Num certo sentido, a mais viva de todas as sociedades é a família. Com efeito, se bem que o Estado como outros grupos sociais inferiores nasça da própria ordem natural das coisas, nenhuma sociedade é tão imperiosa e por assim dizer urgentemente criada pela natureza quanto a família. Podemos conceber a sociedade humana vivendo embrionariamente numa estrutura familiar, anteriormente à existência do Estado. Não podemos conceber o Estado vivendo anteriormente à família, ou sem ela.

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De outro lado, não há sociedade para a qual estejamos tão naturalmente propensos. Todas as disposições de espírito necessárias ao regular funcionamento da família existem em nós — ao menos de certo modo – espontaneamente: o respeito dos filhos aos pais, a compreensão, o amor, o mútuo auxílio, entre os membros. Comparada com a família, qualquer outra sociedade parece hirta, rígida, em certo sentido artificial.

Boas notícias na família - Theodore Gerard (1829-1895)

Boas notícias na família – Theodore Gerard (1829-1895)

Um dos traços característicos da civilização cristã edificada no Ocidente depois da invasão dos Bárbaros consistiu em fazer da família não só uma instituição de vida puramente doméstica e privada, como é hoje, mas a unidade propulsora de todas, ou quase todas as atividades políticas, sociais e profissionais.

A propriedade imóvel era freqüentemente mais familiar do que individual. A casa, a terra, o feudo eram considerados muito mais como o patrimônio da família, do que do indivíduo. O mesmo se deu no artesanato e no comércio, em que se manifestou a tendência de transmitir a profissão de pai para filho, em várias gerações.

Se examinarmos o domínio da ciência e das artes, veremos também com quanta freqüência os membros de uma família se dedicavam ao mesmo ramo.

Na administração tanto feudal, quanto municipal ou real; nas finanças, na diplomacia, na guerra, em todos os campos enfim, notamos que a família enquanto tal era, em toda a medida do possível, a grande unidade de ação e de propulsão. Os feudos, as corporações, as universidades, os municípios, nada havia que escapasse à penetração da família. De tal sorte que o Estado — um reino por exemplo — não era senão uma família de famílias, governada por uma família: a família real.

“…a família penetrava todas as partes do organismo social…” Dia de Mercado – Theodore Gerard (1829-1895)

Com as reservas com que imagens como esta devem ser empregadas, pode-se dizer que a família penetrava todas as partes do organismo social, como as artérias penetram e irrigam todos os membros do corpo humano. E, assim, a família comunicava um que de especialmente vivo, plástico, orgânico, a todas as instituições políticas, sociais, econômicas, etc.

Considerando a estrutura e a vida destas instituições, como sejam corporações, universidades, municípios, impressiona a sua “naturalidade”.

As linhas típicas destas várias espécies de organismo não foram preestabelecidas por algum teorizador acadêmico e imaginoso. Pelo contrário, nasceram paulatinamente de um ajustamento quotidiano às necessidades e aos problemas de cada instante. Por isto, havia nelas algo de profundamente real, a um tempo vivo e ágil, estável e sólido.

E o Estado? Também era algo de muito menos hirto, impessoal, e cheio de arestas do que se tornou depois de 1789. Pelos entrelaçamentos do sistema feudal, um Rei — encarnação do Estado — podia possuir feudos em território estrangeiro. Assim, as soberanias se emaranhavam umas nas outras, as nações se interpenetravam, e sobretudo em certas zonas de fronteira era difícil estabelecer com clareza quando começava um país e cessava outro. Algo de complexo como os tecidos de um corpo, e não simples como as linhas de um esquema mecânico.

Foros de Aragão – Códice Vidal Mayor – 1247. Aqui se representa a compra/venda de uma casa. Na imagem aparece o comprador com o contrato e o dinheiro e o fiador tomado da mão, assim como a esposa com os filhos que deve dar o consentimento.

Se considerarmos as relações entre o todo e as partes, o Estado e os órgãos sociais de que se constituía a nação, a impressão de organicidade vital se torna ainda mais pronunciada: cada órgão é um pequeno todo, como que um reino em ponto pequeno ou até minúsculo, dotado dentro de sua esfera de certas funções governamentais, legislativas, executivas ou judiciárias. Assim, na família, o Pai era um verdadeiro Rei em miniatura, pelo poder que exercia sobre a esposa e os filhos. Característico era o axioma: o Pai é Rei dos filhos; e o Rei é Pai dos Pais. Em algumas famílias, até as leis de sucessão eram peculiares, e diversas das que se aplicavam em todas as outras.

Também nos feudos, o Senhor era uma miniatura do Rei, legislador, governador e juiz dentro da órbita que lhe tocava.

Procissão com a caixa de relíquias de São Marcel, da corporação dos ourives de Paris durante o reinado de Luis XIII (Le moyen äge et la renaissance…Vol III-1848- Paul Lacroix e Ferdinand Séré)

Quanto às corporações, também elas exerciam funções “trabalhistas” — para empregarmos o vocábulo moderno — hoje muitas vezes afetas aos órgãos legislativos, executivos ou judiciários do Estado.

O Rei — simplificando muito as coisas, é claro — tinha apenas a função supletiva de fazer o que por si estes vários órgãos não poderiam realizar, isto é, a tutela dos interesses comuns e supremos que extravasavam do âmbito próprio de todos os órgãos, a manutenção de um justo equilíbrio entre eles, e a vigilância para que no recesso de nenhum deles, se ofendessem os princípios fundamentais da moral e da civilização cristã.

Considerado em seu conjunto este quadro muito sumário, vê-se quanto é orgânico. Cada elemento celular tem funções inteiramente peculiares. Cada qual tem, para o exercício de suas funções, atribuições que lhe tocam por direito próprio, e se move por uma energia que age de dentro para fora, e não de fora para dentro. O bom andamento do todo depende muito mais do bom andamento de cada parte, do que da mera ação do organismo central.