Dirão muitos que um dos grandes problemas da cultura de nosso século é a politização da arte. Digo, no entanto, que esse suposto problema é tão velho quanto praticamente todos os problemas do mundo, desde quando a humanidade foi banida do Éden.

Aristóteles afirmava que o homem é um animal político, ou seja, necessita da organização da comunidade para a completude, para a felicidade enquanto causa final. Mas nem só de dar ordem à sociedade vive o homem, pois o mesmo necessita em dar ordem interior, ou comunicar o caos que vai nas entranhas da alma. O homem é complexo em sua natureza.

O próprio Aristóteles reconhece em sua Arte Poética: “O ato de mimetizar é inato aos homens desde a mais tenra infância e nisso diferem dos outros animais porque é o mais mimético e por meio da mímesis adquire também os primeiros conhecimentos e também quanto ao fato de todos se alegrarem com as mimetizações”. Mimetizar é criar/imitar por meio de técnicas, ou seja, é a própria arte. Por meio da imitação pinta o homem uma tela, produz sons de um instrumento o músico e escreve histórias o poeta. No trecho citado, podemos tirar duas funções básicas da arte: alegrar — como a cidade que proporciona felicidade — e ensinar, passar conhecimento — uma das grandes bases de uma comunidade.

Diríamos, pois, que o homem é um animal potencialmente criador e político, ordenador de si mesmo e do ambiente em que vive. E tais disciplinas se misturam, ora sim, ora também. Para nos determos à antiguidade grega, vamos aqui passar pelo primeiro volume da História da Literatura Ocidental, A literatura greco-latina, de Otto Maria Carpeaux.

Homero foi o maior dos poetas gregos — artista, portanto —, e sua obra era como uma espécie de escritura sagrada:

[…] Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. “Homero”: isto significava a “tradição”, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de interpretação da doutrina e da vida. [Grifo meu]

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Uma das causas da condenação de Sócrates foi a sua “luta contra os poetas”, dando a entender que o filósofo rejeitava os mitos gregos, a tradição, fruto da poesia, que traziam toda uma religiosidade, a influência dos deuses, etc. O método de Sócrates era oposto à narrativa épica de Homero. Sócrates defendia virtudes diferentes dos poetas, que exaltavam grandes atos de coragem, batalhas sangrentas. O filósofo preferia um combate retórico. Foi por se opor, de certo modo, à arte e aos artistas, que Sócrates foi condenado, num ato de grande influência política.

A arte grega confundia-se constantemente com a religião, o Estado e a política, opor-se a ela, em qualquer grau que seja, poderia dar a impressão de oposição a toda uma tradição de ordem social estabelecida.

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Da poesia grega, que foi a maior forma de educação antes — também durante e depois — do surgimento da filosofia e demais disciplinas, surge o teatro, com potencial de alcance e influência elevadíssimo, e como não poderia ser diferente, recheado daquilo que hoje chamamos de “militância” ou até “revisionismo histórico”.

Podemos ver um vislumbre disso em Carpeaux:

[…] O verdadeiro fim do teatro grego — assim reza a tese sociológica — era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito. […] Nada se modifica no mundo humano sem modificação correspondente no mundo divino; o Estado precisa da sanção religiosa dos seus atos, e é o teatro que lhe permite o uso dinâmico dos mitos para sancionar a nova ordem social. [Grifo meu]

E assim era utilizado o glorioso teatro grego, esta antiga arte, para a reinterpretação dos mitos, que eram formas religiosas de arte, conforme a “ideologia” do poeta, do artista. Daí que podemos encontrar versões diferentes de um mito, a depender da fonte. E cada um desses poetas realmente tinha uma forma diferente de entender o mundo. Vejamos alguns:

Ésquilo: “[…] parecia ser representante do conservantismo religioso”, afirma Carpeaux, e até de certo modo de um certo coletivismo. Para Ésquilo, o Estado e a religião, movida pela arte, deveriam deter o poder. Parece até contraditório em nossos tempos, pela visão de conservadorismo religioso que temos, mas Ésquilo é inimigo da família, por acreditar que a mesma poderia se opor ao Estado. Ésquilo é uma espécie de “conservador coletivista”.

Eurípedes: era um “[…] representante do individualismo filosófico”. Por motivos diferentes de Ésquilo, o poeta era inimigo da família por acreditar que a mesma mitigava a liberdade do indivíduo. Para Eurípedes, o Estado era inimigo da tradição e dos valores. Eurípedes é como que um anarquista individualista.

Aristófanes: “De todos os assuntos, Aristófanes vê só o lado político”. O poeta considerava Eurípides como espírito subversivo, como corruptor do teatro grego e o fim da tragédia ateniense. Era uma espécie de oposição, como pode-se ver na peça As Rãs. Aristóteles era um conservador moderado, odiava tanto o espiritualismo exagerado, como o individualista e o coletivista.

