Fé verde, Vocação vermelha: Teologia da libertação e a aparição das demandas ambientais nos anos de formação do Foro de São Paulo – Vol. I

“Criado a partir de uma convocatória de Luís Inácio Lula da Silva e Fidel Castro a partidos, movimentos e organizações de esquerda em julho de 1990, a reunião que deu origem ao Foro tinha naquele momento o objetivo de refletir sobre os acontecimentos pós-queda do Muro de Berlim e os caminhos alternativos e autônomos pela visão da esquerda da América Latina e Caribe, para além das respostas tradicionais. ´ em `Histórico do Foro de São Paulo” — 30 de julho de 2014[1]

Introdução:

Antes de iniciar oficialmente suas atividades naquele rigoroso inverno de 1990, O Foro De São Paulo foi minuciosamente pensado, planejado, preparado e financiado por uma cadeia de contatos construídos ao longo de pelo menos meio século de um intercambio prolixo entre às várias colorações da esquerda latino-americana e mundial. Com a consolidação da ditadura de Fidel Castro em Cuba já em agosto de 1967 é criado o embrião do Foro, a Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS). No Brasil do regime militar, que proibira o comunismo por lei, foram vários os militantes que optaram pela luta armada, treinando especialmente em Cuba; outros tantos, preferiram intervir pela via das cátedras, fazendo das universidades (especialmente de humanidades) um ´porto seguro´ para o que havia de mais moderno em termos de revolução (incluindo aí marxismo, desconstrutivismo, pós modernismo, estruturalismo, etc). O que incluía tanto universidades públicas quanto instituições privadas, especialmente às relacionadas com a Igreja Católica Romana.

Aqui é de especial importância a ação de um grupo minoritário na Igreja Católica Romana que, notadamente na américa latina, arregimentou parte significativa da estrutura educacional, vocacional e física da Igreja como um instrumento na difusão de ideias abertamente em conflito com a doutrina oficial da Igreja, em uma experiencia que fundia a doutrina social da Igreja católica com um sindicalismo de contornos fascistas e, finalmente, com uma antropologia abertamente marxista. Tendo como consequência direta a mudança do eixo central desse grupo, originalmente religioso, da imitação de Cristo proposta pelos santos padres, para a beatificação da Criação e, consequente, opção pela militância aberta em prol de causas ditas ´ecológicas´. Dedicando a elas um verdadeiro Catecismo que hoje já inclui em seu ideário a apropriação de aspectos devocionais da fé cristã. Como o ato de jejuar, que é regulado pelo Direito Canônico da Igreja Católica (Canon 1251)[2] ,  e mimetizado por movimentos ambientais alarmistas como um ´ato de conscrição´ verde em arrependimento pelo consumo de proteína animal.

Ato de fundação do PT em 10/02/1980 no auditório do tradicional Colégio católico Nossa Senhora do Sion, em Higienópolis, São Paulo. O partido podia não ter patrão, mas já tinha dono.

A Teologia da Libertação e a promoção do socialismo: Atualização materialista da Doutrina Social da Igreja

“Nunca foram os Franciscanos entre nós senão uns boêmios da ação religiosa em contraste com os Jesuítas, sempre bem ordenados nos seus esforços. Data, entretanto, do curso de estudos superiores fundados por eles, o ensino oficial, entre nós, das línguas francesa e inglesa.” Gilberto Freyre – Sobrados e Mucambos

A Teologia da Libertação não é uma simples ideia, é toda uma tentativa de interpretação do Cristianismo pela exclusão do transcendente, uma visão teológica baseada exclusivamente no imanente terreno. Fazendo uma leitura materialista da Bíblia dando a está uma conotação lógica, racional e científica aos moldes do racionalismo cartesiano  lá do século XVII .E usando a dicotomia pobre versus ricos para justificar uma ação reparatória na Terra.

