A Rússia espalhará seus erros pelo mundo…”

N.S. Fátima, 1917

Chegamos a 2022 e é muito comum ver os famosos analistas espantados pela maneira que o Kremlin age com os seus vizinhos. Ora, desde 2014 uma farta região da Ucrânia, parte da fronteira sul com Lugansk e Donetsk, além do importante porto de Sebastopol, na Criméia, foram anexados pela força das armas por tropas russas ou pró-russas. Estamos assistindo à demonstrações explícitas de poderio bélico como, no caso da Geórgia em 2008. A Rússia, governada desde o ano 2000 pelo “ex-oficial” da inteligência, o premiado agente da KGB Wladmir Putin, tem uma política externa que não difere em seu objetivo com a política do Império Russo ou da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Falando da antiga URSS, a nova Rússia se aproveita dos laços com os seus antigos parceiros de ideologia, como Cuba e Coréia do Norte, para testar e vender todo tipo de equipamento e expertise no campo da repressão, procurando sempre novas oportunidades de exercer sua influência, como nos casos da Venezuela e da Síria.

https://www.ft.com/content/9f27da90-7b3f-11e4-87d4-00144feabdc0

 

https://www.theguardian.com/world/2014/mar/06/ukraine-crisis-crimea-part-of-russia-local-parliament-declares

O caso do ressurgimento do poder russo no cenário mundial não é novo. Um evento semelhante aconteceu pouco mais de cem anos, após o golpe bolchevique e a saída da Grande Guerra, com a assinatura de paz com os alemães, o tratado de Brest-Litovsk firmado em março de 1918. A princípio as demais nações não reconheceram nem o tratado e nem aquele novo fenômeno político que inundava as capitais européias de refugiados ilustres, contando com uma administração formada de ´intelectuais´ sem experiência, que enfrentariam uma guerra civil e teriam que fazer concessões territoriais e econômicas para garantir a manutenção e consolidação do poder central. Eles ficam fora de Versailles em 1919, vendo surgir ao seu redor nações livres como os Bálticos, a Polônia etc. O primeiro tratado, com a Estônia, conhecido como Tratado de Tartu, em 1922, não os coloca automaticamente no sistema, mas passa a existir um primeiro reconhecimento. Eles continuam sem participação na Liga das Nações e só serão reconhecidos pelo Reino Unido em 1924 e pelos EUA em novembro de1933, durante o governo do presidente Roosevelt, ficando ausentes do encontro de Munique em 1938 e Retornando ao centro do palco diplomático mundial com o pacto Ribentropp-Molotov, em 1939. Consolidam-se no papel de potência mundial com o final da guerra e o surgimento de nova ordem do sistema internacional, que divide o globo em dois grandes blocos de influência: o do Ocidente liberal e o da URSS.

O colapso do regime soviético em 1989, marcado pela queda do muro de Berlim, e a perda dos regimes satélites, especialmente os europeus, marca uma outra guinada no poder de Moscou. De uma super-potência de abrangência mundial para um grande caos burocrático que oferecia poucas chances de progresso material para a sua população, que vislumbrava o padrão de vida ocidental como modelo a ser imitado. Temos aí um hiato que, diferente de 1918, não retira a Rússia do sistema internacional, mas aposta em uma liberalização e consequente cooperação que iria advir de uma necessária abertura econômica.  É neste espírito que é assinado o Memorando de Budapeste,  em 1994, entre a Rússia, Estados Unidos e Reino Unido, comprometendo-se a respeitar a soberania da Ucrânia em troca da entrega  de seu arsenal nuclear. Uma Rússia novamente enfraquecida e com opções limitadas.

