Alguns já andam a comemorar o centenário da Semana da Arte Moderna no Brasil, outros andam a lamentar tal acontecimento, muitos, ainda, estão indiferentes às influências da arte, mesmo sendo vítimas, construções, servos ou consumidores dela em algum nível.

Já alertava o historiador da arte E. H. Gombrich da dificuldade de fazer juízo da arte de uma época ainda estando inserido na mesma. Mas com 100 anos, desde o movimento de “vanguarda”, já podemos considerar uma boa amostra, ainda considerando que a “arte moderna” chegou tarde no Brasil.

Devo alertar que o debate sobre a arte moderna não é novo e ambos têm a mesma idade. O que chamamos de modernismo é algo complexo, cheio de ecletismos, contradições, especificidades a depender do local em que se faz. Vai além da arte — o que já seria um eterno pano para perpétua manga —, passa pela política, comportamento social, mercado, espiritualidade e toda e qualquer construção humana. Enquanto artista, trago algumas considerações para somar ao escatológico debate:

  1. Nosso problema não deve ser com a arte moderna, mas com o homem moderno. O artista, em qualquer que seja o seu tempo, é o comunicador de mais alto nível do espírito de sua época. Aniela Jaffé, analista junguiana (1903–1991), esclarece essa relação artista-época em seu ensaio O simbolismo nas artes plásticas, presente na obra organizada por Jung, O homem e seus símbolos: “[…] o artista sempre foi o instrumento e o intérprete do espírito de sua época. Em termos de psicologia pessoal, sua obra só pode ser parcialmente compreendida. Consciente ou inconscientemente, o artista dá forma à natureza e os valores da sua época, que, por sua vez, são responsáveis pela sua formação”.

Em outras palavras, o artista moderno foi formado pelo modernismo, ainda que tal movimento não tenha sido formalizado pela arte que haveria de vir, num rompimento natural e contínuo, observado ao longo da história, sempre que os “moldes criadores” esgotam suas possibilidades de criação — bem como na filosofia, como observa Olavo de Carvalho em seu ensaio Poesia e Filosofia.

Todas as acusações que podem ser dadas à arte moderna são acusações ao homem moderno, formador do modernismo e perpetuador do mesmo, por meio deste. A arte moderna é abstrata porque o homem moderno o é; a arte moderna é confusa porque o homem moderno o é; a arte moderna é fugidia, obscura, disforme, distante, intemperante… porque o homem moderno o é. Aponte um pecado para a arte moderna, e refletirá este por algum espelho existencial ao homem moderno. O artista moderno é, antes de tudo, um homem moderno. Eis o nosso trunfo.

Se podemos compreender melhor o homem moderno por meio de sua arte, devemos então deter mais atenção cirúrgica em suas criações, afim de ler o espírito humano de modo cristalino, e usar de tal leitura como ponto inicial de correção moral. A principal virtude da arte moderna é dizer-nos o que é o homem moderno. Oh! e como ela diz…

Ressalto que grandes artistas surgiram e até ajudaram na “fundação” da arte moderna: T. S. Eliot, Rilke, Fernando Pessoa, Drummond e Rodin são bons exemplos, expressando os mais calorosos sentimentos de seus espíritos, inseridos num tempo comum aos demais homens.

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Minha percepção é de que a literatura pouco sofreu com o modernismo, se comparada à música, à escultura, à arquitetura, à pintura e demais artes. Não posso provar.

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Artistas de mal gosto obviamente surgiram à grande, como criticou o próprio Drummond — participante da chamada segunda fase do modernismo —, em entrevista a Luiz Fernando Emediato, publicada no Estado de S. Paulo dois dias antes de sua morte: “O que há hoje no Brasil é uma diluição da poesia brasileira em termos até chatíssimos, porque todo mundo agora faz poesia, e ninguém faz poesia. É uma coisa incrível. O mal disto vem do Modernismo. O Modernismo rompeu, inovou, criou, deu novas formulações estéticas, mas ao mesmo tempo permitiu que todo mundo que não sabe escrever escrevesse. O pessoal não tem a menor noção de ritmo, de criação verbal, e faz versos. Todos os dias agora aparecem antologias, e então aparecem duzentos poetas.”

  1. Toda arte é moderna em seu tempo. O problema da arte moderna não é por ser moderna — como pensam muitos —, pois toda arte é moderna, atual, corrente, com relação a seu tempo. Até os renascentistas, que propuseram um retorno às artes clássicas, eram modernos, pertencentes à sua época, por pior que a considerassem, e trouxeram novidades, inventividades ao que era antigo, conforme idealizavam o passado. O problema é que a arte moderna perpetua a “modernidade” que há no homem: o vazio, a obscuridade, a dessacralização, a irreverência com as tradições, a ânsia de criar utopias sociais, etc. Eis o velho dilema materializado: a arte imita a vida e a vida imita a arte.

Diz-se que para sanar um problema é preciso conhece-lo bem. A arte moderna é autoconhecimento de si mesma, do problema, e merece atenção e um tanto de bom senso seletivo.

  1. A crise na arte não é novidade. Não é necessário muito conhecimento em história da arte para percebermos que o problema da “crise” e decadência não é algo novo. Sempre foi um problema em moda, moderno. Na história da literatura Ocidental de Carpeaux estão registradas várias. Trago o exemplo dos gregos que, em certa altura, por volta da guerra do Peloponeso, queixavam-se da decadência artística. Aristófanes, em uma de suas peças, As Rãs, narra a trajetória do deus Dioniso rumo ao mundo dos mortos, reino de Hades, para buscar um poeta talentoso, afim de restaurar o teatro grego. Ésquilo teria sido o escolhido para retornar à vida.

Em sua História da Arte, o professor Gombrich nos mostra como um padrão elevado na pintura do século XVI — com a contribuição de Michelangelo, Rafael, Ticiano e Leonardo — trouxe um tempo de crise, pois os novos pintores, ainda que discípulos dos antigos, não conseguiram alcança-los em talento, tendo então que apelar para a inventividade, para o “diferentão”.

  1. O pior da arte moderna: nem sempre é orgânica. Ainda que concordemos que o artista reflete seu tempo, sabemos que o mesmo pode, e é, usado para propaganda ideológica. E eis um grande problema da arte moderna, talvez o maior: é ferramenta de propaganda política-ideológica. E até onde sei, e pelo que escuto por aí, ainda o será por muito tempo.

Além de tais motivos — refletir espírito do tempo e propaganda — a arte moderna pode ser fruto da necessidade de novidade, como narrou Gombrich a respeito do século XVI: “[…] o que hoje se chama de arte “moderna” pode ter se originado de um impulso […] para evitar o óbvio e alcançar efeitos que se afastem da beleza natural convencional.”

Não podemos descartar que a própria modernidade trouxe facilidades e acessos para a produção de qualquer forma de arte, como na literatura, com a formação de um cenário comercial propício à publicação de qualquer obra — como vimos na crítica de Drummond.

Não há uma única resposta, creio que todas as possibilidades coincidiram para a formação da arte moderna: refletir espírito do tempo, propaganda político-ideológica, inventividade e cenário de acessibilidade. Dentre tais motivos, o político-ideológica é o grande vilão. A questão que deixo em aberto é: pretendemos apenas mudar a chave de tal vilão, ou mitiga-lo? — pois destruir é impossível.