Otto Maria Carpeaux quando comenta sobre a obra do pensador inglês Thomas Hobbes ´Leviatã, ou a matéria, a forma e o poder de uma comunidade eclesiástica e política´ publicada em 1651, nos alerta:

´Que nos importa, a nós outros, um livro encadernado em couro de porco, e velho quase de três séculos: e demais, obra de um filósofo, de um daqueles homens que passeiam nas nuvens! Os que assim falam não sabem que estão professando, as mais das vezes, qualquer filosofia inconsciente, que não recebem de um mestre, mas do ambiente e do ar, sem se darem conta das consequências, às vezes perigosas, desse estado de alma cômodo. ´Que o próprio Hobbes lhes replique: ´Atualmente, os homens comportam-se com a filosofia como nos tempos primitivos com os frutos do campo. Tudo está crescendo agreste, sem cultura nem cuidado. A maioria, então, está-se nutrindo de bolotas sem valor alimentício, e às vezes, saboreando uma baga desconhecida, apanham uma indigestão. Do mesmo modo, os que confiam só nas experiencias pessoais passam por mais sabidos do que aqueles que apetecem as doutrinas filosóficas. ´Com essas palavras Hobbes define a relação comum entre a filosofia e a política; relação que continua assim, até que, um dia, os homens práticos, experimentados, já não saibam como continuar. Então, o apelo à filosofia vem tarde demais. ´ [3]

Estando calcada em uma filosofia perene, a Igreja Católica Romana pode ser considerada como a fonte e repositório da própria cultura ocidental, mantendo em seu corpo um diálogo continuo que ao longo de sua história brindou a humanidade com contribuições em todas as áreas do saber e, especialmente relacionado ao tópico, na área da dignidade e do respeito ao ser humano em todas as suas fases e espectros incluindo no âmbito da terra (hoje denominada ecologia) e do trabalho. A questão trabalhista, oriunda especialmente dos impactos da Revolução Industrial, entra definitivamente na pauta da Igreja em 1891, com a Encíclica do Papa Leão XIII (1810-1903) Rerum Novarum (Das Coisas Novas, tendo como subtítulo – ´Sobre a Condição dos Operários), que abortava questões legítimas, a então recente impessoalidade e atomização burocratizante na dinâmica das relações entre empregado e empregador, questões de um rebanho que necessita da liderança de seu pastor. A encíclica, que surgiu em um ambiente de renascimento de filosófica tomística patrocinada pelo Papa, ficaria conhecida no século XX como o documento que traz às bases da própria doutrina social da Igreja Católica. E que foi, a medida em que o movimento revolucionário vai ganhando espaço, sendo reivindicado por radicais e que vai ganhar forma no período pós conciliar no final dos anos 60 do século XX com o nome de Teologia da Libertação.

É vital lembrar que a Encíclica é profundamente anti-revolucionária, trazendo em seu tópico de número sete o título: O Comunismo, princípio do Empobrecimento – Dizendo lá em 1891:

´Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que Nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade colectiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. ´

A importância da questão do trabalho, do uso da terra e de toda a multiplicidade de aspectos morais, éticos e legais vai ser largamente abordado por parte da intelectualidade cristã e será a principal barreira ao avanço das ideias revolucionarias e, especialmente comunistas até meados dos anos 60 do século passado. O marco histórico da intromissão revolucionária na Igreja é a Segunda Conferencia do Episcopado Latino-Americano na cidade de Medelín, Colômbia no ano de 1968 e que será coroada na III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, no México, em Puebla de Los Angeles, entre 27 de janeiro e 13 de fevereiro de 1979 em meio a um continente envolto em ditaduras militares. 

