Entenda, com Plinio Corrêa de Oliveira, de que forma o nosso século conheceu um mal que por séculos tem afligido a humanidade: a matança de inocentes.
Publico originalmente em: Legionário, 18 de agosto de 1940, N. 414
É conhecida aquela dolorosíssima figura bíblica de Raquel vagueando pelos arredores da cidade de Rama, a lamentar a morte de seus filhos e recusando toda e qualquer consolação.
Ensina-nos a Sagrada Teologia que, além de ter cada pessoa um Anjo da Guarda, todas as cidades possuem o seu, que não se deve confundir com os dos indivíduos. Se os Anjos pudessem sofrer e chorar, veríamos certamente os Anjos da Guarda das grandes metrópoles modernas chorar amargamente como Raquel sobre as cidades que lhes haviam sido confiadas, e recusar quiçá consolação.
É que, graças à corrupção geral e as dolorosíssimas condições de vida que temos hoje em dia no mundo inteiro, não há grande cidade onde o morticínio dos inocentes assuma proporções sinistras. E se quisermos buscar as causas dos males que hoje afligem a humanidade, não seria difícil encontrá-las ao menos em parte nessa grande matança de inocentes, de que nosso século é teatro.
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Houve séculos passados que conheceram verdadeiras matanças de inocentes. É este o caso, por exemplo, do extermínio, por ordem de Herodes, das crianças que entre as quais se pudesse porventura encontrar o Criador. Nosso século conheceu um mal mais atroz. Não é mais o soldado cruel que invade o lar e arranca ao colo materno a criança inocente e ferindo-a, fere a Mãe com uma seta moral mil vezes mais cruel do que o gladio de aço. É o egoísmo germinando no próprio coração materno, e levando a Mãe a desejar estancar, com o concurso da ciência, a própria fonte da vida. A espada foi substituída pela ciência, e o soldado pela Mãe, que não elimina apenas a vida, mas evita.
Além disto, há outra forma de matar os inocentes: é a insuficiência do salário paterno. Se fosse possível, no obituário de uma grande cidade de nossos dias, fazer o cômputo das crianças que morreram porque, insuficiente o salário paterno, a mãe foi obrigada, por sua vez a ir à fábrica, e a criança não encontrou em braços estranhos os desvelos maternos, se fosse possível enumerar as crianças que adoecem e morrem porque a insuficiência da alimentação não lhes permite uma resistência orgânica capaz de vencer as moléstias da infância; se fosse possível saber quantas crianças morrem porque lhes faltou o remédio tornado excessivamente caro, pela especulação comercial ou uma habitação higiênica, que o salário paterno não bastava para pagar, se fosse possível saber quantas crianças morrem, porque os gêneros alimentícios foram deteriorados e empobrecidos de substâncias necessárias pela sórdida ganância de muitos fornecedores, então seria possível saber as proporções exatas da alarmantíssima matança de inocentes, que se opera constantemente nos centros modernos.
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Disse que essa matança é alarmante. A expressão tem um sentido exato que é preciso definir. Alarmante – é óbvio – é tudo quanto pode causar apreensão, susto, temor. Ora, como poucas coisas podem merecer para o homem tão graves e tão pesados castigos de Deus quanto a matança de inocentes cujo sangue brada ao céu pedindo vingança, é para uma cidade uma fonte de males e castigos sem conta esse estado permanente de coisas, que esmaga na brutalidade de suas moles um número de crianças cujo total só no dia do Juízo Final se poderá saber.
Mas esta sinistra verdade tem reverso luminoso, e é para ele que quero chamar a atenção de meus leitores. Se Deus promete tantos e tais castigos para os que oprimem injustamente as crianças, que recompensas e que indulgências não encontrarão junto a Ele os que as protegem? Se Ele sabe punir com mão inexorável os que matam os inocentes, não saberá Ele premiar com misericórdia as mãos que lhes levam alimentos, defesa, agasalho e remédio? Não saberá Ele recompensar com generosidade os que sacrificam seu tempo, seus lazeres, seus recursos pecuniários, e quiçá seus interesses mais fundamentais à obra de preservar da morte, de arrancar às garras da moléstia, de libertar das torturas da fome, as crianças que a contingência da natureza humana ou a perfídia de homens desalmados, atiram à indigência ou à desgraça?
Deus, evidentemente, não salva a alma que morra fora do estado de graça. No dia do Juízo Final, porém, saber-se-á que muita e muita conversão inesperada e retumbante, muito arrependimento sincero e profundo, muita regeneração verificada quando ninguém mais a esperava, tem sua origem em uma esmola dada a um inocente, esmola esta que Deus premiou chamando mais uma vez com graça particularmente intensa, o pecador a que faça penitência.
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Todas estas reflexões devem levar os leitores do “Legionário” a apoiar com suas preces, com o auxílio de sua atividade, com a generosidade de seus recursos pecuniários, a campanha que a “Clínica Infantil do Ipiranga” leva a cabo atualmente pela melhoria de suas instalações e desenvolvimento de suas atividades. Mantida por um casal que poderia consagrar a fins mais agradáveis seus recursos, seus lazeres e sua atividade, essa Clínica vem realizando com método, inteligência e eficácia, um vasto programa de combate à mortalidade infantil. Situada na colina histórica do Ipiranga, onde a fixou a generosidade de um doador cujo nome não carece de ser revelado, pois sua largueza é conhecida de todos, a Clínica se encontra em um bairro de necessitados, e estende seu raio de ação em torno de si, com uma extensão que só pode conhecer quem teve ocasião de visitar suas instalações.
Pelo fornecimento de alimentos, de remédios, de exames médicos, de curativos de toda a ordem, a Clínica combate valorosamente a grande matança de inocentes de nossa época. E, no momento, convoca ela todos os espíritos realmente católicos a que lhe prestem sua colaboração. Essa colaboração é um dever.
E São Paulo católico mostrará que não falta, entre nós, quem, graças a Deus, compreenda este dever, e o compreenda largamente.
Plinio Corrêa de Oliveira