Há por aí católicos só no nome, e não nas obras, dizendo que diante das novidades tecnológicas atuais, é preciso repensar o que é o ser-humano, e, por mais excêntrico que pareça, creem que é possível empreender essa ressignificação à luz da Sagrada Escritura. Não se dão conta esses estultos de que a concepção católica de ser-humano foi construída justamente à luz da Sagrada Escritura, ou seja, como é que pensam poder mudar o resultado da equação – obtendo um resultado ressignificado –, sem mudar os elementos da equação – sem pôr outro paradigma no lugar da Sagrada Escritura? Sendo tal mudança logicamente impossível, resta-nos concluir o pior: querem mudar o resultado da equação partindo de uma reinterpretação da Sagrada Escritura, atrevendo-se a mudar o vetor da doutrina católica, guiados não pelo Espírito Santo, mas pelo espírito revolucionário. Isso equivale a apostasia! Tal desserviço à fé, porém, não foi engendrado apenas por tais mentes. Estas, como que seduzidas pela “antiga serpente” (Ap 12,9), estão, conscientemente ou não, aderindo ao que se convencionou chamar “transumanismo”, um movimento filosófico e intelectual que nada tem de católico, posto que tenciona transformar a condição humana a partir de tecnologias emergentes, na esperança de extirpar da realidade efeitos como a velhice, a doença, e até mesmo a morte.

O transumanismo – ideologia semelhante à do pós-humanismo, do aperfeiçoamento humano, e da singularidade – concebe a realidade apenas sob o seu aspecto imanente, ou seja, o aqui e o agora, negando a transcendência e a substituindo apenas por um futuro, que, segundo essa concepção da realidade, necessariamente será melhor do que o presente. Contando com a evolução tecnológica e científica para essa melhoria, o transumanismo sonha com um pós-homem, que será modelado segundo características que o próprio homem define como boas. Daí surge uma questão importante: quem dentre os homens definirá o que é bom e o que não é bom no homem? Ainda que, para decidir tais coisas, seja escolhido um grupo pelo consenso de um grupo maior, permanece o próprio homem no comando da eleição dos critérios que definirão como deve ser essa criatura espelhada de si mesmo. Assim, dissentem os transumanistas da participação de Deus na obra da Criação. O homem é agora, no dizer da “serpente” (Cf. Gn 3, 4-5) o “conhecedor do bem e do mal”, como Deus, e não morrerá. De fato, essa ideologia nefasta promete o surgimento de uma humanidade futura imortal, que não sofrerá mais com doenças, ou limitações físicas.

Quando um cristão fala de “ser-humano”, fala de um ser que se concebe como “pessoa”, isto é, não redutível ao aspecto biofísico, que realiza-se no autoconhecimento que tem de si, dos seus semelhantes e do mundo, com uma racionalidade capaz de dominar os próprios impulsos, ou seja, que diferencia-se ontologicamente das demais espécies de seres vivos. Se entre o homem e os outros seres deste mundo já há uma diferença patente – e ainda nem falamos em espírito –, quão maior será então a diferença entre o homem e as máquinas? Os transumanistas, porém, não enxergam fronteiras bem definidas entre organismos biológicos e mecanismos cibernéticos, terminando por misturá-los, por considerar a consciência humana apenas um conjunto de informações, ou seja, concluem que o ser humano não tem a maldade como depreciadora de sua natureza, que a finalidade da vida seria simplesmente desfrutá-la, e que a razão humana é o único guia, o seu deus.

Distanciado menos de quatro semanas do último Natal, em que celebramos o nascimento do Deus que se fez homem, vem-me à mente o famoso livro de Santo Anselmo de Cantuária: “Cur Deus Homo” (do latim: “Por que Deus se fez homem?). Por meio das reflexões que o santo abade beneditino faz em sua obra, fica claro o fato de que, se Cristo assumiu a nossa humanidade, isso não significa que Ele possuía pecado, ou natureza pecaminosa, pois o pecado não é inerente à natureza humana, é um acréscimo depreciador da realidade original dessa natureza. Por isso, não se deve acoplar pecado com humanidade, nem Cristo com pecado, pois o pecado é acessório (não fundamental, não essencial) à natureza humana (Hb 2,14-18). Assim, Cristo, isento de pecado, se fez pecado por nós para que pudéssemos ser feitos justiça de Deus (2Co 5,21). No pensamento transumanista não há a ideia de pecado, nem de Deus, muito menos de um Mediador entre Deus e os homens que se faz carne para redimi-los do pecado. Desaparecem todas as desigualdades entre os homens – virtude, saber, propriedade – como também a desigualdade entre Deus e o homem, já que na ideologia transumanista não há um Criador. Assim, a esperança teológica voltada para a salvação eterna é substituída por uma esperança humana voltada para a melhoria física de nossos males e limites.

Tendo em vista tudo isso, não há como negar que o transumanismo é como o sibilar da antiga serpente (o diabo) soado para tentar o ser-humano a cair em apostasia, renunciando à segura doutrina católica e abraçando uma ideologia em que o homem é uma espécie de “salvador de si mesmo”, que mergulha num profundo imanentismo materialista, num abismo vazio de onde foi extirpada toda e qualquer realidade espiritual, toda transcendência. Se alguém acha que é um revolucionário safo porque se põe a reinterpretar a Sagrada Escritura, saiba que na realidade está sendo trapaceado pela “conversa mole” e repugnante da “serpente”. Cuidado, permaneçam sendo humanos!