No Brasil os primeiros grandes defensores da teologia da libertação não vieram da esquerda radical ou os partidos que tradicionalmente alinhavam-se com Moscou ou Havana, e sim pessoas que eram reputadas como conservadoras, e que usavam a sua autoridade para legitimar a nova teologia e revesti-la de uma aura ´não alinhada´. Por exemplo, uma das primeiras autoridades eclesiásticas a abraçar tal causa foi o Bispo Dom Helder Câmara, que desde os anos 30 já tinha ligações com movimentos sindicais de cunho fascista, em especial ao Integralismo de Plínio Salgado. Também uma importante figura na hierarquia, Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), oriundo da ordem Franciscana e laureado acadêmico com doutorado na Sorbonne, como arcebispo de São Paulo, tornou-se uma das figuras mais representativas da luta contra o regime militar (1964-1985). Sempre foi uma figura com entrada nos altos escalões governamentais como ele mesmo diz em uma entrevista em 2004: ´Com o Geisel, eu tive alguns encontros. O primeiro, por intermédio de Golbery, na casa de um irmão de um bispo no Rio. Depois, eu fui procurá-lo por causa das terras da Amazônia, que estavam sendo tomadas pelos paulistas. Mais de 20 caciques se reuniram e pediram para eu fazer qualquer coisa. Eu telefonei para ele (sabia o telefone particular exclusivo dele) e perguntei se podia me receber. Cada vez eu levava um problema específico, ele me dizia assim: “Eu hoje gostaria de trocar o SNI pelas comunidades de base, porque elas dizem a verdade para o senhor e o SNI nos tapeia, engana”. ´´ [4]

Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife e um dos fundadores da CNBB ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. Ambos atuantes defensores da Teologia da Libertação.

Já no campo laico, Alceu Amoroso Lima, que adotou o pseudônimo literário de Tristão de Athayde e que foi uma das principais lideranças do laicismo católico, herdeiro intelectual de Jackson de Figueiredo (1891-1928) criador do Centro Dom Vital e da influente publicação, A Ordem. Ao contrário de Dom Hélder, Alceu não foi oficialmente integralista, mas flertou com o movimento recomendando aos católicos o voto nos candidatos da AIB em seu livro ´Indicações Políticas ‘de 1936. Não sei se cabe falar aqui de uma mutação ideológica radical, pois os movimentos fascistas sempre tiveram claras vertentes modernistas, antiliberais e revolucionárias, mas fato é que Alceu Amoroso passou do catolicismo tradicional tomista para a defesa explícita da nova teologia já agregando abertamente o pensamento de Karl Marx. Não é coincidência que ele tenha introduzido no Brasil, ainda nos anos trinta do século XX, a obra do filósofo católico francês Jacques Maritain. Que, por sua vez, também foi de ideólogo de um corporativismo católico para um dos sistematizadores das mudanças que foram introduzidas com o Concílio do Vaticano Segundo.

O líder católico, Alceu Amoroso Lima, recepciona o escritor francês Jacques Maritain e sua esposa, Raissa Maritain, em sua chegada ao Rio de Janeiro em 1936.

 Quando perguntado como via o fenômeno da Teologia da Libertação, diz Alceu em 1983:

Com a maior simpatia. Ela restabelece perfeitamente que não há dissociação entre o espiritual e o real. Distingue o que é espiritualidade, o homem voltado para a sua salvação eterna, e a realidade do homem vivendo no meio, no centro da história. A teologia da libertação ressalta, justamente, a mensagem sobrenatural de que um homem é um ser livre e que pode ter até mesmo a liberdade de não crer em Deus; é um ser que pode e deve realizar a sua salvação por meio do combate, da luta, na terra e na história, contra os inimigos dessa salvação. É a teologia que realiza aquilo que Marx situou no centro de sua concepção filosófica. Marx dizia que os filósofos tratavam de investigar a História e que a Filosofia devia procurar modificar a sociedade, muda a História. É exatamente o que se procura fazer agora, através da teologia da libertação, que é a verdadeira mensagem divina, mensagem de Deus, mensagem de Cristo, que não trata apenas da Igreja voltada para a salvação individual das almas, depois da morte, mas da Igreja da realização na Terra daquilo que é a base de todo o convívio social, da justiça e da paz. ´[5] 

Outro pilar para o advento da Teologia da Libertação, é de movimento Economia e Humanismo que, segundo Alfredo Bosi (1936-2021) professor emérito da USP:

´ …um dos projetos mais vivos e promissores que conheci na juventude, o movimento Economia e Humanismo fundado pelo dominicano padre Lebret. Trata-se de uma das matrizes da passagem que se operou, entre os anos 1950 e 1960, de um tímido catolicismo de centro (o da democracia cristã ocidental) para o vigoroso cristianismo de esquerda no Brasil.

