“A Cidade de Deus está feita pelo amor a Deus levado ao desprezo do eu; a cidade terrena pelo amor do eu levado ao desprezo de Deus.- Santo Agostinho”
São inúmeros os críticos do Ocidente moderno que participam dos debates intelectuais ou populares das redes sociais. De fato, as revoluções liberais, socialistas e modernas destruíram o que anteriormente poder-se-ia chamar, em pleno direito, de Civilização Ocidental, filha da Santa Igreja Católica. O pós-modernismo, efeito das quimeras precedentes, significa a completa sujeição de todos os valores e princípios metafísicos à mera imaginação absolutizada. Se antes o sujeito definia-se como um composto indissolúvel de corpo e alma em sua essência humana, agora torna-se um produto do imaginário desprendido de qualquer ordem ontológica e natural. O sujeito define-se por aquilo que ele imagina que é, e não pelo ser substancial e universal. Naturalmente que em todos os âmbitos da existência, essa construção subjetivista e relativista demole qualquer convivência humana saudável. Ademais, sequer podemos propugnar alguma convivência ou qualquer humanidade diante de tamanha absurdidade.
Os jesuítas católicos na Ratio Studiorum defendiam que tornar-se uma pessoa é relacionar-se consigo, portanto, conhecer-se e educar-se e amar-se, para que possa amar e conviver com o próximo e, sobretudo, conhecer, amar e servir a Deus nesta vida e ter o vislumbre de Sua visão beatífica na eternidade. Os revolucionários e sua sanha de consumação de um falso paraíso terrestre destroem essa concepção realista para que o sujeito se feche em si mesmo, ignore todas as suas potencialidades naturais e viva apenas de suas vontades e paixões mais baixas balizadas pela sua imaginação pueril.
Alguns teóricos e místicos orientais, ora contribuindo e ora observando essa destruição do Ocidente, em seus devaneios, buscam remodelar a civilização à sua imagem e semelhança na desculpa de salvá-la de si mesma. Tomamos como exemplo o francês perenialista René Guénon que, em sua obra intitulada “Ocidente e Oriente”, numa declaração aberta de guerra à civilização ocidental, diz que existem duas principais saídas: (i) A Igreja Católica deve aceitar a pura autoridade espiritual de Mestres Sufis Islâmicos; (ii) O Ocidente cai na completa barbárie para que se reerga dos escombros também através do Islam. Contudo, gnósticos perenialistas como René Guénon, Frithjof Schuon, Rama Coomarasawamy, Martin Lings, Titus Burckhardt, entre outros, acreditam que a via da política temporal é completamente ineficaz para os seus planos, pois a influência até mesmo da Maçonaria no ocidente é de cunho dos “Pequenos Mistérios” relacionados ao Cosmos e à Sociedade, não atingindo, portanto, os “Grandes Mistérios” relacionados à pura autoridade espiritual.
Entretanto, como é de praxe, a língua bifurcada da Serpente sempre traz duas correntes da revolução, não apenas uma.
Há um simbolismo entre os gnósticos dualistas da “Via da Mão Direita” e à “Via da Mão Esquerda”. A primeira seria por uma atitude positiva em relação ao mundo, um caminho soft para unir-se à Divindade Primordial através dos espiritualismos orientalistas e atingir à superação demiúrgica. Já a segunda trata-se de uma atitude amplamente negativa do mundo e do cosmos. Trata-se do caminho do “sofrimento negro”, algo destrutivo e terrível. O mundo físico é uma verdadeira prisão e um verdadeiro escárnio. Somente através de ações abruptas e trágicas é possível acelerar o processo de destruição deste mundo para que possamos nos salvar do Demiurgo e alcançar, também, a Divindade Primordial que reside no Supra-Ser ou no Nada (Ain Soph).
Os teóricos políticos asseclas desta visão, sistematizam em suas filosofias todo o caminho a ser percorrido para essa aceleração da Via da Mão Esquerda para a implantação do paraíso terrestre, livre das amarras dos Dogmas e da cultura bimilenar do Cristianismo que, segundo eles, alienam o gênero humano.
Numa visão marxista, seria o constructo de um Gyorgy Lukács que separa o Ocidente entre a infraestrutura (economia) e à superestrutura (religião, cultura, tradição, família). Para que se alcance o paraíso terrestre é preciso destruir a superestrutura burguesa para a vitória trágica da revolução.
Nem mesmo os próprios gnósticos concordam entre si no que tange às duas Vias. Como dito, para os esotéricos da Via da Mão Direita somente uma batalha da autoridade espiritual pura deve ser considerada. E toda manifestação pública das religiões significa uma alienação, um atraso, uma baixeza sem fim que afasta a casta sacerdotal da Tradição Primordial. Para mais detalhes das distinções entre exoterismo e esoterismo leia-se o artigo “As Garras da Esfinge” de Olavo de Carvalho¹.
