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Uma lição a tirar

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Apesar da imensa transformação pela qual têm passado, nas últimas décadas, os métodos de avanço comunistas, boa parte do grande público conserva incrustado na imaginação o velho pesadelo das revoluções sociais sangrentas, levadas a efeito por hordas de maltrapilhos com revólveres em punho, a atacar durante a noite as residências dos chefes de Estado e de seus ministros, a invadir os bairros ocupados pela alta e média burguesia, a roubar, espancar ou matar as famílias espavoridas, a entrar pelas igrejas para profanar o Santíssimo Sacramento, os altares e as imagens e a assassinar, por fim, os vigários inermes. E assim por diante. Em suma, cenas da Revolução Francesa, um pouco atualizadas pela mudança dos trajes, dos figurantes, como também pela abolição do sabre e da lança, e o advento do revólver.

O mal desse pesadelo não está apenas em seu anacronismo. Na realidade, serve ele à expansão do comunismo. Pois os que se deixam hipnotizar por essas visões novelescas — eu quase diria folclóricas — revelam, em geral, uma desconcertante incapacidade em admitir que a investida comunista mudou de métodos, e fez desse gênero de revolução social uma autêntica velheira.

As pessoas obsedadas por este pesadelo, não vendo em nenhum canto do horizonte assomarem as legendárias hordas de maltrapilhos, sentem-se inteiramente seguras. Não dão maior importância ao terror, que só ataca vedetes das finanças ou da política. E não dão crédito a qualquer advertência que se lhes faça sobre o avanço camuflado e incruento do terrível adversário. Desta forma, concorrem elas para criar o clima de desprevenção geral que é, hoje em dia, conditio sine qua non para o êxito do comunismo.

Esta imprevidência não se manifesta apenas no Brasil. A presença dela se nota até nos países da mais antiga tradição política.

Um dos campos em que tal imprevidência mais vem pesando é o Partido Trabalhista inglês.

Como ninguém ignora, a única corrente de esquerda verdadeiramente influente no Reino Unido é o trabalhismo.

Sua clientela política consiste principalmente em dois gêneros de ingleses. Antes de tudo, uma grossa massa de operários sindicalizados que desejam — tantas vezes com razão — melhorar muito substancialmente suas condições de vida. O que, com certa candura, imaginam alcançar pela espoliação das classes dirigentes. Como se a depredação dos que guiam fosse o mais seguro modo de beneficiar os que são guiados.

Essa ilusão, mais ou menos explicável entre os menos cultos, é absolutamente imperdoável no outro contingente do Partido Trabalhista. Trata-se da clássica minoria constituída por intelectuais sofisticados, lordes gangrenados e “sapos” da alta finança (com seu dócil cortejo de “pererecas” da indústria e do comércio), de políticos oportunistas, de artistas necessitados da claque esquerdista e, por fim, de eclesiásticos “hippificados” ou em vias de o serem. Toda esta borra procura tirar partido, em proveito das pessoinhas que a compõem, do apoio das massas sindicalizadas. E o consegue, se bem que em proporções apenas reduzidas. Mas — reflete gente assim — em matéria de prestígio político, pouco é melhor do que nada. E, como de outra maneira teriam mais dificuldades em sobressair, contentam-se com isso.

O nervo-motor do trabalhismo é, pois, a sede, muitas vezes fundada (e tantas vezes transviada), de melhorias materiais para certos setores da população.