O fato de a Província Dominicana de São Paulo estar vinculada aos dominicanos franceses conta entre aquelas circunstâncias felizes que mudam o rumo de uma instituição. A França dos anos 1930 aos 1950 foi um viveiro de intelectuais cristãos que se posicionaram contra as tendências de direita que rondavam o clero europeu e latino-americano. Em face da ocupação nazista, esses intelectuais elaboraram um pensamento político não só antifascista (como é o caso do grupo da revista Esprit fundada por Emmanuel Mounier e da militância democrática de Jacques Maritain), mas abertamente anticapitalista e anti-imperialista, de que é exemplo Economia e Humanismo criado pelo Pe. Lebret no começo dos anos 1940.´[6]

O livro Fidel e a Religião, cuja primeira edição é de 1985, foi usado como uma maneira de melhorar a imagem do ditador. Editado em 32 países, só em Cuba ´vendeu ‘mais de um milhão de exemplares.

Do marxismo ortodoxo para o ambientalismo heterodoxo

“A teologia da libertação e o discurso ecológico têm algo em comum: partem de duas chagas que sangram. A primeira, a chaga da pobreza e da miséria, rompe o tecido social dos milhões e milhões de pobres no mundo inteiro. A segunda, a agressão, sistemática à Terra, desestrutura o equilíbrio do planeta, ameaçado pela depredação feita a partir do tipo de desenvolvimento montado pelas sociedades contemporâneas e hoje mundializadas. Ambas as linhas de reflexão e de prática partem de um grito: o grito dos pobres por vida, liberdade e beleza (…) e o grito da Terra que geme sob a opressão”. Leonardo Boff -´Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres´

A Teologia da Libertação, que teve o seu principal campo de atuação na América Latina, teve a sua concepção intelectual na Europa, em especial na França. A influência da cultura francesa no Brasil fazia-se presente desde sempre, mas com fim da Segunda Guerra e a divisão do mundo em dois blocos a cultura filosófica oriunda da França ganhava contornos de uma terceira via. Ainda segundo Alfredo Bosi:´ A influência do pensamento católico francês também foi intensa na formação do Movimento pela Educação de Base (MEB) nos anos 1960. Apoiado por D. Helder e pela CNBB, o MEB envolveu clérigos e leigos em ações pastorais e voluntárias de combate ao analfabetismo, o que os aproximou de Paulo Freire, que passou a orientar as ações em favor da educação popular, especialmente nas áreas rurais.´

Aqui é necessário situar historicamente que, com a repressão pelo regime Militar dos sindicatos e movimentos sociais urbanos, o movimento revolucionário passa a migrar de suas bases tradicionais e atuar com maior desenvoltura no interior e nas partes rurais do Brasil. Os episódios da luta armada contra o regime, explicitam o porto seguro que a imensidão do interior garantia. A Igreja Católica já possuía missões em grande parte dessas localidades e contava com o respeito dos habitantes, coisa que os revolucionários da luta armada não chegaram a conseguir. Uma exceção seria a figura de Euclides Fernando Távora, um militante do Partido Comunista Brasileiro que fugiu para o Acre após o fracasso da intentona de 1936 e que teve uma atuação educacional sendo o mestre que alfabetizou politicamente a Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes (1944-1988).

Chico Mendes visto aqui na frente ao sindicato dos trabalhadores rurais, foi uma das primeiras lideranças autóctones a unir o discurso socialista com a preservação da natureza local.

