Publicado originalmente em Catolicismo Nº 10, Outubro de 1951.
Vai intensa por todo o país, graças a Deus, a campanha contra o divórcio, a tal ponto que se pode considerar já superado o momento mais agudo da crise. Entretanto, cumpre estar vigilante, pois, ao longo da luta ainda poderemos ter amargas surpresas. E, mesmo depois de cessada a batalha, pode o perigo renascer inopinadamente a qualquer momento, prevalecendo-se os divorcistas de circunstâncias ocasionais mais ou menos imprevisíveis, de que nossa época é fecunda, para suprimir a indissolubilidade do vínculo conjugal.
Convém, pois, continuar a despertar as atenções, a mobilizar as energias, a aplicar, de encontro aos alvos mais acertados, todos os meios de persuasão. É a propósito deste último ponto, que queremos fazer algumas considerações.
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Se analisarmos a maior parte dos trabalhos que, nesta campanha, têm sido produzidos contra o divórcio, seremos forçados a concluir que, se de um lado merecem todo o louvor por sua seriedade, sua clareza, pela probidade de sua argumentação, entretanto quase todos pagam tributo a um tal ou qual academismo. Os argumentos que ventilam seriam bons para persuadir intelectuais retamente intencionados. Mas, em via de regra, são inteiramente inoperantes para todo um imenso setor da opinião pública, cujas preferências vacilam entre a indissolubilidade e o divórcio, com um forte pendor para este último. E por isto é que, ouvidos os argumentos mais concludentes, demonstrada pela própria linguagem dos números ( a melhor para os espíritos superficiais ) a nocividade do divórcio para a família e a pátria, reduzido a um silêncio embaraçado e entediado, o divorcista se cala por algum tempo, tartamudeia à la diable alguns farrapos de argumento, e por fim retoma toda a discussão no seu ponto de partida: “então, não pode o cônjuge infeliz refazer sua vida? é justo privá-lo do direito de reconstruir sua felicidade?” Todos os que temos lutado contra o divórcio sabemos como é freqüente esta atitude. Os argumentos mais claros, mais incisivos, mais perfurantes, resvalam sobre mentalidades como esta, sem as atingir. Expostos tais divorcistas ao metralhar da lógica, encolhem-se. Cessado o fogo, reaparecem intactos. Uma campanha anti-divorcista eficaz não pode deixar de tomar na maior consideração este fato. Se ela quiser conquistar terreno, deve reconhecer que as vias de acesso que lhe permitirão penetrar em mentalidades como esta ainda não estão convenientemente conhecidas e exploradas. É forçoso que voltemos nossas vistas para a verdadeira causa desse estado de espírito, a fim de encontrar argumentação adequada que o corrija.
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Com estas palavras, quero falar do romantismo. Nos compêndios, diz-se que esta escola já morreu. Evidentemente, é isto verdade se se trata de literatura ou de arte. Mas será igualmente verdade se se trata da vida? Os modos de ser e de sentir que o romantismo criou estão de fato inteiramente alheios aos hábitos mentais e afetivos de nossos coevos. No que diz respeito ao casamento, é bem verdade que a atitude do homem contemporâneo não se ressente de qualquer influência romântica? E que relação existe entre esta influência e o problema do divórcio?
Evoquemos antes de tudo alguns tipos de “heróis” e “heroínas” do romantismo. O “herói” de gênero “delicado” poderia ser imaginado como um jovem ( nada menos romântico do que os 50 anos! ) esguio, pálido, de feições regulares, grandes olhos melancólicos perdidos no vago do horizonte, com um desalinho poético no penteado e no traje, o peito arfando de aspirações ardentes, indefinidas, torturantes, por uma felicidade afetiva completa. Mas ele é um incompreendido. Em recantos inexplorados de sua personalidade, há horizontes sublimes, há anelos indizíveis que pedem, procuram, imploram a compreensão de uma “alma irmã”. Deve existir pela vastidão deste mundo um ser feito para o compreender. Ele o procura pois assim encontrará a felicidade… e vagueia tristonho pela vida, até que o encontre. O herói romântico de tipo “terrível”, algum tanto diverso na aparência física, é idêntico, do ponto de vista moral, ao modelo que acabamos de descrever: exuberante de varonilidade, compleição atlética, beleza algum tanto sombria, segundo o estilo de algum personagem de Wagner, grande fortuna, grande situação social, influência imensa, tudo enfim que a vida pode oferecer… mas (e aí está o “romântico” do quadro) no coração uma chaga: um afeto ardente, uma decepção tremenda, uma persuasão tão pesada e tão fria quanto uma laje sepulcral, de que jamais há de encontrar na terra a correspondência afetiva com que sonha seu coração.
