Lembro com horror daqueles anos de chumbo da ditadura militar, dominados por milicos malfeitores que, para encobrir seus crimes de terrorismo, abateram de forma suave, mas férrea, a brilhante democracia em que vivíamos. A democracia dos anos dourados em que éramos todos felizes, o Brasil crescia enormemente, não havia inflação nem corrupção. Pois não é que os milicos nos convenceram que vivíamos num mundo mau e, sub-repticiamente foram tomando o aparelho do Estado até que finalmente tomaram o poder? Prometendo que “um mundo melhor é possível”, nos tiraram de um sonho dourado e nos impuseram um pesadelo infernal de chumbo.
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Pesadelo de Presidentes corruptos, cada qual querendo esticar mais o seu mandato, duplicar, triplicar ou torna-lo infinito. Se apossaram do Tesouro Nacional para se locupletarem com soldos nababescos – um General ganhava mais do que um alto executivo de Wall Street! E se não bastasse, ainda transformaram a política, antes sadia e impoluta, num balcão de negócios onde seus familiares e amigos faziam transações escusas com vis capitalistas exploradores. Ficavam por aí? Não, ainda processaram os antigos democratas, que os combateram enquanto puderam até anistiá-los de seus horrendos crimes, e exigiram vultosas indenizações por “crimes da democracia”. Criaram até um Conselho de Defesa da Pessoa Humana – aos que ficarem pasmo respondo: humanos todos éramos; pessoas somente eles, o resto eram in-pessoas. Mesmo que tivessem matado e estripado cidadãos inocentes – até estrangeiros suspeitos de pertencer aos famigerados órgãos inteligência das democracias populares que aqui se encontravam trabalhando legitimamente pela causa do povo – e perdido apenas alguns dias num presídio, conseguiam polpudas pensões retroativas vitalícias.
Os mandatos só não eram mais esticados porque havia outras quadrilhas, que chamavam de partidos, que também queriam tirar suas lasquinhas. E que lascas! Os Presidentes, e suas famílias, enriqueciam no poder, tiravam férias de inverno na Suíça e de verão no Tahiti ou outros pontos exóticos. Cada um deu várias voltas ao mundo em viagens ditas “oficiais”. Filhos e amigos de Presidentes faziam negociatas escusas e seus papais diziam não saber de nada. Aliás, nunca sabiam de nada! Compraram aviões nababescos para seu transporte pessoal enquanto deixaram a aviação comercial à míngua num imenso caos pontilhado de acidentes fatais.
Para melhor extorquir a população inventaram um tal de Leão – pelo nome só pode ser coisa de milico mesmo! – que dotou cada cidadão de um número mágico que tinha que ser apresentado em todos os lugares, menos nos motéis por razões óbvias! Sem ele, nada feito! Uma cervejinha no almoço? Nem pensar, cana na certa se fosse dirigir. Fumar? Em lugar nenhum. Até na nossa dieta mandavam: coma isto, não coma aquilo. Eram tão metidos a bonzinhos que diziam querer cuidar da nossa saúde. Se achassem que fumar era bom obrigariam não fumantes a fumar; a população tão amedrontada e dócil toparia a ainda acharia maravilhoso! Proibiam propaganda das mercadorias censuradas, mas deixavam nossos filhos assistirem a uma programação de televisão eivada de sexo – para todos os gostos, óbvio! – explícito, aberrações, inversão de valores. Pretendiam, claro, acabar com os preconceitos plantados há milênios nas cabecinhas maldosas. Viva as perversões – abaixo o hambúrguer!
A educação foi pervertida num ritual de doutrinação fascista com estudos aprofundados dos heróis que cultivavam: Adolf Hitler, Mussolini, Hiroíto, Franco e Salazar. Estimularam a ampla distribuição entre os jovens de camisetas com o retrato deles, principalmente Hitler, o Supremo Herói, que dizia que “hay que endurecer com los judíos, pero sem perder la ternura jamás”. E nós acreditávamos nos seus heroísmos, de tanto entupimento diário de nossas mentes. Se aliavam e financiavam fazendeiros cruéis que invadiam as terras dos pequenos agricultores, destruíam suas plantações e surrupiavam seus bens e o que não podiam levar tocavam fogo.
A saúde pública foi totalmente destruída, a segurança nem se fala, não se podia sair às ruas que gangues de assaltantes nos roubavam tudo, até a vida. Quando não eram eles, éramos achacados por policiais corruptos exigindo propina para tudo. Usávamos três bolsos: um para o ladrão, outro para policiais corruptos e um terceiro para o nosso – se sobrasse algum! Proibiam que usássemos armas para nos defendermos e nos controlavam através de radares por toda a cidade! E nos proibiam de viajar para a maravilhosa democracia de Cuba, certamente com medo que nos encantássemos com os direitos de que gozavam os cubanos e nos eram negados e com a dieta rica em proteínas de lá. Poderíamos ficar tentados a seguir sua sugestão: Brasil: Ame-o ou Deixe-o! E ninguém saiu, burros que éramos. A juventude esclarecida atual não pode nem imaginar uma coisa dessas!
Por tudo isto, eram vaiados cada vez que iam a estádios esportivos a ponto de desistirem de freqüentá-los. Era a forma que restava para protestar.
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Mas eis que surgiram os heróicos Cavaleiros da Esperança vindos d’além mar! O sol da Liberdade em raios fúlgidos surgiu no céu da Pátria fornecendo a luz com que podíamos varrer as sombras do obscurantismo. Raiou a Liberdade no horizonte do Brasil! Estávamos livres! Retorno dos heróis da Pátria, Nova República, Constituição Cidadã! Le jour de gloire c’est arrivé!
Hoje temos educação e saúde quase perfeitas, nada mais de doutrinação nas escolas – com exceção, é claro de ensinar a juventude a nunca mais acalentar aqueles dias obscuros. Acabou a corrupção, instalou-se a Ética pelo partido mais ético do mundo. Como nunca antes neste País gozamos de total liberdade, comemos o que queremos. O campo está em paz. As classes sociais e as raças convivem magnificamente bem. Restaurado o Estado de Direito e ainda por cima Democrático, podemos decidir em plena rua qualquer coisa. Nossa elite dirigente, a famosa zelite, é constituída finalmente de homens ínclitos que se dedicam de corpo e alma ao bem do povo. Não mais roubam, os Presidentes acatam perfeitamente a Constituição e, humildemente, embora ovacionados nos estádios, não tentam esticar mandatos. Viajam como o comum dos mortais – finalmente o caos aéreo acabou e pode-se viajar com absoluta segurança. Saem pobres do governo e vão viver uma vida pacata admirados pelos vizinhos e quando adoecerem vão para os hospitais públicos.
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Ou será…….?