Segundo o verbete com o seu nome na  Fundação Getúlio Vargas: ´Chico Mendes atuou até 1975 junto a seringueiros alfabetizando-os e conscientizando-os dos meios empregados pelos seringalistas para explorá-los. Sua atuação desagradava muita gente e por isso chegou a ter que se esconder para não ser preso. Em 1975 ingressou no movimento sindical como secretário-geral do recém-fundado Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia (AC). Com a morte do presidente do sindicato, Wilson Pinheiro, assassinado com um tiro na sede da entidade, Chico Mendes tornou-se o principal articulador da categoria. Chico Mendes participou em 1977 da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. Em novembro do ano seguinte, elegeu-se vereador à Câmara Municipal de Xapuri pela legenda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao regime militar instalado no país em abril de 1964. Em 1979, transformou a Câmara num fórum de debates entre lideranças religiosas, sindicais e populares e passou a receber as primeiras ameaças de morte. Acusado de subversão, foi detido e submetido a interrogatórios e tortura por policiais do estado. Suas iniciativas também não eram bem vistas por seu próprio partido. Assim, com a extinção do bipartidarismo em novembro de 1979 e a posterior reorganização partidária, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação criada em 1980 e da qual foi um dos organizadores no Acre.[7]´

Sobre ele fala o Frei Betto: ´Conheci Chico Mendes no início da década de 1980, quando a esquerda ainda encarava a questão ecológica com preconceito, sem compreender sua ilimitada força política, na medida em que supera partidarismos e agrega pessoas de todas as classes sociais, inclusive crianças.´[8]

O frei, cujo nome de batismo é Carlos Alberto Libânio Christo, é uma figura impar na história da Teologia da Libertação, levando a sua interpretação a conclusões que uns diriam extremas, mas que tem lá uma lógica dentro da dialética do Marxismo. A luta armada, como ficou chamado os movimentos de insurreição, aliando em seu corpo às diversas tendencias do caleidoscópio da esquerda, surgiu no final dos anos 1960-70 no Brasil (até antes se considerarmos a preparação feita ainda anteriormente ao movimento que resultou na deposição do governo Jango em 1964) e que contava em suas fileiras com um número considerável de elementos ligados, seja por educação ou função ou ambos, à Igreja Católica. Frei Betto notabilizou-se não por ser um teórico da nova teologia, mas sim por colocá-la em prática custe o que custar. O que justifica a sua participação no grupo do guerrilheiro marxista-leninista Carlos Marighella (1911-1969) e o seu movimento, Ação libertadora nacional, que utilizavam-se de meios violentos como assaltos, sequestros e assassinatos. Coisa que, é claro, despertou uma reação repressiva dos militares dando um ótimo álibi para a escalada cada vez mais autoritária que, mesmo tendo êxito em acabar com os focos de guerrilha e tendo ótimos números econômicos, esvaziou o ambiente político nacional, restringindo o debate ao meramente tecnocrático, se muito.  

Voltando ao Sr. Mendes, ele utilizava de métodos incomuns à época para preservar áreas florestais, como o uso de crianças e senhoras para cercar a reserva e agir como um escudo humano contra os ´inimigos da mata´. O farto uso dos contatos internacionais tanto da Igreja quanto dos vários movimentos que foram criados entorno da mesma agenda ecológica, faz com que Chico Mendes ganhe primeiro o reconhecimento internacional para que , depois, tenha sua figura relacionada a um herói pelos seus partidários e mártir após o seu falecimento.

