Embora Orwell seja mais lembrado pelas suas críticas ao autoritarismo e ao totalitarismo, é essencial compreender que ele foi, acima de tudo, um socialista empenhado.

George Orwell, um dos escritores políticos mais influentes do século XX, é amplamente conhecido por suas críticas contundentes aos regimes totalitários em seus romances Animal Farm e 1984. O retrato de Orwell sobre o controle estatal, a propaganda e a manipulação da verdade repercutiu entre os leitores de todo o espectro político. No entanto, a ideologia política pessoal de Orwell e suas críticas ao totalitarismo são muito mais complexas do que se costuma reconhecer. Em vez de ser um observador passivo ou um simples oponente da ditadura, Orwell estava profundamente envolvido nos movimentos socialistas de sua época, alinhando-se – acidental ou intencionalmente – aos círculos trotskistas. Orwell era uma voz poderosa da esquerda, apesar de ser um alvo na guerra de facções socialistas.

A ideologia política de Orwell e seu alinhamento com o trotskismo

Embora Orwell seja mais lembrado por suas críticas ao autoritarismo e ao totalitarismo, é essencial entender que ele foi, antes de tudo, um socialista convicto. Embora nunca tenha se afiliado formalmente a um partido político, Orwell foi um participante ativo e expressivo do movimento socialista. Isso pode surpreender aqueles que associam Orwell apenas às suas críticas à tirania do Estado. Na verdade, o desdém de Orwell pela ditadura de esquerda não se estendia a todas as formas de socialismo, e seus escritos políticos muitas vezes refletem uma crítica interna aos regimes socialistas, em vez de uma rejeição total aos princípios socialistas.

A crítica de Orwell ao totalitarismo stalinista é melhor compreendida como parte de uma luta ideológica mais ampla dentro do próprio movimento socialista. Em particular, as críticas de Orwell ecoam as opiniões de Leon Trotsky, uma figura importante no início da história soviética e um dos mais proeminentes críticos de Stalin. Trotsky foi um marxista revolucionário que desempenhou um papel crucial na Revolução Russa de 1917 e na guerra civil subsequente. Ele foi fundamental na fundação do Exército Vermelho, que garantiu a vitória bolchevique sobre o Exército Branco anticomunista durante a Guerra Civil Russa. No entanto, a teoria de Trotsky sobre a “revolução permanente” o colocou em desacordo com Stalin, que defendia a consolidação do socialismo em um único país – a União Soviética – antes de iniciar uma revolução mundial. A insistência de Trotsky em que o socialismo deveria se espalhar pelo mundo o tornou uma figura suspeita na hierarquia soviética. No início da década de 1920, Stalin consolidou o poder, levando Trotsky ao exílio em 1929. Apesar disso, Trotsky continuou a se opor às políticas de Stalin no exterior, especialmente por meio de seus escritos.

A crítica de Trotsky ao stalinismo incluía acusações de que Stalin havia traído os objetivos originais da Revolução Russa. De acordo com Trotsky, Stálin havia estabelecido uma ditadura burocrática em vez de uma ditadura do proletariado, como previa a teoria marxista. Ele argumentou que o regime de Stalin não representava o domínio da classe trabalhadora, mas a ascensão de uma elite burocrática privilegiada, uma “nomenklatura”, que dominava a sociedade soviética. Além disso, Trotsky acusou Stalin de promover o culto à personalidade, suprimir a oposição política e trair os princípios internacionalistas do socialismo.

Orwell e a Guerra Civil Espanhola

Em 1936, quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, Orwell tomou a fatídica decisão de se juntar ao lado republicano, lutando contra as forças nacionalistas de Francisco Franco. O que torna o envolvimento de Orwell particularmente significativo é sua escolha de facção. Em vez de se alinhar com as Brigadas Internacionais, Orwell se juntou ao Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), uma facção marxista fortemente influenciada pelas ideias trotskistas. A decisão de Orwell de lutar com o POUM diz muito sobre suas tendências políticas durante esse período.

A Guerra Civil Espanhola não foi apenas uma batalha entre republicanos e nacionalistas; foi também um campo de batalha ideológico para várias facções da esquerda internacional. O lado republicano era uma coalizão de vários grupos socialistas, comunistas e anarquistas. O POUM, com o qual Orwell lutou, estava alinhado com facções trotskistas e anti-stalinistas, enquanto o Partido Comunista da Espanha, apoiado por Stalin, adotou uma linha dura contra qualquer grupo de esquerda que não aderisse às políticas de Moscou. Como Orwell escreveria mais tarde em Homage to Catalonia, sua experiência em primeira mão na Espanha influenciou profundamente sua compreensão da brutal dinâmica de poder dentro da esquerda. Essa dinâmica reflete o que os biólogos chamam de “luta intraespecífica”, na qual os membros da mesma espécie (ou movimento político, nesse caso) competem mais agressivamente entre si pelo domínio.