Simetricamente, formou-se a figura da “heroína”, de que não nos seria difícil evocar dois modelos característicos. Um é do gênero “mignon”. Ela é um mimo de delicadeza de alma e de corpo. Qualquer dor a faz chorar, qualquer arranhão de alma a faz sofrer. Ingênua como uma criança, traz no coração uma imensa vontade de se dedicar e de ser querida por alguém. Precisa de proteção, pois sua fragilidade é completa, e se espelha na meiguice de seu olhar, nas inflexões harmoniosas de sua voz, na finura de seus traços, na requintada delicadeza de toda sua compleição. Outro modelo seria a heroína do gênero “grande”. Beleza deslumbrante, estatura e porte de rainha, centro natural de todas as atenções, de todas as homenagens, de todas as dedicações, presença dominadora e fatal. No coração, é claro, uma crispação oculta, um travo profundo, uma grande e oculta dor. É a amargura de uma desilusão passada, a procura ansiosa e já sem esperanças, de alguém que verdadeiramente a compreenda. A seus pés, poetas, duques, milionários gemem inutilmente. Seu olhar indiferente, altaneiro, profundo e tristonho, procura ao longe, pela vida afora, aquilo que jamais encontrará. É a felicidade de um grande afeto, segundo as aspirações “elevadíssimas” e torturantes que lhe trazem a alma num secreto e incessante verter de sangue.
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Os leitores sorrirão talvez. Não parece bem verdade que tudo isto acabou? Quem vê passar, em seu automóvel de cor risonha, o jovem — ou a jovem — desta era de lepidez, sport e vitaminas, não achará que estamos a léguas do romantismo? O jovem é robusto, alegre, parece bem instalado na vida, cheio de senso prático e do desejo de vencer. A jovem é desembaraçada, empreendedora, utilitária, muitas vezes ardida. Também ela está alegre, sente-se bem, e quer “aproveitar” a existência. Que há nela de comum com a dama de gênero lacrimejante que comovia nossos avós?
Não negamos que o utilitarismo moderno criou um clima de muito maior tolerância para o casamento inspirado em motivos cinicamente financeiros. Não negamos que os cálculos concernentes à carreira, à posição social, influenciam hoje muito mais freqüentemente os casamentos do que outrora. Mas erraria quem quisesse generalizar absolutamente os numerosos exemplos concretos que se poderiam apresentar neste sentido. A despeito de todo o utilitarismo, o terreno reservado ao “sentimento” continua muito considerável. E, se analisarmos este “sentimento”, veremos que ele não é senão uma adaptação muito superficial dos velhos temas românticos.
Nossa era de democracia já não admite os personagens marcantes e excepcionais. O “herói” é hoje um “popular guy” e a moça uma “glamour-girl”. Um “popular guy” como mil, bem entendido, e uma “glamour-girl” como mil também. A mecanicidade da existência hodierna força-os a ser menos assíduos do que seus ancestrais, no devaneio e nas intermináveis divagações. Tudo isto circunscreve de vários modos o âmbito das efusões imaginativas e sentimentais. Mas, todas estas reservas feitas, sempre que eles se ocupam de amor, é o mesmo sentimentalismo adocicado, são os mesmos anelos vagos, as mesmas incompreensões, as mesmas afinidades, os mesmos sobressaltos, as mesmas crises, as mesmas ânsias de felicidade afetiva sem fim, e a mesma e crônica precariedade de todas estas “felicidades”. Não queremos aqui fazer um estudo psicológico da produção literária e artística mais ou menos de segunda classe que corre mundo, e que forma verdadeiramente o espírito da massa. Basta que nosso leitor tenha um pouco o senso da realidade que a todo o momento o rodeia, para perceber quão justas são nossas observações. De fato, a grande maioria dos casamentos realizados por motivo de afeto se constrói hoje em dia sobre sentimentos absolutamente embebidos de sentimentalismo romântico.
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E aqui está o problema. Se alguns casamentos se fazem por interesse, e outros por afeto, e se os que se fazem por afeto em geral se fazem sob o influxo do romantismo, a questão da estabilidade do convívio conjugal depende de saber até que ponto o interesse ou o romantismo podem levar os cônjuges a se suportar mutuamente.
Não falemos do interesse. O assunto é por demais claro. Falemos do romantismo.
