Folha de S. Paulo, 30 de maio de 1971.
Cumpro hoje uma antiga promessa. Com efeito, asseverei aos leitores da “Folha de S. Paulo” que lhes daria oportunamente uma coleção de textos pontifícios referentes à propriedade privada. O torvelinho dos dias em que vivemos conduziu-me, logo em seguida, a outros temas. Mas hoje tenho a satisfação de fazer rebrilhar, expondo-os à luz da publicidade, estes ensinamentos áureos… aliás tão omitidos em certas publicações católicas.
A propriedade privada vai sendo apresentada, cada vez mais — nestes tempos de hipertrofia do social — como um privilégio antipático e anacrônico, ao qual só se aferraram alguns egoístas, insensíveis à miséria que em torno deles existe.
— É este o pensamento da Igreja? — Pergunta de capital importância para nosso público, constituído de uma esmagadora maioria de católicos.
É para responder a tais perguntas pela própria voz dos Romanos Pontífices, que aqui dou a público algo do que eles ensinaram sobre a matéria.
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Antes de tudo, uma questão que se relaciona de perto com o tema. Falei de hipertrofia do social. A expressão terá suscitado, sem dúvida, arrepios em alguns leitores. Se o social corresponde ao interesse geral, poderá haver aí hipertrofia do social?
Sim, respondo. E uma hipertrofia muito nociva ao próprio interesse geral. Os Romanos Pontífices a chamaram socialismo.
Assim, ela assumiu “a proteção do indivíduo e da família, frente à corrente que ameaça arrastar a uma socialização total, em cujo fim se tornaria pavorosa realidade a imagem terrificante do “Leviatã”. A Igreja travará esta luta até o extremo, pois aqui se trata de valores supremos: a dignidade do homem e a salvação da alma” (Pio XII, Radiomensagem ao “Katholikentag” de Viena, de 14 de setembro de 1952 — “Discorsi e Radiomessaggi”, vol. XIV, pág. 314).
Mais ainda. Pio XII vê na socialização total, não só uma catástrofe geral, mas uma manobra de alguns privilegiados, feita contra o bem comum: “Atribuindo a todo o povo a tarefa própria, se bem que parcial, de ordenar a economia futura, estamos muito longe de admitir que esse encargo deva ser confiado ao Estado como tal. Entretanto, ao observar o andamento de certos congressos, mesmo católicos, em matérias econômicas e sociais, pode-se notar uma tendência sempre crescente para invocar a intervenção do Estado, de modo que se tem por vezes como que a impressão de que esse é o único expediente imaginável. Ora, sem dúvida alguma, segundo a doutrina social da Igreja, o Estado tem seu papel próprio na ordenação da vida social. Para desempenhar esse papel, deve mesmo ser forte e ter autoridade. Mas os que invocam continuamente e lançam sobre ele toda a responsabilidade o conduzem à ruína e fazem mesmo o jogo de certos poderosos grupos interessados. A conclusão é que dessa forma toda responsabilidade pessoal nas coisas públicas vem a cessar, e que se alguém fala dos deveres ou das negligências do Estado, refere-se aos deveres ou faltas de grupos anônimos, entre os quais, naturalmente, não cogita de contar-se a si próprio” (Pio XII, Discurso de 7 de março de 1957 ao VII Congresso da União Cristã dos Chefes de Empresas e Dirigentes da Itália — UCID — “Discorsi e Radiomessaggi”, n.º XIX, pag. 30).
E, de seu lado, Leão XIII mostra que lutar em defesa da propriedade particular é favorecer os interesses mais fundamentais do povo: “[…] a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando a tranqüilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular” (Leão XIII, Encíclica “Rerum Novarum”, de 15 de maio de 1891 — “Editora Vozes”, Petrópolis, pág. 12).
A igualdade socialista, na qual tanto vêem a libertação dos pobres, Leão XIII a denunciou como causa de miséria geral: “Assim, substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural e quebram os laços da família. Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas conseqüências: a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade da nudez, na indigência e na miséria (Leão XIII, Encíclica “Rerum Novarum”, de 15 de maio de 1891 — “Editora Vozes”, Petrópolis, págs. 11 e 12). Dir-se-ia que o celebrado Pontífice antevira com olhar inspirado os fracassos econômicos de Cuba e a miséria dos operários que se insurgiram em Gdansk e outras cidades da Polônia.
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E vamos agora à propriedade privada.
— Quais as origens desta?
— Uma delas é o próprio salário do trabalhador. Negar a propriedade é negar o salário, e reduzir assim o trabalhador a escravo. Ouçamos a tal respeito Leão XIII: “[…] como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador é conquistar um bem que lhe pertencerá como coisa própria. Porque, se ele põe à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida; e espera do seu trabalho, não só direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso a usar deste como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artífice com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito de propriedade mobiliária e imobiliária? (Leão XIII, Encíclica “Rerum Novarum”, de 15 de maio de 1891 — “Editora Vozes”, Petrópolis, págs. 5 e 6).
Outra forma porque se constitui legitimamente a propriedade é a ocupação das coisas sem dono. A tal respeito, leiamos Pio XI: “Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono […] De fato, não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono” (Pio XI, Encíclica “Quadragesimo anno”, de 15 de maio de 1931 — “Editora Vozes Ltda.”, Petrópolis, págs. 21-22).
Em conseqüência, também da terra pode o homem tornar-se legitimamente dono. É o que nos ensina Leão XIII: “O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas ações; também, sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da Providência Divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue que deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre fecundos” (Leão XIII, Encíclica “Rerum Novarum”, de 15 de maio de 1891 — “Editora Vozes”, Petrópolis, pág. 7).
Mas estas considerações já me levaram um tanto longe. E os textos citados oferecem matéria mais do que suficiente para reflexão.
Fico, pois hoje, por aqui. Em ocasião oportuna, talvez volte a ela.