Franco, `em todo o correr do século dezessete encontramos as ideias mais caras a Montaigne reproduzidas, mais ou menos exatamente, em um sem número de obras de todas as qualidades. Obras com pretensão científica ou de pura ficção, mas que de qualquer maneira, serviam de leito para o curso da torrente ideológica revolucionária, gerada pelo século de Montaigne e que iria encontrar a sua foz no grande e trágico oceano do século de Rousseau.[10]

Além de Montaigne é necessário destacar a influência do pensador florentino Nicolau Maquiavel (1669-1527), responsável por admitir que `os métodos a que o príncipe deve recorrer para se impor podem ser tão cruéis e violentos que se tornam antagônicos “a toda forma de existência não apenas cristã, mas humana. “ O príncipe, em suma, não somente deve arrogar-se a autoridade de Deus, mas faze-lo com plena consciência de que esse Deus é inimigo dos cristãos e da humanidade em geral.[11]

E é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que vai quase dois séculos depois trazer tal conceito para um campo pseudocientífico, casando o relativismo inconsequente de Montaigne com o laicismo religioso de Maquiavel, na sua teoria do Bom Selvagem. O homem, segundo ele, seria bom por natureza, assim como seria livre por natureza, eram às instituições que, negando tal liberdade, os aprisionariam (de forma literal e também metafórica). Nele nós não temos a menção Bíblica do Jardim do Éden, sua premissa é o chamado `Estado de Natureza`. O homem vivia em sintonia com a terra de lá retirando alimento, abrigo e vivendo em uma espécie de utopia cosmológica pré cristã, que seria para Rousseau a verdadeira identidade humana.

A inversão bíblica de que estamos no mundo, mas não somos do mundo é legitimada pela via de uma natureza idílica, que tudo provêm aos homens que vivem em simbiose com a mesma. Certas instituições que aprisionam não é mais que um eufemismo, que o uso do plural quer dar a entender que são várias, mas que, na pratica, ressumem-se ao cristianismo e especialmente a palpável instituição que seria a Igreja de Roma e sua tradição cultural e filosófica. Uma idealização extremada do que seria a vida dos índios tropicais, que no estereótipo de uma Europa com problemas de fome e doenças parecia livre destas chagas. Uma visão de quem via o índio através de uma série de recortes, de livros, de mitos e depoimentos, mas nunca procurou de fato a saber a dinâmica e as complexidades enfrentadas pelos nativos americanos. Quem colocou a mão na massa, vivendo e muitas vezes morrendo com e pelos selvagens eram os mártires e heróis devotos a fé cristã, que não os viam como modelos estáticos a serem estudado, mas como seres humanos que, assim como todos, necessitavam de ouvir a Boa Nova.

Repercussão contemporânea

‘Não é possível haver um movimento revolucionário sem que aja por trás uma teoria revolucionária´

A construção de um pensamento aonde o índio é uma figura representativa de um tipo ideal de civilização é vital para entendermos às raízes de um movimento ecológico que vê a sociedade humana como um ser estranho e nocivo ao planeta. Que coloca uma suposta preservação radical de um ecossistema como o problema mais importante a ser combatido pela humanidade e que para tal fim é capaz de abdicar de sua liberdade na constituição de um poder supra nacional, global, que poderá garantir a preservação da natureza. O alarmismo verde foi e é muitas vezes adotado pela ala revolucionária, o próprio nacionalismo permitido e cultuado por eles não é derivado da apreciação dos valores nacionais, dos feitos, da língua, da alta cultura, da fé, ele é calcado no Impávido Colosso natural, nas florestas, águas, fauna e flora…petróleo, pau-Brasil, ouro, minério, ´na terra que plantando tudo dá´…. como se a enxada trabalhasse sozinha, ou navios se auto projetassem e navegassem por conta própria. Nacionalismo que precisa sempre estar adorando um Bezerro de Ouro sem se dar conta que os Jesuítas nos deram a responsabilidade de guardar `às Tabuas da Lei´.

Continua…

 

[1]Uma expressão importantíssima no Manifesto Antropofágico, anti Vieira é a negação da nossa tradição lusitana, ibérica, europeia, ocidental  e especialmente Crista , em prol de uma mitologia revolucionária de um nativo maleável ás necessidades do momento. Sendo intelectualmente proxenetados por uma burguesia que queria transportar o Sena para o Tietê, cujas referências longe de estarem no Brasil pré Cabral estavam nas últimas tendências da Academia Francesa ou do cabaré Moulin Rouge.

[2] https://mundogeo.com/wp-content/uploads/2014/08/Estudo-sugere-equ%C3%ADvoco-na-representa%C3%A7%C3%A3o-dos-limites-das-capitanias-heredit%C3%A1rias-358×600.jpg

[3] Leite, serafim

[4] Diogo de Mendonça Furtado e o padre jesuíta Domingo Coinia, diante de um grupo de clérigos e soldados em São Salvador da Bahia de Todos os Santos In https://library.brown.edu/create/fivecenturiesofchange/chapters/chapter-2/the-jesuits/

[5] https://www.papalencyclicals.net/paul03/p3subli.htm

[6] https://cpaj.mackenzie.br/wp-content/uploads/2020/01/5-O-Brasil-na-correspond%C3%AAncia-de-Calvino-Frans-Leonard-Schalkwijk.pdf

[7] Montaigne, Michel ´Dos Canibais` Alameda Editorial , 2009.

[8] Montaigne ´op.cit`

[9] Castelo aonde nasceu, viveu e morreu Michael de Montaigne, França.

[10] Mello Franco, Afonso Arinos `O índio Brasileiro e a Revolução Francesa- As Origens Brasileiras da Teoria da Bondade Natural` Livraria José Olympio editora, 1937.

[11] Carvalho, Olavo `Maquiavel ou a Confusão Demoníaca` Vide Editorial, 2020, segunda edição.

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