Talvez o teórico mais discutido recentemente seja o russo Alexander Dugin, o maior influenciador intelectual do regime de Vladimir Putin. A família de Dugin – incluindo o próprio – teve muita aproximação com o serviço secreto soviético, tendo o pai de Alexander um alto posto na KGB e o próprio Dugin sendo um Arquivista. Em sua militância política e em sua vida acadêmica como filósofo e sociólogo, aproximou-se de Eduard Limonov, onde fundaram o Partido Nacional Bolchevique. Mais tarde, Alexander Dugin, em sua maturidade, cria sua própria teoria geopolítica fundada em princípios perenialistas e existencialistas, a saber, a Quarta Teoria Política.
Que é a Quarta Teoria Política de Alexander Dugin?
Para Dugin, na história ocidental, houveram grandes ideologias circundantes na cultura e na política e duas que falharam em dar uma resposta efetiva ao liberalismo: o comunismo e o nazi-fascismo. Mas, para Dugin, o fascismo, por trazer elementos pré-iluministas, românticos e arcaicos, seria um pontapé inicial para a criação da superação das três grandes ideologias numa quarta teoria política.
Dugin resgata o antigo simbolismo pagão da “Mãe Rússia” como salvaguarda da Tradição Primordial que deve, através da junção de diversas sociedades particulares que não participam daquilo que o russo entende como Atlantismo (liberalismo ocidental concentrado na OTAN, no CFR, nos Bilderberg, etc.), destruir o Ocidente para a implantação do Império Russo Ortodoxo. Para o leitor atento, vê-se claramente que Dugin encara o Ocidente e à Igreja Católica como se o Demiurgo fossem.
Citemos brevemente um trecho ilustrativo de seu livro “A Quarta Teoria Política”:
“Se o ateísmo da Nova Era deixa de ser algo mandatório para a Quarta Teoria Política, então a teologia das religiões monoteístas, que uma vez substituiu outras culturas sagradas, não será também a verdade última (ou melhor, poderá ser ou não). Teoricamente, nada limita a profundidade da abordagem dos antigos valores arcaicos, a qual pode assumir um lugar específico na nova construção ideológica, após ser adequadamente reconhecida e compreendida. Eliminando a necessidade de ajustar a teologia ao racionalismo da modernidade, os portadores da Quarta Teoria Política estão livres para ignorar aqueles elementos teológicos e dogmáticos, que foram afetados pelo racionalismo nas sociedades monoteístas, principalmente nas últimas fases. Estas levaram ao aparecimento do deísmo sobre as ruínas da cultura europeia cristã, seguido do ateísmo e do materialismo, durante um desenvolvimento escalonado dos programas da era moderna. Não apenas os mais altos símbolos supramentais da fé podem ser colocados a bordo novamente como um novo escudo, mas também podem aqueles aspectos irracionais dos cultos, ritos e lendas que tem deixados perplexos os teólogos das fases prévias. Se nós rejeitamos a ideia de progresso inerente à modernidade (que como nós vimos, acabou), então tudo que é antigo ganha valor e credibilidade simplesmente por ser antigo. “Antigo” significa bom e quanto mais antigo – melhor. De todas as criações, o paraíso é a mais antiga. Os portadores da Quarta Teoria Política devem lutar para descobri-lo novamente no futuro próximo.”
E também um trecho muito ilustrativo do pensamento gnóstico e esotérico – portanto nada cristão – de Dugin, institulado O Gnóstico[2]:
“Mas os gnósticos se manterão firmes em seu trabalho de vida. Nunca, nem hoje, nem amanhã. Pelo contrário, há todas as razões para triunfar internamente. Não dissemos aos ingênuos otimistas do “Caminho da Mãos Direita” onde sua confiança ontológica excessiva vai levá-los? Não previmos a degradação do seu instinto criativo se transformar na paródia grotesca que é representada pelos conservadores modernos que renunciaram a tudo, que horrorizaram os seus mais atraentes (mas não menos hipócritas) precursores de um par de milhares de anos atrás? Eles não nos ouviram… Agora deixe-os culparem apenas a si mesmos e ler livros “New Age” ou manuais de marketing. Não temos perdoado ninguém, não temos esquecido nada. Não temos sido enganados pelas mudanças de cenário social e atores políticos. Nós temos uma memória muito boa, temos braços “muito longos”. Nós temos uma tradição muito severa. Labirintos da vida, espirais de idéias, vórtices de raiva.”
A tese de Dugin pode ser encantadora para àqueles que defendem valores tradicionais, objetivos e antigos em detrimento da puerilidade e da libertinagem ocidental pós-moderna. Pois promete, através de uma grande operação de superação, resgatar o Antigo Arcaísmo e fazer valer, a ferro e (muito) fogo, que as tradições antigas jamais sofram intervenções do universalismo ocidental. Mas aí começam os problemas da tese do esotérico russo.
