(Recentemente)… Surgiu um fenômeno, desconhecido pela antiguidade, que permeia nossa sociedade moderna tão completamente que sua onipresença quase não deixa lugar para ser examinado: a proibição do questionar… Confrontamos-nos com pessoas que sabem muito bem, e porque, suas opiniões não se sustentam frente à análise crítica, que fazem da proibição do exame de suas premissas parte de seu dogma…. As perguntas dos “seres individuais” são eliminadas pelo ukase do especulador, que não permitirá que suas construções sejam perturbadasEric Voegelin, Science, Politics and Gnosticism

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(Quando Alice questiona o uso de certas palavras, Humpty Dumpty responde, com desdém): “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu escolhi como seu significado — nem mais, nem menos”. Alice retruca: “A questão é se você PODE fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas”. Humpty Dumpty: “A questão é quem deve ser o mestre — isto é tudo!”Lewis Carroll, Through the looking Glass

Num artigo anterior abordei o debate sobre o aborto apresentando alguns fatos embriológicos sobre a vida intra-uterina para demonstrar que o feto já é um ser humano desde a fecundação, a fertilização do óvulo pelo espermatozóide. Parti deste ponto e agora retorno a ele, porém para recuar um pouco mais no tempo: até o momento em que se formam as duas células presentes na fecundação. Para isto peço aos leitores leigos condescendência para alguns nomes científicos com os quais não estão familiarizados, mas, sem entendê-los, é impossível compreender os primórdios de nossas existências.

Como este não é um texto de embriologia [[i]], mas inserido no atual debate a respeito do aborto, é preciso delimitar três campos específicos quase sempre confundidos, gerando erros muito graves. Como dizia Aristóteles: um pequeno erro no início leva a uma multidão de erros no final (De Coelo). Geralmente intromete-se a “ciência” em campos nos quais nada tem a dizer, levando a “conclusões científicas” equivocadas.

1. Quando começa a vida

2. Quando começa a existir um ser humano

3. Quando se reconhece a existência de uma pessoa

A ciência tem algo a dizer sobre o primeiro; tudo sobre o segundo; e nada sobre o terceiro. Como escrevo do ponto de vista científico limitar-me-ei aos comentários pertinentes.

1. Quando começa a vida?

A ciência não vai além de dizer que, em algum momento da evolução do universo, deu-se uma combinação especial de aminoácidos especiais, o DNA (ácido desoxirribonucléico) que fez surgir um fenômeno até então inexistente. O resto é terreno exclusivo da filosofia e da religião. Como a discussão se prende mais a quando se inicia a vida de cada ser humano, repito as minhas palavras no artigo citado:

Um ponto que tende a aproximar as teorias científicas das religiões é que, hoje, não se considera que o processo vital sofra descontinuidade, isto é, que a vida recomece a cada novo ser. Acredita-se que a vida teve um impulso inicial – sopro vital, divino – e passou a fluir constantemente de uns seres para outros. Pode-se dizer que a vida, após o impulso inicial continua fluindo porque os genes se recusam a morrer e se perpetuam neste fluir. As células que conduzem os genes, o espermatozóide e o óvulo, são obviamente células vivas e, portanto a vida se continua desde o momento da fecundação.

Espanta-me que teóricos e articulistas pró-vida se prendam a discussões bizantinas a respeito de quando começa a vida. Ora, se pai e mãe são seres vivos e as células reprodutoras também, como pode a união de duas delas criar uma descontinuidade no processo vital? O que existiria, então, nesta descontinuidade? Morte? Estado nem morte nem vida? Esta é uma discussão inútil derivada da confusão entre os campos 1 e 2, que será examinado a seguir.

2. Quando começa a existir um ser humano?

O organismo humano possui diferentes tipos de células para diferentes atividades. P. ex., neurônios para transmitir os impulsos elétricos; o parênquima pulmonar com células que formam os alvéolos, destinados às trocas de oxigênio e CO2 no sangue; células gástricas que secretam ácido clorídrico; etc. Um caso especial são as células reprodutoras, espermatozóides e óvulos, chamadas gametos. Estudemos como elas se formam e quais as diferenças entre as femininas e as masculinas.