O seu conservantismo é um tanto sentimental, elogiando os “bons velhos tempos” e denunciando o “modernismo” perigoso dos “intelectuais” e dos “socialistas”. […] Aristófanes não defende uma ideologia, e sim o sentimento moral, ofendido, de um burguês decente, embora de expressão indecentíssima. Pois também nunca se ouviu poeta tão francamente obsceno, chamando todas as coisas pelos nomes certos.

Sófocles:“[…] foi sempre o poeta preferido dos partidários do equilíbrio […]”. Poderíamos chama-lo, sem eufemismos, de centrista. Mas era também algo como humanista, mas não um humanista conformado, pois “[…] o humanismo grego nunca se esquece da precariedade do mundo […]”.

E. H. Gombrich, historiador da arte, diz que os artistas da antiguidade grega eram conscientes de suas capacidades, e o público também sabia. O historiador ressalta que a arte possuía funções religiosas e políticas:

O grande despertar da arte para a liberdade se deu nos, aproximadamente, cem anos entre 520 e 420 a.C. Em fins século V, os artistas já estavam plenamente conscientes de sua capacidade e maestria — e o público também. […] cada vez mais gente interessava-se pelas obras em si, e não só por suas funções religiosas ou políticas. [A História da Arte, Capítulo 4: O Reino da Beleza. Grifo meu]

Sim, nada novo debaixo do sol. Os artistas são pessoas, têm suas ideias, valores, visão de mundo, e usam da técnica, da arte, para passar adiante tais visões, sejam ou não originais. A arte está aí, para o bem e para o mal. E já estava mesmo antes da organização do Estado grego, da filosofia e história.

E por isso arte é importante, pois é a “mídia”, o meio, a técnica de criar. Se em grego poesia quer dizer criar, arte quer dizer técnica, e é a técnica por qual se cria. A linguagem está em tudo, e a arte está em tudo, comunicando aos quatro ventos, da beleza à feiura, do bem ao mal, da salvação à perdição. No princípio era o logos. Como na política, na filosofia, na história, no jornalis-mo ou no magistério, na arte há agentes de construção e transformação social, a grande questão é: não existe política, filosofia, história, jornalismo ou magistério sem linguagem e técnica. Percebe? O mais importante está sendo ignorado na chamada “guerra cultural”. As premissas foram deixadas como ornamentos para as coisas secundárias e até últimas. É importante ter gosto e o mínimo de conhecimento pelas áreas mencionadas, mas tudo se faz manco sem as premissas, matrizes e nutrizes de toda disciplina que se possa aprender. Na arte não está a culpa total, mas nela poderá conter um vislumbre da solução. Ferramentas podem ser usadas para construir ou destruir.

Não foi Antonio Gramsci quem descobriu o potencial influenciador político/ideológico da arte, não foi Louis Althusser quem inventou que a cultura é um “aparelho ideológico do Estado”. Tudo sempre esteve aos olhos de qualquer observador de hoje e do passado. Claro, é mais que covardia quando artistas e a arte são utilizados por grupos políticos, com poder e fortuna inestimáveis, é um escalonamento perverso do uso da arte.

Por outro lado, os observadores também têm suas “ideologias”, e interpretam as artes à suas maneiras, como apontou o crítico inglês I. A. Richards. Tais ideologias, entram em confronto com as ideologias dos artistas, causando ruído e confusão.

Por força das ideologias, estamos impedidos de “construir frases”, de ler poesia. Por força das ideologias, estamos impedidos de ler no dicionário do Cosmos, de “construir o mundo”. [Otto Maria Carpeaux, Poesia e Ideologia]

É possível que a melhor maneira de lutar a “guerra cultural” seja educando o indivíduo para a liberdade — no sentido de não estar com um olhar enviesado por ideologias políticas —, para que reconheça uma obra tal como é, como foi concebida, e não à sua maneira ruidosa. Assim o público, então educado para a liberdade, poderá julgar, com base em outros critérios — morais, religiosos, etc — o que é bom, útil e agradável para a ordem pessoal e social.

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Para Carpeaux, abstrações como religião, moral pública e privada, são formas de ideologias, que naturalmente, por criarem cosmovisões, enviesam os indivíduos em suas observações no tocante às artes. Mas como o conceito para o autor é amplo, compreendo que é impossível não termos alguma ideologia ou cosmovisão, em tais termos, de qualquer sorte. Dediquei as ideias aqui expressas às ideologias políticas que, ao que tudo indica, são as maiores vilãs de nossa época.


Referências

Aristóteles: A Política

Aristóteles: Sobre a Arte Poética

E. H. Gombrich: A História da Arte

I. A. Richards: Practical Criticism, apud Otto Maria Carpeaux: Poesia e Ideologia

Otto Maria Carpeaux: A literatura greco-latina