Essa construção da Via da Mão Esquerda de Alexander Dugin, apesar de sutil e encantadora para os incautos, padece de uma Sã Filosofia verdadeiramente tradicional.
No trecho supracitado, Dugin diz que “os portadores da QTP estão livres para ignorar aqueles elementos teológicos e dogmáticos, que foram afetados pelo racionalismo nas sociedades monoteístas”. Ora, a negação dos Dogmas da Fé e sua universalidade e validade é, para um católico, no mínimo motivo para excomunhão e um claro caso de heresia formal. Ademais, é exatamente a condenação modernista que faz São Pio X em sua Carta Encíclica Dominici Pascendi Gregis. Para Dugin e para qualquer outro modernista, Deus se manifesta para nós na imanência (nas sociedades particulares, no caso da tese duguinista), e às questões morais, filosóficas, teológicas e dogmáticas, são meras construções do juízo humano que se adequam e avançam com o tempo e não são Doutrinas Universais deixadas pelo Nosso Senhor Jesus Cristo. Ainda, Dugin nega a maravilhosa síntese ocidental no período da Cristandade entre a ordenação essencial do poder temporal à autoridade espiritual. Para ele, a existência das sociedades particulares em nada deve aos universais e transcendentais da autoridade espiritual. Elas são, com efeito, absolutas em si mesmas – apenas pelo fato de existirem.
Alexander Dugin, sendo um seguidor estrito do filósofo nazista Martin Heidegger, defende que a Existência precede o Ser. E infunde na sua Quarta Teoria Política o elemento gnóstico do retorno ao Supra-Ser, o “Ereignis” (O Evento), para descrever o retorno súbito da existência ao Ser.
Cada sociedade particular é uma emanação da Divindade Primordial na existência e que deve retornar a mesma Divindade através da superação da prisão cósmica e da alienação (Ocidente).
Por outro lado, o modernismo liberalizante do ocidente também nega os universais e os transcendentais. O advento das democracias liberais modernas se dá pela negação da visão imperial da Cristandade, balizada na Lei e no Direito Natural, para uma absolutização do Estado moderno.
O Estado moderno, no ocidente, torna-se o racionalizador da vida humana. Numa visão mística, também significa a Divindade diluída nas instituições burocráticas modernas e que progride no tempo. Naturalmente que também é um constructo anti-cristão.
Por mais que as críticas de Dugin ao liberalismo ocidental tenham certa veracidade, padecem de uma visão sociológica, filosófica, epistemológica e ontológica da formação das sociedades. E, a saber, Dugin, sendo um seguidor estrito de Heidegger, como dito, nega filosoficamente a ontologia realista para subjuga-la em sua ideologia revolucionária.
O resgate Imperial e Imanentista proposto por Dugin carece da verdadeira Cristandade, pois nega os Dogmas, a Sã Teologia, a Trindade, os Sacramentos, a ordem da natureza com a Graça Santificante, a Doutrina Mariana etc., etc. Trata-se de mais uma malfadada tentativa de vencer o Pecado Original através de pecados mortais contra a Ordem Divina.
Muitos conservadores ou direitistas – como queiram! – caem no canto da sereia do duguinismo e até mesmo do liberalismo ocidental pois faltam-lhes verdadeiro conhecimento do que é a sua própria civilização e de como foi construída, isto é, na substancialidade da Fé nas sociedades orgânicas e na defesa intelectual de seus preâmbulos e a abertura de seus corações à Graça.
Como poderíamos definir Alexander Dugin? Como um existencialista e um relativista em termos políticos, que de nada serve à tradição do realismo grego-escolástico e toda sua objetividade. Seu tradicionalismo nada tem de tradicional, mas de modernista, gnóstico e revolucionário.
Por fim, repito neste artigo o que já disse reiteradas vezes em vídeos meus: ambos os lados são cabeças de uma mesma Hidra do modernismo filosófico e teológico combatido por S. Pio X na “Pascendi Dominici Gregis” e na “Notre Charge Apostolique”.
¹ – As Garras da Esfinge, por Olavo de Carvalho (https://olavodecarvalho.org/as-garras-da-esfinge-rene-guenon-e-a-islamizacao-do-ocidente/)
² – O Gnóstico, por Alexander Dugin (https://legio-victrix.blogspot.com/2012/03/o-gnostico.html)
Nobre Daniel, gostei muito do seu texto explicando os detalhes da visão do Dugin mas infelizmente o tema não ajuda a pessoas com pouca bagagem filosófica a compreenderem ‘este diálogo’.
Obrigada Daniel por seus textos maravilhosos