GAMETOGÊNESE

Denomina-se gametogênese o processo pelo qual as células sexuais primitivas evoluem para gametos sexuais maduros: o espermatozóide no homem (espermatogênese) e os oócitos definitivos (óvulos) nas mulheres (oogênese). Estes dois processos se dão de forma diferente no aspecto temporal. Antes, porém, é necessário esclarecer que as células humanas possuem 46 cromossomos [[ii]], sendo esta uma característica que as diferem de quaisquer outros seres vivosAdiante veremos porque isto é fundamental.

ESPERMATOGÊNESE

Inicia-se logo após a puberdade e continua até a velhice. Antes da puberdade as células chamadas espermatogônias permanecem inativas. Como os testículos além de produzirem tais células também produzem um hormônio chamado testosterona esta age incrementando o número das células e algumas são ativadas e amadurecem, vindo a se chamar espermatócitos primários. Através do processo de maturação que reduz o número de cromossomos à metade (23) tornam-se secundários, e espermátides que serão convertidos finalmente nos espermatozóides.

ESPERMATOGÔNIAS–àESPERMATÓCITOS 1 e 2–àESPERMÁTIDES–à ESPERMATOZÓIDES

43 CROMOSSOMOS                                           23 CROMOSSOMOS

OOGÊNESE

Inicia-se ainda no período fetal e aos cinco meses de gestação o feto feminino já conta com o número máximo de oócitos primários: 7 milhões. Não mais haverá formação de novos oócitos. No nascimento permanecem apenas de 700.000 a 2 milhões, que na puberdade se reduzem a 400.000, agora plenamente maturados: oócitos definitivos. Estes é que são liberados mensalmente nos períodos menstruais. Note-se que estas células permanecem com 46 cromossomos e, ao contrário das masculinas, passarão a contar com apenas 23 cromossomos somente quando e se forem fertilizadas, por meio do processo de meiose – divisão celular na qual a célula é dividida em duas e cada célula nova possui a metade dos cromossomos [[iii]] da célula-mãe. Não fertilizadas são expelidas com os 46 cromossomos na menstruação.

OOGÔNIAS–à[5MESES]–àOÓCITOSPRIMÁRIOS–à[PUBERDADE]–àOÓCITOS SECUNDÁRIOS

43 CROMOSSOMOS

FERTILIZAÇÃO

fertilização começa quando um espermatozóide entra em contato com um oócito secundário (óvulo), geralmente na trompa de Falópio, e termina pela mesclagem dos cromossomos paternos e maternos que então prossegue seu caminho até a nidação no endométrio (camada interna do útero, que já começa a se preparar para receber o novo ser). O oócito sofre o processo de meiose, perde 23 cromossomos e os restantes se interpenetram aos cromossomos paternos formando uma nova célula, zigoto, ou embrião unicelular, com 46 cromossomos, portanto já um ser humano, que passará a se dividir não mais por meiose, mas por mitose (ver nota 3).

Um dos mitos mais corrente é que esta célula seria apenas um ovo, ou óvulo fecundado. Ora, mulheres – ou qualquer animal que se reproduza por meios similares – não são aves nem répteis cuja fecundação se dá num local chamado cloaca e o ovo quando maduro é expelido para prosseguir a formação através de métodos de aquecimento exteriores – diz-se ‘chocar’ um ovo. Também não formam placenta, pois o ‘feto’ não precisa de alimentação materna usando os nutrientes do ovo até que possa romper a casca. O zigoto além de microscópico morreria se expulso do útero materno. O termo ‘óvulo fecundado’ é mais enganador ainda, pois existe um óvulo em processo de fecundação, tão logo este termine já é um novo ente. Nem óvulo nem espermatozóide: um novo ser humano. Portanto, usar estes termos é fazer como Humpty Dumpty: dar significados falsos a esta fase do desenvolvimento humano para ter o poder de extingui-lo sem culpa.

