Publicado no Diário de São Paulo, 6 de fevereiro de 1936, p. 324. Publicado também em O Jornal, 5 de fevereiro de 1936.
Os Srs. Plinio Barreto e Plinio Salgado são, incontestavelmente, duas sumidades em tudo o que se relaciona com assuntos políticos e sociais do Brasil. Procedentes de polos intelectuais diametralmente opostos, e considerando os recentes movimentos comunistas sob pontos de vista irredutivelmente antagônicos, chegaram ambos, porém, a uma mesma conclusão: de que é preciso opor à pregação do comunismo a pregação do cristianismo, e de que o Brasil deve caminhar, com a Cruz em punho, contra os partidários do marxismo, como o Papa S. Leão que, embora desarmado, pôs Átila em retirada, barrando o seu caminho com a imagem do Redentor Crucificado.
Dada a alta significação de tal tese, seria interessante e oportuno analisar a fundo o pensamento dos Srs. Plinio Salgado e Plinio Barreto, quando apelaram para o cristianismo, como salvação do Brasil.
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Muitos dos liberais que obedecem ao comando intelectual do Sr. Plinio Barreto, atribuem a explosão do comunismo na Rússia ao abuso de poder dos czares e da aristocracia, abuso este que, conjugado com a miséria causada pela guerra, teria provocado a derrocada de 1918. E, sutilmente, acrescenta que o regime liberal-democrático, se vigorasse na Rússia, teria permitido ao povo a expansão franca de seu descontentamento e que, servindo o Parlamento de válvula de escapamento para o vapor da indignação geral, nunca se teria verificado a explosão bolchevista. Assim, o abuso de poder teria sido a principal causa da revolução na Rússia.
Por outro lado, se perguntarmos a um bom número de comandados do Sr. Plinio Salgado quais as causas da onda de comunismo que varre atualmente o mundo, eles nos responderão que é a liberal-democracia. O abuso da liberdade enfraqueceu o senso da disciplina e desorganizou a tal ponto a sociedade, que ela já não pode resistir eficazmente a uma meia dúzia de agitadores (…) que, por toda a parte, ateiam o incêndio da revolução social. E o único remédio contra os males decorrentes do abuso da liberdade não pode ser senão um governo forte que, como o da Itália, detenha os vagalhões do comunismo e instaure uma ordem nova, sobre os escombros do Estado liberal.
O comunismo é um fenômeno mundial. Ele procura alçar o colo, tanto na Índia quanto na Noruega, tanto na Patagônia quanto na China, envolvendo todo o mundo nas malhas de sua propaganda. Um mal mundial há de ter por força uma causa também mundial. Parece-nos errado afirmar que o excesso de autoridade gerou o comunismo na Rússia, se na Itália ultra-liberal ele germinou com igual facilidade. Como também nos parece errado acusar a liberal-democracia de ser a causa do comunismo, se este pôde vencer no autocrático Império moscovita sem o auxílio de qualquer conquista liberal. A meu ver, o liberalismo italiano facilitou enormemente o desenvolvimento do comunismo, como também a política imprevidente dos czares não soube combater o perigo nas suas verdadeiras causas. Mas o caráter mundial do fenômeno comunista prova bem que, embora as condições locais italianas ou russas possam ter facilitado o mal, elas não foram propriamente a sua causa.
Esta causa, em que pese aos materialistas, também não é a miséria, pois que, no Brasil, a miséria não existe, como reconheceu em carta recentemente publicada, o caudilho comunista Luiz Carlos Prestes. E, no entanto, não faltou quem atentasse à mão armada contra as instituições.
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Qual esta causa? Não nos iludamos a este respeito. O homem contemporâneo padece de um mal moral que é o câncer que corrói os mais belos frutos de nossa civilização. A sociedade atual quer alicerçar sua organização sobre duas instituições que são irreconciliavelmente adversárias do egoísmo: a família e a propriedade. Ora, o homem contemporâneo é profundamente egoísta e, com isto, falseia tanto a família quanto a propriedade. Daí decorre uma perturbação profunda em todo o corpo social. E com isto as portas ficam abertas para todos os germens comunistas.