Com a tomada do poder por Putin e seus correligionários em 2000 é acelerado o processo de liberalização econômica e atração de capitais. No entanto, isto não contribuiu para a democratização política, mas possibilitou o surgimento de nova oligarquia que consolida o monopólio do poder decisório por parte de uma elite. A teoria de que a liberalização econômica traria uma abertura para a sociedade civil na qual ela poderia desenvolver relações cívico-políticas que, consequentemente, iriam transformar-se em debates, surgimento de pluralidade de ideias e que terminaria em eleições livres nos moldes norte-americanos, é central no pensamento do Frankfurtiano Jurgen Habbermans e um engodo que muitos desses analistas crêem de pés juntos. Mesmo a oposição russa estando ou na prisão ou no exílio, mesmo com a censura aos meios de comunicação e mesmo com os atritos com o ocidente, Putin ainda é visto internamente como um grande líder, alguém que está cumprindo com a vocação civilizatória da da Rússiae, de alguma forma, retornando à sua glória.

https://bellenews.com/2012/08/07/world/europe-news/vladimir-putins-hand-kissed-by-russian-orthodox-priest/

Uma das principais conquistas de Putin foi a estatização da Igreja Ortodoxa Russa (observação minha: na verdade a igreja russa sempre esteve atrelada ao estado russo. Aliás isso é uma constante nas igrejas ortodoxas: são igrejas que se identificam com o estado. Isso têm razões históricas e culturais. No ocidente foi uma constantea luta da Igreja para manter-se separada do estado). Uma instituição fundamental no suporte espiritual e no senso de diferenciação do povo russo dos demais povos, como um chamado a cumprir sua vocação histórica. A criação de uma nova Roma sob a égide eslava e com sede em Moscou. Stálin, do alto da sua convicção comunista, percebeu a importância do monopólio da fé em tempos de guerra e abriu as igrejas,  ortodoxas obviamente, com um corpo eclesiástico aprovado pelos agentes soviéticos. O que aliás leva-nos a mais um equívoco, um que os conservadores e moderados caem muito, de que o regime de Putin seja um regime cristão que procura resguardar suas tradições frente à decadência do ocidente. Citando sempre a censura imposta ao conteúdo erótico, a perseguição às drogas, o incentivo aos valores nacionais, a proteção da religião etc. Ora, é bom lembrar que o regime proíbe tanto paradas gay quanto procissões católicas; tanto marcha da maconha como marcha pró-vida A mesma censura que proíbe o conteúdo erótico também veta qualquer filme, série, conteúdo que critique o governo ou a visão histórica que ele quer emplacar. O fato de possuir uma postura anti-globalista não implica automaticamente na sua redenção – o mundo é muito mais complexo. O “diga-me com quem andas” é de vital importância aqui: neste caso é o“diga-me quem dá apoio de fato”, quem espalha a narrativa do Kremlin. Para tal temos a palavra de José Dirceu, articulador perpétuo do Partido dos Trabalhadores. Em um artigo questionando a importância da entrada do Brasil na OCDE ele afirma o seguinte: ´ Por que nos integrarmos a uma Europa em crise, começando pela ascensão de governos de extrema direita, do nacionalismo, da não aceitação da imigração, uma realidade inescapável no mundo de hoje, dividida como prova o Brexit, envolvida num conflito com a Rússia por conta do expansionismo militar e hegemônico dos Estados Unidos via OTAN que ameaça a segurança russa e coloca a própria Europa sob risco de uma guerra?

O Foro De São Paulo, uma entidade que reúne dezenas de partidos e organizações da esquerda latino-americana, e que até hoje tem gente que duvida que existe, declarou na sua página oficial ( forodesaopaulo.ORG) uma nota, em 10 de fevereiro de 2022, com o revelador título de `Não à guerra: a agressão dos EUA e da OTAN deve acabar´. Segue um trecho da nota:

´Nas últimas semana, aumentaram as provocações dos EUA, acompanhados pela OTAN, contra a Rússia, sob uma guerra midiática de supostas intenções de invasão da República da Ucrânia.

O Grupo de Trabalho do Fórum de São Paulo, reunindo o sentimento geral da maioria da população da América Latina e do Caribe, declara seu repúdio absoluto a essas provocações belicistas de um país que, como os Estados Unidos, tem sido responsável por todas os últimos conflitos da guerra mundial.

Para fechar, o jornal único de Cuba, O Granma, em artigo de sete de fevereiro de 2022 , assinado por Elson Concepción Pérez, que somente reproduz um discurso do presidente russo alertando do uso militar da Ucrânia pelos EUA, sem adendos como se ele fosse a verdade. O PC cubano difundindo o mesmo material de propaganda produzido diretamente na Lublianka para todos os partidos de esquerda do continente americano, que vão reproduzindo ad nauseam, em uma técnica que foi teorizada pelo pensador italiano Antonio Gramsci, mas que já era aplicada na Europa ocidental de forma sofisticada nos anos 30 pelo agente do Komintern, Willi Munzenberg.

