“Ao longo da história, sempre tivemos homens que ficaram aquém do seu dever ou que ultrapassaram as medidas ao cumpri-lo”. À luz de S. Tomás, o Padre José Eduardo reflete sobre as saídas justas para os problemas das repúblicas.

Um dos tratados mais impressionantes escritos por São Tomás de Aquino é o “tratado das leis”, que está na Ia-IIæ da Suma Teológica, o qual pode ser muito melhor entendido quando o lemos em comparação com o seu comentário à Política de Aristóteles, incluída aí a continuação do mesmo por Pedro de Alvernia.

Quando fala sobre as leis humanas, o Doutor Angélico diz que os homens “tentaram descobrir algo útil para a constituição da sociedade humana, mas, não podendo por si mesmos levar tudo em conta, estabeleceram normas imperfeitas e cheias de lacunas” (Ia-IIæ, q. 97, a. 1, resposta).

Mais abaixo, ele continua: “a lei natural é uma participação da lei eterna e é, por isso, imutável, dada a mesma imutabilidade e perfeição da razão divina, autora da natureza. A razão humana, ao contrário, é mutável e imperfeita e, por isso, é também mutável a sua lei. Ademais, a lei natural consiste em preceitos universais que se mantêm sempre idênticos; enquanto que a lei humana consta de preceitos particulares aplicáveis aos casos que ocorram por razões imprevistas” (Ibidem, ad 1um).

É exatamente por causa dessa imperfeição e imprevisibilidade concernente às variabilíssimas circunstâncias humanas que São Tomás fala sobre a virtude da “epiquéia”: “porque os atos humanos, sobre os quais recaem as leis, são singulares e contingentes, podendo oferecer formas ilimitadas, não é possível estabelecer uma lei que não falhe em nenhum caso concreto. Os legisladores legislam de acordo com o que acontece na maioria dos casos; porém, observar ponto por ponto a lei em todos os casos vai contra a equidade e contra o bem comum, que é justamente o objetivo da lei. Assim, por exemplo, a lei ordena que os depósitos sejam devolvidos, porque isso é normalmente o que é justo; contudo, isso pode ser, às vezes, prejudicial: pensemos em um louco que deixou a sua espada em depósito e que depois vem pedi-la em estado de demência ou em alguém que a pedisse para atacar a pátria. Portanto, nessas circunstâncias e em outras similares, seria pernicioso cumprir a lei de maneira estrita; o bem seria, deixando de lado a letra da lei, seguir o que pede a justiça e o bem comum. E é a isso que se ordena a epiquéia” (Ibidem, II–II, q. 120, a. 1, resposta).

Ora, o que acontece num caso pode acontecer no todo. E isso se dá quando num Estado acontecem crises constitucionais, em que um poder avança sobre o outro e em que autocratas se impõem em detrimento da lei. Tais circunstâncias são parcialmente previsíveis e os textos constitucionais, em geral, preveem remédios que possam restaurar a ordem, ainda que não especifiquem exatamente o modo de usá-los, coisa que é muito mais requerida pela situação concreta do que por abstratas construções normativas.

Essas circunstâncias são aquelas em que a ordem constitucional se corrompe e precisa ser reordenada por mecanismos legais, assim como previa o direito romano e o direito de muitas nações.

No comentário à Política de Aristóteles escrito por S. Tomás e continuado por Pedro de Alvernia, podemos ler que o modo “máximo e eficacíssimo para salvar a república é buscar que aquela parte que ama e deseja a salvação da república seja mais forte e mais potente do que aquela que não a quer nem a ama; deste modo, de fato, a república durará maximamente” (Comentário à Política, Livro V, 5, 10).

“Quando é dado a algum homem não virtuoso honras além da proporção para com os demais e para com a sua dignidade, este homem passa a oprimir o outro e a destruir a cidade… Deve ser maximamente ordenado pelas leis, ou por qualquer outro modo conveniente, que ninguém se torne muito excelente além da proporção no poder, nos amigos ou no dinheiro. Estas potências podem facilmente corromper a cidade” (Idem, 5, 5).

Ora, quando um estado de corrupção generalizada ameaça de morte a própria ordem constitucional, existem dois caminhos a serem seguidos: recorrer aos instrumentos para a restauração desta ordem ou recorrer a uma nova ordem, coisa sempre não desejável.

Quando se trata dos meios para a restauração da ordem, é preciso observar aquilo que se diz no mesmo Comentário: “é necessário não ocultar o que é médio e proporcional, pelo qual se salva a república, para que esta seja conservada e que não seja transgredida… Deste modo é manifesto que para a salvação da república é necessário considerar qual é o termo médio no qual se salva a república” (Idem, 5, 10).

Na linguagem Aristotélica, “termo médio” indica a intensidade de força que se emprega para a realização de um ato virtuoso, tanto no nível ético quanto no político. Assim, àquele que tem a responsabilidade soberana sobre as Repúblicas, de acordo com as normas constitucionais, deve aplicar os remédios na medida justa, sem faltar nem exceder nas medidas necessárias. Isso é governar em situações de crise.

Ao longo da história, sempre tivemos homens que ficaram aquém do seu dever ou que ultrapassaram as medidas ao cumpri-lo. O homem justo pondera exatamente quais sejam as ações necessárias para salvaguardar a ordem constitucional, que é, ao fim e ao cabo, aquilo que garante a subsistência não apenas do regime, mas a própria governabilidade do mesmo.