Enganar-se-ia, contudo, quem imaginasse que o trabalhismo inglês não era senão uma camuflagem do comunismo. Com efeito, na mentalidade das multidões trabalhistas — e para compreender aqui o significado de “multidões” é preciso ter em conta que há também, no Reino Unido, multidões conservadoras mais ou menos equivalentes em número — esta aspiração de melhorias pouco tem de comum com o estilo inflamado das reivindicações sociais que lavram nos países da Europa continental. Sem dúvida, certo anseio de igualdade absoluta impregna os meios trabalhistas. Menos, entretanto, como um programa definido, do que como uma utopia agradável. Fortemente pragmático, o inglês não usa suas utopias — quando as tem — senão como o faz com chá, o uísque ou o cachimbo: para amenizar as horas de lazer. Fortemente conservador, tende ele a manter todas as coisas em seu lugar. Entre estas, o aparato monárquico e aristocrático que caracteriza a nação. O contingente trabalhista talvez tenha sido tão grande quanto o conservador nas multidões que se comprimiam para aplaudir a rainha Elizabeth II, quando se dirigia, em carruagem dourada, do palácio de Buckingan para a igreja de São Paulo, por ocasião de seu recente jubileu.

Isto não representa, aliás, senão uma tênue sobrevivência do que foi a mentalidade conservadora do operariado — trabalhista ou não nos tempos de Jorge V.

Em conseqüência, uma condição para que o trabalhismo vencesse era que ele fosse categoricamente anticomunista. Pois se o eleitorado trabalhista desconfiasse que suas aspirações e reivindicações haveriam de conduzir à reviravolta de todos os valores, de todas as hierarquias e tradições que admirava e amava, o trabalhismo se esvaziaria rapidamente.

A vista de tal quadro, qual foi então a jogada comunista?

Os adversários do comunismo lhe fazem quase sempre o jogo, tirando-o assim dos impasses mais desconcertantes. A sociedade e o Estado ingleses estão engajados, há mais de cem anos, num lento mas incessante processo de adelgaçamento das convicções e tradições britânicas de outros tempos. Comparadas com o que eram na época da rainha Vitória, elas já parecem singularmente descoradas no reinado de Jorge V. Por sua vez, ao longo destes 25 anos de reinado de Elizabeth II (passemos por sobre o tormentoso período de Jorge VI, quase todo ocupado pela guerra), os valores e as tradições inglesas ainda mais velozmente se vêm evanescendo. E especialmente nas classes dirigentes.

O reflexo do fato nas massas sindicalizadas é óbvio. O equilíbrio de outrora, entre as aspirações de melhoria sócio-econômica e o anticomunismo fundado na tradição, vai-se tornando sempre mais precário. Pela própria natureza das coisas, os descontentamentos sócio-econômicos tendem a se acirrar, em nossos dias. Se, ao mesmo tempo, os freios culturais se adelgaçam aproxima-se o momento em que já não conseguirão conter os pruridos revolucionários.

O comunismo esperou pacientemente que este momento chegasse. Fez-se de fraco, e até de insignificante. Nos cômputos eleitorais, foi sempre o pigmeu vencido. Como receá-lo, então? Despreocupadas, as classes dirigentes se entregaram desabridamente ao hobby predileto de todos os decadentes que é serrar as pernas das cadeiras em que estão sentados. A fortiori, na massa trabalhista a caminhada para a esquerda também se fazia sem susto, já que o comunismo parecia tão distante…

Agora, aparece a grande novidade. Segundo a imprensa quotidiana, uma ala “de direita”(?) do trabalhismo põe-se a denunciar que a comissão diretora do partido e diversos de seus organismos estão infiltrados de comunistas. Nos congressos internacionais do partido, os representantes dos PCs do Exterior são cada vez mais numerosos, enquanto minguam as representações socialistas. Na massa do eleitorado, o comunismo já não provoca tanta rejeição. E avança.

Em outros termos, o cavalo de Tróia entrou na cidadela trabalhista. E, ipso facto, na Inglaterra.

Para saber o que daí decorrerá não é preciso ter grande senso de futuro. Basta procurar em qualquer manualzinho de lendas a narração do fim de Tróia.

A menos que a denúncia da tal ala direita do trabalhismo seja tomada a sério. Ou que alguma outra reação sadia ainda apareça no organismo social. Que grau de possibilidade terá isso?

Julgue o leitor. Mas sobretudo não se limite a julgar o que acontece por lá.

Procure tirar uma lição, pois cá e lá, más fadas há.

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