E por falar em Stálin , existe um claro movimento do regime para reabilitá-lo, fechando ou dificultando a vida de museus e instituições que pesquisam e preservam a memória de suas vítimas, banindo filmes e livros ao mesmo tempo que promove uma revisão histórica que relativiza tais crimes. Quem ouza falar ou fazer o contrário pode simplesmente ser preso e sumir na extensa burocracia judicial russa, ou ser tomadodeexemplo e ir definhando publicamente até falecer como no caso do ex-agente russo Alexander Livtnenko, morto por envenenamento em 2006 em Londres.

No campo da política internacional é impossível não levar em consideração o encontro entre o líder chinês Xi Jinping e seu parceiro russo, Vladimir Putin, na abertura dos jogos Olímpicos de Inverno,  em fevereiro de 2022. Lá os dois líderes em uma declaração em conjunto reafirmaram sua política externa e defenderam uma Taiwan chinesa e uma Ucrânia livre da influência ocidental. Segundo o ex-Chanceler de Lula , Celso Amorin:

´ Os dois líderes, que modestamente se auto-intitulam simplesmente como “as partes”, invocam uma amizade sem limites e projetam uma aliança, que constitui, de fato, uma liderança alternativa aos projetos deWashington para o mundo. Para quem via riscos da “Armadilha de Tucídides” na ultrapassagem dos Estados Unidos pela China, em termos econômicos, os desafios se tornaram ainda mais complexos, com a criação de um grande bloco eurasiano capaz de desafiar o poderio de Washington em terrenos variados, do tecnológico ao militar, sem falar no soft power em relação às nações em desenvolvimento, sem deixar de lado temas vitais da atualidade, como mudança climática e cooperação no enfrentamento de pandemias.

E continua: ´ O que a declaração diz é que o mundo mudou. Cabe a cada Estado e/ou a cada região (como a América do Sul) mostrar como vai se inserir na nova realidade. A viagem do presidente da Argentina, ­Alberto Fernández, a Moscou e Pequim, assim como a adesão do país ao projeto da Nova Rota da Seda, é uma indicação do que pode ocorrer.

Um outro indício que os analistas perderam foi o discurso de Putin na Conferência de Segurança de Munique em fevereiro de 2007. Lá ele acusa abertamente os EUA de querer impor um sistema unipolar e de cercar a Rússia por meio da aliança militar da OTAN. Falava ele também naquela ocasião que: ´O nosso exército está deixando a Geórgia em um cronograma acelerado. Como todos sabem, nós já resolvemos os problemas que tínhamos como nossos colegas georgianos. Já em agosto de 2008 a promessa era quebrada e a região da Ossétia foi o estopim para a operação militar contra o país. Na época, como em 2022, o Kremlin alegava garantir a segurança da maioria étnica russa que viveria na região da Ossétia do sul . Como diz o artigo `Russian Propaganda War – media as a long – and short-range weapon `(Propaganda de Guerra Russa- o uso da mídia como uma arma de curto e longo alcance)da pesquisadora Jadwiga Rogoza :

A guerra entre a Rússia e a Georgia, que para Moscou foi uma tentativa de melhorar sua posição internacional, foi acompanhada de uma campanha midiática sem precedentes em apoio aos esforços militares e diplomáticos do governo russo. A campanha, posta em ação em grande escala foi extremamente agressiva, mirando em mensagens de propaganda efetivas tanto para o público doméstico quanto para fora. A principal tarefa da mídia russa era enfatizar o renascimento da Rússia como uma país poderoso, que era forte, assertivo e tinha interesses claros e estava determinado a defendê-los. Outro propósito simultâneo da propaganda era o de mostrar a fraqueza do ocidente e enfatizar as divisões lá existentes. Outro objetivo, temporário porém importante,  foi o de desacreditar completamente a Geórgia demonstrando como mal-sucedida as suas ambições pró-Ocidente. Dentro da Rússia a propaganda estava focada em trabalhar positivamente a imagem das pessoas mais importantes do regime e também dar legitimidade para a guerra. Objetivos usados de modo frequente pelas autoridades do passado para ganhar apoio público para ações que vão se tornando cada vez mais agressivas. A receptividade da sociedade russa para a propaganda prova uma vez mais que a mídia é uma das importantes armas no arsenal de soft power do Kremlin, que é usado habilidosamente para atingir os objetivos do governo russo.