Cientificamente, ocorre na fertilização uma mudança radical de simples partes de dois seres humanos numa nova existência genética, num novo ser completo em si mesmo. Espermatozóide e óvulo cessam de existir, se mesclam num novo ser humano: o zigoto. Este ser humano unicelular imediatamente passa a produzir proteínas e enzimas especificamente humanas e geneticamente dirigem e comandam seu crescimento e desenvolvimento, diferentemente da crença falaciosa de que é a mãe que determina estes processos. Os gametos, em si mesmos, não produzem proteínas e enzimas humanas, pois são células com a metade apenas dos cromossomos necessários, não são indivíduos, são somente partes que potencialmente produzirão um ser humano, são seres in potentia.  Já o zigoto é um ser completo em si mesmo e deve ser encarado como a primeira fase de um ser que nada mais pode ser senão um ser humano. O zigoto não é um ser in potentia, é um ser plenamente formado.

A vida pré-natal é, por conveniência, dividida em duas partes sucessivas: embrionária fetal. A primeira ocupa as primeiras oito semanas e daí em diante até o nascimento segue-se a fase fetal. O desenvolvimento receberá nomes apropriados às novas fases pelas quais passará: mórula (aproximadamente quatro dias), blástula (5-7 dias), embrião bi-laminar (segunda semana), embrião (segunda semana), embrião tri-laminar (terceira semana). Seguir-se-ão novas fases de desenvolvimento: feto, nascituro, bebê, criança, púbere, adolescente, adulto, idoso. Foi proposital a colocação aqui desta série para mostrar que todas são fases de desenvolvimento de um mesmo ser.

Portanto, o produto da fertilização não é apenas uma bolha disforme, um amontoado de células, nem uma peça de tecidos maternos.

SEXO

Alega-se que o zigoto é um ser assexuado. A controvérsia aqui, além do debate sobre o aborto, se estende para o debate sobre sexualidade. Para justificar o ‘direito de escolher’ o sexo, como se fosse uma opção e não um determinismo genético incontornável, a palavra sexo vem sendo abolida e substituída por ‘gênero’. Da mesma forma que o aborto é considerado um ‘direito de escolha’ da mulher, o gênero também seria um ‘direito de escolha’ de todos os seres humanos. Uma falácia pseudo-científica das mais difundidas hoje em dia é que alguns nascem heterossexuais e outros homossexuais ou até mesmo formas mais aberrantes, como zoofilia, pedofilia e sei lá quantas mais.

O fato científico é que o produto da fertilização já é um menino ou uma menina, dependendo do tipo de espermatozóide que fertilize o óvulo: se possui 22 cromossomos autossômicos (não sexuais) e dois cromossomos X será uma menina; se possuir 22 autossômicos um X e um Y será um menino. As características sexuais futuras serão determinadas por este fator genético. Não há terceira alternativa!

USO DE CÉLULAS TRONCO EMBRIONÁRIAS

Esta é outra controvérsia que envolve um número muito grande de falácias pseudo-científicas. A principal é a invenção de uma fase de desenvolvimento que já provei acima que não existe: a fase pré-embrionária que se estenderia até o 14° dia após a fertilização sendo, portanto, moralmente justificável usar tais células para pesquisa experimental, para tratamento médico, abortadas ou doadas. Não discuto o aspecto moral, pois estou restrito ao ponto de vista científico. E não há nada cientificamente que comprove a existência de tal fase sendo, portanto, uma criação moral artificial, uma racionalização para justificar o uso destas células.

Esta idéia surgiu em 1979, nos escritos do teólogo Jesuíta – note-se, não um cientista – Richard McCormick no seu trabalho como membro do Ethics Advisory Board do Departamento de Saúde, Educação e Bem Estar Social dos EUA e do biólogo em desenvolvimento de rãs – note-se rãs, não seres humanos – Cliffrord Grobstein em seu artigo para a Scientific American External Human Fertilization (1979) e no clássico livro Science and the Unborn: Choosing Human Futures, de 1988. Em 1984, na Inglaterra, o British Warnock Committee também passou a usá-lo. Desde então o termo ‘pré-embrionário’ vem sendo usado por filósofos, bio-eticistas, advogados e teólogos.