Tanta força teve o ambientalista que conseguiu sustar um empréstimo do Banco Mundial para a pavimentação da BR-364, no Acre, ´alegando que o projeto não previa proteção das terras dos índios ao longo da rodovia. A decisão do organismo internacional fora tomada, em grande parte, devido à informação de Chico Mendes de que o asfaltamento beneficiaria sobretudo um punhado de grandes proprietários de terra na região. ´[9]

´Na imprensa nacional, o assassinato ganhou as manchetes e as primeiras páginas; nos jornais estrangeiros também foi noticiado com destaque, sendo cobrada do governo brasileiro uma postura enérgica para a resolução do crime e a punição dos culpados. Reportagens sobre queimadas na Amazônia tornaram-se então freqüentes nas televisões e em revistas no Brasil e no exterior. Pressionado pela opinião pública mundial, o governo enviou para Xapuri o diretor-geral da polícia federal, Romeu Tuma, e o secretário-geral do Ministério da Justiça, José Fernando Eichemberg. Um mês depois do assassinato foi realizado ato ecumênico no Congresso americano em homenagem a Chico Mendes.´[10]

Velório do militante Chico Mendes, dezembro de 1988, palanque para Lula reivindicar o monopólio das virtudes éticas, ambientais e morais às vésperas da fundação do Foro de São Paulo. Ao seu lado Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014), ambos eleitos com expressiva votação nas eleições para deputado federal constituinte em 1986.

A canonização de Chico Mendes já estava feita graças a um trabalho árduo de vários atores, agora seria utilizar politicamente o novo capital, o da ´ética ecológica´. O Frei Betto já tinha uma amizade de longa data com o Sr. Betinho (Herbert José de Souza 1935-1997) que foi o responsável pela parte de um movimento que culminaria na campanha contra a fome e a miséria e pelo monopólio das virtudes éticas [11]. Campanha essa que fez uma parceria com a parte ecológica e legitimou o discurso alarmista de uma intervenção na floresta, de criação de mais Estado, mais burocracia (Vide o Selo Verde lançado pelo Instituto Chico Mendes e com ampla adesão[12]).

No campo da atividade publicitária cabe a Genézio Darci Boff, o Leonardo Boff (figura importante da teologia da libertação cuja tese universitária foi orientada por ninguém menos que o então cardeal Joseph Ratzinger), copilar em livros às bases do que ficou conhecido como ecosocialismo. O legado de Chico Mendes (que não deixou nada escrito) foi codificado por Boff na obra ´Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres´, publicada em 1994 em português, seguido rapidamente com traduções em várias línguas. Da edição inglesa veio o comentário de Dawn Nothwehr, irmã franciscana, professora de Ética Católica na Catholic Theological Union, em Chicago, EUA, publicado no National Catholic Reporter, em 02-05-2016: ´Esta importante obra de Leonardo Boff ampliou o olhar da Teologia da Libertação para incluir o meio ambiente natural, e fechou as brechas entre a teologia e o ambientalismo. Ela reafirmou o lugar das pessoas dentro da criação e a obrigação moral delas de serem as suas guardiãs.´ E continua fazendo uma analogia entre Ecologia e a tradição Franciscana:

´Boff apresenta as “virtudes ecológicas cardeais”, como exemplificado por São Francisco de Assis, como o caminho a seguir. Orar era o primeiro passo de São Francisco para o seu autoentendimento como um poeta-místico ontológico, capaz de captar a sacramentalidade de todas as coisas. Ele deleitou-se no encantamento erótico religioso, no fascínio e no desejo pelas – e com todas as – coisas no universo (amor). O Deus radicalmente relacional de Francisco leva a humanidade a cuidar os seus semelhantes em toda a criação como Deus cuida deles (obediência). Francisco vivenciou a sua própria dignidade vinculada em toda a criação na medida em que tudo se origina no Único Criador (humildade). A partir deste ponto, Francisco encontrava todas as relações como uma relação completamente disponível à necessidade dos demais (pobreza).´ e continua a irmã com um detalhe pessoal que dá, mais uma vez,  sustentação à argumentação sobre o uso militante da educação:

´minha tese doutoral em ética libertária feminista (“Mutuality: A Formal Norm for Christian Social Ethics”) andava de mãos dadas com as fontes e ideias de Leonardo Boff concernentes ao poder. A “mutualidade”, com as suas manifestações quádruplas (gênero, gerativo, social, cósmico), poria limites ao poder destrutivo da vida humana e planetária.