https://www.theguardian.com/world/2014/mar/06/ukraine-crisis-crimea-part-of-russia-local-parliament-declares

 

Cinco presidentes e muitas crises já passaram pelos EUA desde que Putin assumiu o poder. A inflexão na política de segurança após o onze de Setembro parece ter dado carta branca para a Rússia admitir que a ordem liberal capitaneada pelos EUA não era de seu interesse. E o partido de Putin já colhe os louros de ser o maior partido Russo, seguido pelo  Partido Comunista russo, o que lembra do ditado soviético que ´Na América, você sempre acha um partido. Na União Soviética, o partido sempre acha você.`

Concluindo, é vital levar em consideração que para Putin a queda do regime em1989 é uma tragédia semelhante a que aconteceu em 1918, com a pulverização do império Russo, e ele se arroga o papel histórico de ser o homem que vai reverter isso. Os sinais de sua ambição são claros, escritos em neon diplomático, invasões de hackers e pela força dos canhões. A diligência metódica de reconstruir suas forças armadas, a modernização e expansão do arsenal nuclear russo, assim como dos serviços de inteligência e de repressão, concomitantemente com o rigoroso controle da imprensa e a prisão, além do exílio ou assassinato de seus inimigos políticos, provam que a Rússia não quer ser parte da presente ordem mundial, mas impor uma nova ordem no sistema.

E quanto à situação ucraniana, o conflito aberto não é popular domesticamente. A diplomacia e a propaganda vão tentando impor uma capitulação do Ocidente quanto à certas demandas. E o roteiro segue como já visto: ameaçar, cercar, sufocar, invadir ,anexar e impor um novo governo composto de locais fiéis aos propósitos do Kremlin, terminando pelo pedido para que o seu território seja incorporado no mercado comum e no acordo de segurança como uma espécie de protetorado Russo. O que explica a preocupação de países que entraram para a OTAN depois de 1991, especialmente os que possuem fronteira com a Rússia e quem vêem no tratado de mútua proteção o seu maior trunfo para dissuadir o ímpeto de Moscou. Lembrando a observação do ex- Secretário de Estado dos EUA, George Schutz `Percepções são muito importantes. Independente de seu objetivo de longo prazo, a Rússia de Vladmir Putin incitou medo em seus vizinhos e a crença em muitos russos que ele tenha já anunciado, na prática, o seu objetivo de trazer o antigo território soviético novamente para a esfera russa, ou mesmo incorporados ao Estado russo… O medo e o ressentimento que tais atitudes criaram na Ucrânia e em outros vizinhos vai, com o passar do tempo, resultar em movimentos de insurgência e ações práticas que vão impactar negativamente na própria segurança da Rússia.

Em 1917 , com a primavera de independências  das várias repúblicas do entorno que seguiram ao tratado de Versailles, e a onda nacionalista, o ressentimento foi sendo contido pela força das armas, deportações , campos de internação e de re-educação. Algo similar ao que acontece hoje com a minoria Islâmica dos Uighurs na China, cuja fé é para o governo comunista uma patologia clínica que requer internação compulsória. A tecnologia da repressão nunca parou de ser aprimorada e é uma das commodities russas mais valorizadas no mercado internacional. A fome forçada na Ucrânia nos anos 30, a intentona de 1935 no Brasil, o golpe em 1948 na Tchecoslováquia, assim como a pulverização dos movimentos de 1956 na Hungria e de 1968 em Praga, os serviços de inteligência russos tem uma longa trajetória de violência e medo e que está sendo revivida no momento atual. Não há dúvida de que lado a esquerda internacional  e nacional está, também não deve haver dúvidas de que lado estaremos.

Artigo de Gustavo Ferreira