Em 30 de novembro de 2012, eu estava no intervalo entre minhas aulas em uma escola de Campinas quando resolvi olhar meus e-mails, e eis que tive uma surpresa: no dia anterior, em Seattle, nascia minha sobrinha Anita, uma guerreira desde sempre. Naquele dia minha irmã Rita, grávida de seis meses e meio, e de uma criança que tinha UGR (uterine growth restritcion, o que a definia literalmente como subdesenvolvida), teve uma pré-eclâmpsia. Começou a sentir uma indisposição que foi crescendo, com pressão alta e falta de ar. A providência divina fez-se presente no rápido auxílio da vizinha Debora (nome do meio de Anita), que imediatamente levou minha irmã ao hospital, e na destreza do obstetra de plantão. As duas, mãe e filha, ficaram bem.

Os próximos anos a partir dali não foram exatamente fáceis para a família Turner (sobrenome do meu cunhado Andrew, um daqueles canadenses enormes que a gente vê nos filmes). Anita nasceu minúscula, parecia uma daquelas bonecas bebês em miniatura, e em seus primeiros dias de vida pós-natal quase cabia na palma da mãozorra de seu pai. Sua musculatura não estava pronta (faltavam-lhe os glúteos, por exemplo), seu pulmão ainda não estava formado, não tinha sensibilidade nos lábios. Entre respiradores e sondas, teve que permanecer no hospital por mais quase seis meses depois de nascer. Ter alta e precisar deixar a filha internada, ainda que voltasse todos os dias para vê-la e passasse a maior parte do tempo no hospital, foi certamente a cruz mais pesada que minha irmã já carregou.

Naqueles meses de internação pós-parto Anita cresceu bastante, mas ainda era uma criança bastante frágil, mirrada e com um sistema imunológico praticamente inexistente. Com essa debilidade imunológica e seus pulmões ainda não totalmente desenvolvidos, seu primeiro ano de vida após sair do hospital foi todo dentro do apartamento, pois o frio de Seattle poderia matá-la. A sensibilidade nos lábios demorou para se desenvolver também, o que fez com que a pequena tivesse que se alimentar por uma sonda na barriga durante os dois primeiros anos de vida.

Com muito amor e paciência, minha irmã e meu cunhado foram aos poucos auxiliando-a no desenvolvimento de sua deglutição, passando da papinha mais mole para a mais consistente, da fruta “esgabacenta” e amassada para a mais firme etc. Quando Anita conseguiu comer seu primeiro cookie (lá não tem essa de biscoito ou bolacha, é cookie), fizeram uma festa para comemorar (mesmo!). Foram tempos difíceis, que demandaram sacríficos e doação quase que integral dos pais para pequena. Tempo em que sobraram aflições e transbordou amor.

Pois bem. Aquelas tempos ficaram para trás. Anita cresceu, se desenvolveu e tem hoje uma saúde de ferro. Tem feições de uma princesa da Disney (das clássicas), come de tudo, é atlética, puxou a altura e os enormes pés e mãos do pai. A criança mirrada, frágil e debilitada tornou-se uma recordação que pode ser vista nos álbuns da família e revisitada nos corações de Rita e Andrew.

Não tem um dia em que eu não agradeça a Deus por Sua misericórdia, por ter estado presente na presteza da vizinha Debora e do médico plantonista, por ter dado a minha irmã e meu cunhado toda a força de que precisavam para enfrentar os anos difíceis que se seguiram, por ter cuidado da saúde de Anita para que ela pudesse ser a criança maravilhosa que é hoje, essa verdadeira princesa guerreira. Em especial, agradeço por ter estado o tempo todo no coração da minha irmã naquele 29 de novembro, quando nem sequer por um segundo lhe passou pela cabeça a possibilidade de sacrificar a filha para salvar a própria vida, como poderiam lhe sugerir alguns demônios que andam por nosso mundo. Mãe e filha corriam grave risco de morte, e mãe e filha viveram.

Sempre que vejo ou leio notícias relacionadas ao aborto, penso em Anita. Por isso, 2020, o ano que não queria acabar, em que uma menina do Espírito Santo, praticamente da mesma idade que minha sobrinha quando nasceu, foi assassinada por meio de uma solução salina e com o consentimento da própria família, e em que os parlamentares argentinos resolveram dar as mãos a seu presidente socialista para um futuro mergulho nos mais profundos círculos do Inferno, foi o ano em que mais pensei nela. Vejo a cultura da morte se espalhando como um câncer maligno e implacável pelo mundo, e inevitavelmente penso na pequena. Volto a agradecer a Deus por ela, e ao mesmo tempo me revolto por todas as outras crianças que sequer tiveram a oportunidade que ela teve de se tornar essa princesa guerreira (como bem questionou recentemente o professor Olavo de Carvalho, “se o aborto tivesse sido sempre permitido no Brasil, tem certeza de que você existiria?”).

Enfim, pequena Anita, que Deus te abençoe, e que em Sua infinita misericórdia Ele possa te reservar, neste mundo ou no próximo, tempos melhores que os de agora.