Antes de tudo, acentuemos que o romantismo é essencialmente frívolo. Ele supõe de bom grado as maiores virtudes na “heroína” ou no “herói”. Mas no fundo estas virtudes pesam muito pouco na balança, como fator de sobrevivência do afeto recíproco. Com efeito, o sentimentalismo perdoa geralmente, sem grande dificuldade, defeitos morais reais, ingratidões, injustiças, e até traições. Mas ele não perdoa trivialidades. De sorte que — para ir à carne viva da realidade é preciso exemplificar — um modo ridículo de roncar durante o sono, o mau hálito, qualquer outra pequena miséria humana enfim, pode matar inapelavelmente um sentimento romântico… que resistiria às mais graves razões de queixa. Ora, a vida quotidiana é um tecido de trivialidades, e não há pessoa que no convívio íntimo não as tenha mais ou menos difíceis de suportar. Por isto, já se tornou banal falar das desilusões que vêm depois da lua de mel. “Passado este período”, me disse certa vez alguém, “minha esposa não me deu nenhuma decepção, mas me encheu de desilusões”. E como o romantismo por essência e por definição é todo feito de ilusões, de afetos descontrolados e hipotéticos por pessoas que só seriam possíveis no mundo das quimeras, a conseqüência é que em pouco tempo os sentimentos que eram a única base psicológica da estabilidade do convívio conjugal se desfazem.
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Naturalmente, uma pessoa nestas condições não desce ao fundo das coisas, não percebe o que há de substancialmente irrealizável em seus anelos, e julga pura e simplesmente que se enganou. Entende ela, pois, que ainda pode encontrar em outrem a felicidade que o casamento não lhe deu. Habituada a viver única e exclusivamente para a própria felicidade, habituada a ver a felicidade realizada única e exclusivamente na satisfação dos devaneios sentimentais, tal pessoa julgará sua vida irremediavelmente estragada, se não as satisfizer de outro modo. E julgará igualmente estragada a vida de todas as numerosas outras pessoas que tiverem caído no mesmo “equívoco”. De onde o divórcio lhe parecerá absolutamente tão necessário quanto o ar, o pão ou a água.
A uma pessoa neste estado de espírito, que impressão poderá causar uma argumentação séria contra o divórcio, reforçada pela linguagem fria das estatísticas? Habituada a divagar, e não a pensar, ela detesta toda a argumentação, máxime quando séria. A linguagem dos números lhe parece ridícula em assuntos como este. Falar-lhe de sociologia a propósito de casamento e de amor se lhe afigura tão chocante quanto falar dos assuntos mais técnicos da botânica a um poeta entretido em admirar a beleza de uma flor.
Compreende-se, pois, que a campanha anti-divorcista, ferreamente coerente em todos os seus argumentos, bate num alvo errado procurando convencer com argumentos baseados na moral ou no bem do País, gente unicamente preocupada em alcançar a felicidade individual num mundo de sonho e de quimera.
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E aqui chegamos ao fim. Em última análise, romantismo é apenas egoísmo. O romântico não procura senão sua própria felicidade, e só concebe o amor na medida em que o “outro” seja instrumento adequado a torná-lo feliz. Esta felicidade afetiva, ele a deseja tão exclusivamente que, se der largas a seu sentimento, saltará sobre todas as barreiras da moral, dará de barato todas as conveniências do bem comum, e satisfará brutalmente seus instintos. E sobre o egoísmo nada se constrói… a família menos ainda do que qualquer coisa.
É preciso pois desfechar uma tremenda ofensiva anti-romântica, para mostrar a substancial diferença que vai da caridade cristã, toda feita de sobrenatural, de bom senso, de equilíbrio de alma, de triunfo sobre os desregramentos da imaginação e dos sentidos, toda feita de piedade e de ascese enfim, para o amor sensual, egoístico, feito de descontroles, de sentimentalismo romântico ainda tão em voga. É falso imaginar que os verdadeiros esposos cristãos são os heróis de romance que por uma feliz coincidência conseguiram fazer um casamento autêntico, segundo o Direito Canônico, como passo preliminar para a satisfação de suas paixões, mas que levam para o tálamo conjugal o mesmo estado de espírito, o mesmo egoísmo, a mesma imortificação de qualquer amor de aventura.
Enquanto a concepção sentimental-romântica influenciar implícita ou explicitamente a mentalidade dos nubentes, todo o casamento será precário, pois terá sido construído sobre o terreno essencialmente pegajoso, movediço, vulcânico, do egoísmo humano.
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Diz-se comumente que a família é a base da sociedade. Os casamentos nascidos do sentimentalismo egoístico e romântico são a base da Cidade do Demônio, em que o amor do homem a si mesmo é levado até o esquecimento de Deus. Os casamentos nascidos do amor de Deus, e do amor sobrenaturalmente santo ao próximo, até o esquecimento de si mesmo, são a base única da Cidade de Deus.
Maravilhoso ler Plinio!