Enquanto Orwell lutava contra os nacionalistas de Franco no front, os agentes de Stalin realizavam um expurgo das facções trotskistas e anarquistas nos bastidores. A NKVD, a polícia secreta de Stalin, foi enviada à Espanha para suprimir todos os elementos de esquerda não bolcheviques dentro das forças republicanas. Isso incluiu o POUM, que acabou sendo banido pela liderança republicana apoiada por Stalin. Agentes do NKVD sequestraram e assassinaram o líder do POUM, Andreu Nin. O próprio Orwell escapou por pouco de ser assassinado pela NKVD e fugiu clandestinamente para a Inglaterra. Essas experiências aprofundaram sua desilusão com o stalinismo e reforçaram sua crença de que o regime soviético havia traído os ideais originais do socialismo.

Resposta literária de Orwell: Animal Farm e 1984

As experiências de Orwell na Espanha e sua compreensão dos conflitos internos do socialismo encontraram sua expressão mais potente em suas obras literárias. Animal Farm, publicado em 1945, é considerado uma alegoria da Revolução Russa e da ascensão do stalinismo. Como resultado, Orwell teve dificuldade em encontrar uma editora disposta a aceitar o livro, pois muitos temiam as consequências políticas de criticar Stalin na época da Segunda Guerra Mundial. No romance, Orwell retrata a traição dos ideais revolucionários por meio da história de um grupo de animais de fazenda que derrubam seu dono humano, apenas para ver seus novos líderes – os porcos – se tornarem tão opressores quanto os humanos que substituíram. O porco Napoleão, que representa Stalin, manipula os outros animais, consolidando gradualmente o poder e reescrevendo a história da revolução para justificar sua ditadura.

O que muitas vezes é ignorado nas discussões sobre Animal Farm é o papel das ideias de Trotsky na formação da narrativa de Orwell. O personagem Bola de Neve – que é expulso da fazenda por Napoleão – representa Trotsky. Bola de Neve, assim como Trotsky, é retratado como uma figura idealista, mas, em última análise, impotente, que é demonizada pelo regime no poder. A descrição de Orwell do exílio de Snowball e a subsequente demonização de seu legado espelham a expulsão e o assassinato de Trotsky na vida real pelas mãos dos agentes de Stalin em 1940.

Nesse sentido, Animal Farm pode ser lido como uma interpretação artística de The Revolution Betrayed (A Revolução Traída) de Trotsky (uma crítica de esquerda ao stalinismo), em que Orwell usa a fábula para ilustrar a traição mais ampla dos ideais socialistas pelo regime de Stalin. No entanto, Orwell não percebeu que, se Trotsky tivesse sido o líder da União Soviética, seu regime poderia ter sido ainda mais cruel do que o que Stalin construiu. A ditadura do proletariado não é melhor do que a ditadura do partido.

O último romance de Orwell, 1984, estende sua crítica ao totalitarismo para além do stalinismo, abordando as implicações mais amplas do controle estatal, da vigilância e da manipulação da verdade. Embora 1984 não se concentre explicitamente na ideologia socialista, sua descrição de um mundo distópico governado por um único partido – onde a dissidência é brutalmente reprimida e a história é constantemente reescrita – baseia-se fortemente na ideia de Orwell sobre o regime stalinista. A famosa frase “O Grande Irmão está de olho em você” tornou-se sinônimo de vigilância estatal e autoritarismo, mas no contexto da trajetória política de Orwell, ela também serve como um alerta mais amplo sobre os perigos do poder sem controle, independentemente da orientação ideológica.

O dilema de Orwell: os limites da crítica socialista

Apesar de suas críticas contundentes ao stalinismo, Orwell permaneceu socialista até o fim de sua vida. Sua desilusão com a União Soviética não se estendeu ao socialismo como um todo. Na verdade, Orwell acreditava que o socialismo ainda poderia ser a solução para os problemas sociais e econômicos que o mundo enfrentava, desde que não caísse nas armadilhas do autoritarismo e da burocracia. Isso apresenta um paradoxo fundamental no pensamento de Orwell: embora ele estivesse totalmente ciente dos perigos do totalitarismo produzido pelas várias vertentes do socialismo, ele ainda defendia um utopismo geral que, na prática, muitas vezes levava aos mesmos abusos de poder que ele criticava.

Orwell não conseguia entender que, qualquer que fosse o sabor específico do socialismo – trotskista, stalinista ou outro -, com o tempo, ele inevitavelmente levaria ao mesmo resultado: estagnação econômica, decadência moral e repressão. Sua profunda crença no potencial do socialismo, especialmente em sua forma democrática, cegou-o para as tendências autoritárias inerentes aos movimentos socialistas.

O legado de Orwell

O legado de George Orwell como escritor e pensador político é marcado por seu compromisso com os ideais socialistas e sua feroz oposição ao totalitarismo. Seu compromisso com as ideias trotskistas, suas experiências na Guerra Civil Espanhola e suas respostas literárias ao stalinismo revelam uma compreensão diferenciada das complexidades do movimento socialista. Embora as críticas de Orwell à tirania política permaneçam profundamente relevantes até hoje, sua crença contínua no socialismo – mesmo depois de testemunhar seus fracassos – ressalta as complexidades de seu pensamento. Portanto, é um tanto estranho recorrer à crítica de um socialista aos próprios regimes que o socialismo sistematicamente produz.

Este artigo foi publicado originalmente pelo  Mises Institute .