No mundo há 40,3 milhões de escravos. As vítimas, em sua maioria, estão na África e na Ásia. No Brasil há em torno de 370 mil escravos. Em todos os casos há a omissão das autoridades locais, internacionais e conivência da política local.

Rothbart, no livro “A Anatomia do Estado” nos alertou da condição parasitária e desnecessária do Estado. Segundo ele, o Estado é definido como monopólio da força física e da violência legal e mostra que a instituição reserva para si o direito de violar tudo o que a sociedade e o indivíduo consideram como honesto, decente e moral. O Estado é um mal desnecessário tanto como agente de políticas proativas, quanto como proteção ou como salvaguarda de fins operacionais.

Na obra, elucida-se que o Estado é uma organização social que tenta manter o monopólio do uso da força e da violência, que não produz nada, mas arrecada de quem produz, por meio da coerção e ameaça. O Estado é uma instituição legal e reconhecida que nasceu da conquista e exploração. E, até hoje essa exploração segue.

O filme ‘Os 7 prisioneiros’, conduzido por Rodrigo Santoro e Cristian Malheiros, é um filme complexo. A trama se passa em São Paulo e nos coloca em uma posição desconfortável, enquanto telespectador quando temos que julgar as atitudes de Matheus, interpretado por Cristian, que está envolto em diversas questões delicadas e sociais. Os personagens apresentam profundidade e a complexidade das situações apresentadas nos levam a questionar até onde o Estado protege a prática que gera lucros enormes.

Lucas, personagem de Santoro, um homem branco, que veio de uma classe social baixa, compra meninos de áreas pobres e estrangeiros, como venezuelanos, chineses, bolivianos, coreanos e haitianos, para sustentar uma rede de lavagem de dinheiro e tráfico humano.

Uma das cenas que provam a omissão de quem diz que nos protege é que, em um determinado momento do filme, Lucas se encontra com um político, na companhia de Mateus e esse político – um personagem secundário e inóspito -, revela que Lucas foi um escravo dele e que inclusive o chamava assoviando, demonstrando todo o desprezo pelo ser humano. O ciclo se repete. Hoje o Lucas é o feitor de escravos.

Aqui faço um adendo: Políticos e poderosos são tão superprotegidos e acima da lei que até em um filme, que tem em sua essência a denúncia, eles são tratados como personagens secundários, que não causam danos, com filhos e familiares. Humanizados e superprotegidos.

Um homem que assovia para que o outro lhe sirva, trafica pessoas e, tratou Mateus com desrespeito e arrogância, recebe um papel secundário, com ares nobres, de trabalhador, político honesto e pai de família.

Ato este que não diverge da forma em que os policiais, envolvidos no esquema e capataz de Lucas são tratados. Os policiais militares ajudam a espancar os meninos e, ameaçam e por vezes espancam as famílias dos garotos, caso não obedeçam e que recebem altas propinas, são personagens ‘cinzas’. Sem grande atuação ou possibilidade de punição e/ou denúncia.

Outro ponto que nos faz refletir são os níveis de escravidão vividos por Matheus. A primeira escravidão é a mental e a segunda é a física. O menino que queria ser engenheiro e enfrenta Lucas no começo do filme, com bravura e violência, para livrar os amigos dessa situação, se torna o algoz com uma pitada de humanidade, quando leva lanches e refrigerantes em uma noite para eles.

Um menino que, nos primeiros minutos de filme se mostra preocupado, combativo e até carinhoso, quando passa a madrugada cuidando de um dos meninos que foi gravemente ferido, que faz planos para tirar todos daquele local, acaba se tornando um feitor de escravos tal como seu algoz.

Essa mudança de Mateus nos leva a imaginar como um ser humano que está passando pela mesma situação se alia ao seu opressor, assim como os escravos tinham escravos. O oprimido vira opressor e o opressor é superprotegido pelo oprimido. Síndrome de Estocolmo? Conveniência? Gosto pelo pouco poder? Autoproteção? O filme deixa isso ao julgo do espectador.

Mesmo com um cenário fechado e pobre – um ferro velho – não se deixou levar pela mesmice e te desperta sentimentos conflituosos até pela frieza que o tema é tratado. Um misto de frieza e seriedade.

Meninos cheios de sonhos e esperanças presos em um ferro velho, sem direito a sair, muitas vezes sem direito ao banho como forma de castigo e sem uma alimentação adequada, quando lhes foi prometido trabalhos dignos para que pudessem sustentar suas famílias. Assim segue com os bolivianos, presos em um quarto de confecção e, quando Mateus tem que optar por três estrangeiros para servirem no ferro velho. É um sistema extremamente desumano e lucrativo.

Mulheres são vendidas como objetos, e Mateus, já transformado (ou conformado), leva as moças para o tráfico sexual e cobra R$ 10 mil por cada mulher, lucrando apenas R$ 1.000,00 em comissão.

O espectador é colocado diante de uma violência necessária para que consiga refletir acerca do tráfico humano e como isso pode estar acontecendo na casa ao lado. No comércio ao lado.

O tempo todo percebe-se que Lucas está desconfortável com a situação e vive um dilema moral, assim como Matheus, mas ambos se entregam ao sistema e mantem a relação de domínio e submissão. Nenhum dos dois faz nada para mudar. O que mostra a tendência do ser humano a aceitar ordens ditatoriais e violentas, sem questionar.

Tomo a liberdade de fazer um aparte: Isso está claro quando a população aceitou de bom grado o fechamento de comércios, escolas e Igrejas, o uso eterno de máscaras e receber uma vacina feita em meses, sem saber as reais consequências de se sujeitar a isso.

O passaporte sanitário é outro exemplo em tela. As pessoas pedem por um controle descomunal do Estado e, agem como Hitler gosta – denuncia o vizinho, o amigo e até familiares que não aceitam serem usados como ratos de laboratórios.

Uma das cenas que causa expectativa é quando os agentes do Ministério do Trabalho vão até o ferro velho e Mateus tem a oportunidade de contar tudo o que se passa, mas prefere acobertar Lucas inclusive quando criticado pelos colchões que os meninos dormem que estão deploráveis. Mateus poderia ter acabado com o seu sofrimento, dos amigos e de centenas de pessoas. Mas preferiu se calar.

Mateus, que no início da trama propôs uma estratégia para pagar a dívida que Lucas disse que os meninos tinham com ele, como moradia, o pagamento pela mão de obra escrava deles, transporte e alimentação e, prometeu aos amigos dobrar a meta com a expectativa de zerar a dívida em 06 meses e libertar a si e seus amigos, acaba, seja por estratégia, seja por conveniência (ai cabe o julgamento pessoal), se aliando a Lucas, ajudando, inclusive agredir seus amigos que tentam fugir e colocando os familiares dos escravos em situação de vulnerabilidade, quando manda os comparsas de Lucas baterem na mãe de um dos meninos que tentou correr do ferro velho.

Após a agressão, os algozes enviam as fotos da senhora toda machucada a Mateus que estava cozinhando para os amigos. É um momento confuso e dubio.

O ponto chave do filme, que desnuda a sede de poder e da opressão e controle do outro, é quando Lucas olha friamente para Mateus, que tenta conseguir algumas regalias – na verdade um pouco de dignidade – os amigos, e diz: “São eles ou nós”. Neste ponto de inflexão, quando Mateus pode provar seu valor e lealdade, ele prefere passear de carro com Lucas.

O filme é complexo porque mostra a omissão de todas as autoridades, a falta de esperança, o entreguismo e a submissão.

O diretor do filme é Alexandre Moratto, a roteirista é Thayná Mantesso e o produtor Fernando Meirelles