Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1984
Nosso grande Brasil, nosso belo Brasil, nosso querido Brasil: grande, belo, querido são alguns dos adjetivos que, à força de se aplicarem merecidamente a este país, acabaram por se tornar banais. Muito menos banal seria quem se referisse a nosso indecifrável país. E, contudo, ele o é sob mais de um aspecto. Trato hoje de um deles.
Imagine o leitor um fazendeiro ocupando com sua família uma casa espaçosa, rodeada pelas vastas áreas integrantes da propriedade rural. Vastas, mesmo, a perder de vista.
Acontece que a família se multiplicou muito, e no casarão falta espaço para a progênie do fazendeiro. Todos brigam. Uns querem alargar as exíguas áreas que ocupam. Para isso, alegam que a casa é, de certo modo, um bem comum de toda a família. E bramem, com a metálica insistência de arapongas, alguns chavões sobre função social da propriedade. Outros alegam, e repetem, o velho princípio romano: “melior est conditio possidentis” (melhor é a condição de quem tem a posse). Dois ou três velhuscos, ligeiramente dados a filósofos, vão mais fundo: proclamam o princípio da propriedade privada. Porém, a maior parte já não sabe o que isto quer dizer, e a voz dos velhuscos vai-se perdendo pelo ar.
No meio desse caos, muitos se conservam alheios à querela: comem, bebem, dormem, trabalham, jogam, ou brigam, sem se incomodar com a polêmica “agro-reformista” que ameaça levar outros ao fratricídio.
Não será bem este o quadro do Brasil contemporâneo, que ameaça — segundo o Sr. Cardeal Primaz da Bahia — entrar em guerra civil, açulado pelo reformismo socioeconômico, no momento mesmo em que a maioria da população parece não desconfiar de nada?
Volto à parábola. Subitamente, ouvindo falar de “propriedade privada”, o dono da fazenda se toma de brios e exclama: “Quem decide tudo aqui sou eu. As terras incultas de que disponho são imensas. Não consinto, nem em partilhas do espaço doméstico, nem em brigas. Termine já este berreiro. Aos que consideram insuficiente o espaço que ocupam no velho lar, dou um belo lote de terras incultas. Dou-lhes uma ajuda de custo para construírem uma residência provisória, adquirirem sementes e ferramentas. Ide, ide logo começar a vida árdua e nobre que vos possibilito. E aqui em casa, repito: acabe-se o berreiro!”
Nisto todos ouvem o acercar-se estabanado de um automóvel que, também estabanadamente freia. De dentro dele salta um rapagão de cabelos e barba desgrenhados, e camiseta que deixa ver longos braços flácidos mas felpudos. Algo que lembra seu tanto a figura de Esaú, de desenhos de velhas histórias sagradas. Ele entra invectivando diretamente o velho fazendeiro: “Deixe desse paternalismo, seu Geraldo. Hoje quem manda é a comunidade. O Sr. já perguntou a todos os moradores se aceitam sua solução?” — Silêncio geral. Pois o “Esaú” é o padre Jonas, vigário.
Alguns que dormitavam em redes ou sofás, acordam surpresos. Outros, que comiam, se aproximam mastigando um resto de lanche. As circunstâncias tornam simbólico e solene o confronto da tradição patriarcal e do progressismo eclesiástico e autodemolidor. Alguns cochicham ser mais divertido morar no bom casarão, no borbulhar briguento do reformismo, do que nos tabiques distantes que o avô Geraldo lhes dá meios de construir.
Mas o avô desta vez não aceita conversa fiada. Ele tomou uma Bíblia que se arrastava sob um móvel qualquer, abriu-a, e leu com voz tonitruante:
“Povoai toda a terra” (Gen. 1, 28). Em seguida, em voz ainda mais alta, literalmente proclamou: “Povoai — esta é a palavra de Deus. Dentro de uma semana, tudo quanto é gente nova tem que estar fora, para povoar gradualmente toda a minha fazenda”. E, voltando-se para o padre, lhe disse: “Seu moço, não sei que religião é esta sua! Deus manda aos homens que se dispersem para ocupar a terra inteira, tirando proveito pacífico e farto dos dons que deixou por toda parte, à espera deles; e o Sr. quer que não se povoe minha terra, que fiquem todos aqui, pisando uns nos outros?” E apontando para um velho oratório, em que um crucifixo rústico abria amorosamente os braços para todos os homens, e uma imagem de Nossa Senhora parecia fitar a todos com olhos de mãe, acrescentou para o estranho levita que fumava embaraçado um cigarrinho: “Aos meus netos, dei prazo de uma semana para sair. Ao Sr. dou prazo de um minuto. Saia já, seu moço, Jesus e Maria não nos deixarão faltos de padres, que quando Deus diz ‘povoai’, por sua vez nos digam ‘povoai’. E que cobrem de bênçãos o rude sacrifício da separação, da ereção de novas casas, do desbravamento de novas terras, onde surgirão novas culturas…”
Todos se calaram, e o padre Esaúgesco foi saindo de mansinho. Deu partida ao automóvel, que se pôs em movimento… sem estabanamento.
Uma semana depois, o casarão estava em paz. E novas fazendas começavam a germinar naquelas vastidões.
Esse conto me veio ao espírito lendo a linda notícia de que 500 famílias de agricultores paranaenses desempregados, simpaticamente organizados pela Acast — Associação de Colonização e Apoio ao Agricultor Sem Terra de Curitiba, mediante acordo com o Instituto de Terras Amazônia, receberam 70 mil hectares, divididos em lotes, para se fixarem. Faltam a esses bravos brasileiros apenas os meios de transporte até a divisa do Amazonas, onde o governo desse Estado os esperará com barcos. Cada família receberá como auxílio 3 milhões a juros subsidiados, e pagamento a longo prazo. Está prevista a construção de um núcleo populacional “Nova Curitiba”, com supermercado estatal a preço reduzido, assistência médica, etc.
Ao mesmo tempo leio que, segundo declaração do Sr. Joel Luiz Bulhões, secretário da Indústria, Comércio e Turismo do Mato Grosso do Sul, só com 3,5% das terras férteis desse Estado já plantadas, constitui ele importante fator de nutrição do Brasil e do Mundo.
Por que razão a CNBB não diz a todos aqueles que o clero de esquerda vai estimulando para execráveis atentados “reformistas” contra propriedades rurais e urbanas: “Não brigueis, mas ide povoar o Mato Grosso e Amazonas, segundo o desígnio da Providência?”
E só poucos parecem estranhar isto no Brasil! Ó indecifrável Brasil, ó incompreensível CNBB, por certo a mais intrincada e ameaçadora charada que há neste nosso imenso, lindo e querido Brasil.
O tipo de artigo eternizado pelo conteúdo. O comunismo é uma praga e para o tempo. Muito triste