O que não é plenamente divulgado é que tanto os autores americanos quanto os britânicos admitem que o limite de 14 dias é arbitrário e poderá ser mudado de acordo com as necessidades. Quais necessidades? Um cientista diria que um determinado limite comprovado poderá ser mudado se cientificamente refutado por pesquisa mais profunda, jamais por necessidade. Por que tais necessidades não são explicitadas?  Pode-se supor que se os embriões com esta idade não forem viáveis para as pesquisas muda-se para 28 dias ou qualquer outra data aleatoriamente.

Outra falácia relacionada com esta diz que a gravidez só é iniciada com a nidação do zigoto no endométrio. Obviamente esta idéia serve para acomodar o conceito de gravidez com a fertilização in vitro, onde a fertilização se dá numa Placa de Petri [[iv]] e só então introduzido no útero para nidar. Obviamente, se o embrião não está dentro do corpo da mulher esta não está grávida. Mas esta situação artificial não pode substituir o conceito tradicional de gravidez normal.

3. Quando se reconhece a existência de uma pessoa?

Esta é uma discussão que não envolve diretamente a ciência, mas pertence à teologia, à filosofia e ao direito. Entretanto muito se tem abusado de conhecimentos supostamente científicos para defender uma clivagem entre ser humano e pessoa.

Uma delas é que o cérebro humano – a sede da racionalidade e da sensibilidade – só estará plenamente desenvolvido durante a juventude. Mas a conseqüência lógica de basear a existência da pessoa neste fator excluiria a seguinte lista de seres humanos da condição de pessoa: os doentes mentais, os retardados, os portadores de Alzheimer ou Parkinson, os comatosos, etc. E eles não deveriam ter os mesmos direitos éticos e legais atribuídos às pessoas? Muitos bio-eticistas defendem esta idéia e que estas pessoas deveriam substituir os animais nas experiências ‘científicas’ [[v]].

Platão descrevia os sofistas como pessoas muito populares e muito bem pagas, experts na arte de torcer palavras, capazes de docemente transformar o mal no bem e convencer que o branco é negro.

[1] Este texto é baseado fundamentalmente nos artigos When do Human Beings Begin? “Scientific” Myths and Scientific Facts e The Impact of International Bioethics on the “Sanctity of life ethics” and the Ability of ob-Gyn’s (Obstetric Gynecologists) to practice according to conscience, ambos  de Dianne N. Irving, M.A., Ph.D, Bioquímica, Bióloga, Professora de História da Filosofia e Ética Médica Georgetown University, Catholic University of America, The Dominican House of Studies. Vários trechos foram copiados literalmente em tradução livre de minha autoria. Como as interpretações e conclusões são minhas, a autora não pode ser responsabilizada por elas.

[2] Não tendo pretensões de ser um trabalho científico, mas jornalístico, não incluirei notas de referências específicas, apenas aquelas necessárias para indicar as fontes principais. Pela mesma razão tentei usar a linguagem mais simples possível para o entendimento dos leitores que não estão familiarizados com o assunto.

[3] Um cromossomo é uma longa sequência de DNA, que contém vários genes, e outras sequências de nucleótidos com funções específicas.

[4] Deve-se diferençar de mitose: a divisão de uma célula em duas, cada qual com o mesmo número de cromossomos que a anterior.

[5] Julius R. Petri (1825-1921), bacteriologista alemão inventou a placa que leva seu nome, utilizada para a colonização de bactérias em laboratório.

[6] Ver, entre outros, Peter Singer (Practical Ethics, Should the Baby lives: The problem of handicapped infants)Michael Tooley (Abortion and Infanticide), R. G.Frey (The Ethics of the Search for Benefits: Animal Experimentation in Medicine).