A pergunta do título deste artigo pode parecer demasiado dramática, mas, um breve exercício de imaginação pode, sem dúvida, nos levar a construir uma narrativa semelhante àquela de gênero pós-apocalíptica, feita pelo escritor norte-americano Jack London, em seu livro “A Peste Escarlate”, escrito em 1912, onde é descrita a quase extinção da Humanidade após uma grave pandemia que ter-se-ia iniciado num fictício ano de 2013. Trazendo à tona questões mais profundas, relacionadas à nossa contemporaneidade, o autor insinua perguntas como: somos mesmo uma sociedade civilizada? Ou um bando de bárbaros camuflados por tecnologias e convenções sociais?

 

London apresenta uma raça humana que, apesar de quase extinta, ainda guarda princípios e valores morais, como conhecimento e sabedoria, mas, com um certo tom pessimista, mostra que nem todos os que restaram, ainda que à beira da extinção, estão dispostos a recomeçar a história humana de maneira diferente, dando a impressão de que a Humanidade nunca aprenderá o suficiente com seus erros. Assim, mais relevante do que a “cinematográfica” versão de London sobre uma pandemia e seus efeitos pós-apocalípticos, parece ser uma frase que ele coloca nos lábios do velho Granser: “Os sistemas fugidios evaporam como espuma”. Assim, a “espuma”, ou, para usar uma palavra menos metafórica, a “fugacidade”, parece ser a grande lição de uma pandemia.

 

Nesse sentido, o livro “Um Diário do Ano da Peste”, do autor inglês Daniel Defoe (o mesmo autor do mundialmente conhecido romance “Robinson Crusoe”), é tão realista que por muito tempo se discutiu se seria ou não ficção. A resposta está no meio-termo: é que Daniel Defoe tinha apenas cinco anos quando a praga começou. E o livro, narrado em primeira pessoa, tem como personagem principal um homem adulto, nomeado apenas como H.F. — provavelmente Henry Foe, um tio do escritor que esteve em Londres durante a pandemia. Ou seja, “Um Diário do Ano da Peste” é um relato ficcional, mas baseado em fatos reais e numa extensa pesquisa de Defoe, que revirou os arquivos de Londres para fornecer dados detalhados sobre a epidemia. Por isso, é um livro frequentemente analisado em aulas de jornalismo, e que dá dicas importantes para quem vive outras epidemias.

 

Defoe escreve: “Londres estava toda em lágrimas. A choradeira das mulheres e das crianças, nas janelas e portas das casas onde seus parentes mais queridos talvez estivessem morrendo, ou recém haviam morrido, era tão frequente quando se passava pelas ruas que bastava para cortar o mais insensível coração do mundo”. O livro, que retrata em uma narrativa contínua, sem capítulos, o ano de 1665, expressa claramente a fugacidade das estruturas humanas, que entram em crise diante de um obstáculo tão irônico quanto pode ser o triunfo, ainda que provisório, de um microscópico ser, uma bactéria, chamada Yersinia pestis, transmitida principalmente pelas pulgas de ratos. Mas, “Um mal sempre chama outro. Os terrores e medos do povo o conduziam a mil fraquezas, loucuras e atos perversos”, conta o Diário. E assim as estruturas e convenções humanas iam-se desfazendo como uma espuma efêmera.

Por estranho que pareça, porém, o cenário arrasador criou uma contradição: bem no auge da epidemia, quando corpos apodreciam nas ruas e quase toda família já tinha sido atingida, as pessoas resolveram se descuidar. As pessoas perderam o medo, acostumaram-se com a morte, e quase a aceitaram. “Quando a peste chegou ao clímax, as pessoas eram menos cautelosas do que no princípio. Tornaram-se intrépidas e aventureiras, não se intimidavam mais umas às outras, nem permaneciam dentro de casa. Iam a qualquer lugar, iam a toda a parte e voltaram a conversar”, conta o livro. A grande peste de Londres só acabou em 1666. A cidade era outra, afinal famílias inteiras tinham morrido e milhares de casas estavam abandonadas.

Tendo em visa que nenhum país aceitava receber os navios do Reino Unido, por causa do medo da peste, a crise financeira tinha tudo para ser longa, mas só não foi porque aquele ano guardava mais uma tragédia para a cidade: o grande incêndio de Londres, que destruiu 15 mil casas e deixou 100 mil desabrigados. As chamas forçaram o governo a gastar dinheiro na reconstrução. “O comércio gerado pelo incêndio em todo o reino é inacreditável, suprindo as necessidades e reparando os danos”.

Passados os anos de tragédia, Londres voltou a enriquecer. Em seu livro, o narrador de Daniel Defoe afirma que gostaria de poder dizer que tantas dificuldades acabaram melhorando as pessoas, mas que isso não seria verdade. “O comportamento geral da população voltou a ser igual ao que era antes”.

Assim, se tomarmos como referência as duas obras literárias citadas, é justo concluir que o ensinamento mais eloquente, ou revelador, de uma pandemia não é o poder potencial que ela tem de extinguir a raça humana, mas a falta de poder – já verificada – que ela tem de mudar permanentemente a natureza decaída do Ser Humano. Em outras palavras, haverá, sim, vida humana no tempo pós-pandemia, mas permanecerá ainda em nós a necessidade da graça, da misericórdia e do perdão divinos. A grande sentença para os nossos tempos, portanto, ao menos para nós cristãos, parece ser: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para serem apagados os vossos pecados. Virão, assim, da parte do Senhor os tempos de refrigério, e ele enviará aquele que vos é destinado: Cristo Jesus” (At 3,19-20).