Como Boff, o meu trabalho utilizava modelos, metáforas e perspectivas disponíveis à teologia a partir da “nova física”, fontes franciscanas e análises sociais feitas “a partir da base”. Imediatamente me identifiquei com Boff em termos intelectuais, descobri uma sinergia com a sua paixão por justiça[13]

Conclusão

No Campo Mundial e regional, caso da América Latina, temos a criação de uma doutrina revolucionária que vinha com um falso aval da Igreja Católica e que foi bem sucedida em seu objetivo de entrar na educação e na cultura popular por meio de uma via dita isenta como era a França. Mesmo refutada teologicamente pela Igreja [14] as referências persistem com forte apelo no ambiente intelectual e devocional. A união feita no pós guerra para criar uma doutrina socialista que não fosse atrelada à velha estrutura comunista gerou uma ocupação de espaços nos seminários e universidades. Quando da implosão do arranjo tradicional regido por Moscou em 1989 a grande maioria da intelectualidade liberal ocidental, que associava todo o fenômeno comunista ao governo russo, aceitou que o socialismo havia acabado e que agora outras demandas tomavam lugar em importância no cenário mundial. Como era o caso do meio ambiente.

No campo doméstico, a teologia da Libertação dá o Norte na criação do Partido dos Trabalhadores, nascido de uma convergência entre setores ditos progressistas da Igreja Católica, intelectualidade laica e o movimento sindicalista que, com o rearranjo ideológico ocasionado pela queda do comunismo russo, descola-se do antigo polo da qual era submisso, para um rearranjo de pautas e demandas; que não recusa necessariamente o seu passado socialista, mas agrega e dá novo sentido a pautas que seriam consideradas menores ou ´pequeno burguesas´ pela ortodoxia marxista. Usando de elementos difusos como a fome e a preservação da natureza para engessar o debate publico de modo maniqueísta, aonde eles representariam todas às virtudes morais e o outro lado todos os males e vícios. Pavimentando o caminho do Partido e dos seus parceiros na América Latina, por meio do Foro de São Paulo, para a tomada do poder.

Continua….

Fidel Castro discursando na conferência da Nações Unidas- Rio 92. Com a queda do comunismo no bloco soviético em 1989 o discurso das esquerdas agora agregava oficialmente (e convenientemente) a preservação do meio ambiente. Às conclusões finais apontavam o dedo para os países ricos como os principais vilões da poluição mundial.

[1] https://forodesaopaulo.org/breve-historico-e-fundamentos/

[2] https://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf

[3] Carpeaux, Otto Maria ´Ensaios Reunidos 1942-1978, Volume I´ Topbooks / UniverCidade Editora, 1999

[4] https://revistacult.uol.com.br/home/amanha-na-batalha-pensa-em-mim/

[5] In ´A História Vivida – Documentos Abertos, Volume I´ Coordenador – Lourenço Dantas Mota , O Estado De São Paulo, 1981 , pág. 25

[6] Bosi, Alfredo ´Economia e Humanismo´ Revista Sociologia e Esperança • Estud. av. 26 (75) • Ago 2012 https://www.scielo.br/j/ea/a/GHph8nZYbYbFvqPJZSDCHXD/?lang=pt

[7] https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-alves-mendes-filho

[8] https://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-09/frei-betto-o-acre-de-chico-mendes.html

[9] https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-alves-mendes-filho

[10] https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-alves-mendes-filho

[11] Para maiores informações sobre a campanha da pela Ética e o Sr. Betinho sugiro o meu texto https://phvox.com.br/os-ecos-revolucionarios-a-arregimentacao-do-termo-ecologia-pelo-ativismo-progressista/

[12] https://institutochicomendes.org.br/parceiros/

[13] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/554538-ecologia-grito-da-terra-grito-dos-pobres-uma-resenha Os grifos no texto são meus.

[14]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_po.html