A vida de família, na grande maioria dos casos, vai se tornando cada vez mais artificial. Para os filhos, sedentos de prazer, o jugo da autoridade paterna é intolerável. Os pais não são, aos seus olhos, senão administradores da fortuna familiar, a quem se deve não só pedir, mas exigir o dinheiro necessário para os prazeres. Por sua vez, a sede de prazer minou profundamente o sentimento do amor paterno. Os pais evitam o nascimento dos filhos, com todo o cuidado com que se evitaria a chegada de um inimigo. Quando necessário, não recuam diante do aborto. Nascido o filho, a despeito de todas as precauções, determina-se-lhe no lar e principalmente no orçamento doméstico, o menor lugar possível, para que reste algum dinheiro para gastos suntuários. Finalmente, o sentimento da fidelidade conjugal, que é um alicerce indispensável da família, combatido pelo romance, pelo teatro, pelo cinema, apresenta uma debilidade assustadora.
Proclama-se que a família é a base da sociedade. E, exatamente por que esta verdade fundamental é tão geralmente aceita, admira-nos a inconsciência tranquila com que se ataca essa base e o pasmo que muitos sentem ao verificar, depois, que o edifício social começa a vacilar.
A outra base da sociedade é a propriedade. Mas a propriedade deve ser usada sem egoísmo, sob pena de se transformar em fonte de perturbações sociais graves. Cumpre, aliás, acentuar que a supressão da propriedade não remediaria, mas apenas agravaria de forma desesperadora, tais perturbações.
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No entanto, vemos por toda a parte que o egoísmo, produzindo um desejo imoderado de bens materiais, perturba profundamente a vida econômica. A famosa luta das classes outra coisa não é senão o choque de dois egoísmos ilícitos, o egoísmo dos que são ricos e querem conquistar cabedais ainda maiores, e o egoísmo — absolutamente tão criminoso e mais estúpido do que o primeiro — dos que são pobres e querem enriquecer à custa do saque da fortuna alheia.
E não é apenas a vida doméstica e a vida econômica, mas também a política interna e a política externa da maior parte dos povos, que se ressente das perturbações causadas pelo egoísmo. Princípios, ideais, virtudes, o que vale isto na maioria das lutas políticas travadas entre partidos? Que vale isto nas contendas internacionais que a todo momento ameaçam incendiar o mundo? Atrás dos manifestos políticos retumbantes, das notas diplomáticas sentenciosas, quanta e quanta vez se surpreende a ganância e a ambição, a jogar com os princípios mais veneráveis e os direitos mais sagrados, como mero artifício de pirotecnia para entusiasmar as massas?
Se a família e a propriedade são a base da sociedade contemporânea, mas o egoísmo do homem do século XX deturpa a vida doméstica e atenta contra a propriedade alheia, que milagre pode haver em que a sociedade vacile sobre seus fundamentos abalados e esteja prestes a cair, desde que lhe dê um leve empurrão a mão criminosa de um aventureiro qualquer?
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Compreenderam-no os Srs. Plinio Barreto e Plinio Salgado. E exatamente por isto, perceberam que a campanha anticomunista não se poderia cifrar a um ataque aos princípios de Marx. Para que a campanha anticomunista surta pleno efeito, cumpre que ela não se apresente tão-somente como destruidora de um erro, isto é, do comunismo, mas ainda como a afirmação de princípios robustos que supram com vantagem todas as soluções que o comunismo propõe para os problemas contemporâneos.
Exatamente por esta razão é que apelaram ambos para o cristianismo. Estará com eles a razão? Será a Igreja capaz de executar a tarefa que dela esperam os dois ilustres escritores?
É o que veremos em outro artigo.