“Folha de S. Paulo”, 24.10.81[1]

“Ser moderno”, “ser pra-frente”, “estar no vento”: designam ao mesmo tempo estados de espírito, maneiras de ser e linhas de conduta.

As três designações são correntes. Qual dela é a mais atual? Não é fácil responder. Entretanto, “moderno” é muito mais… antigo. Ouço a palavra desde quando me lembro de mim. O que quer dizer muito, em matéria de tempo. Vi sucessivamente designados por esse adjetivo estilos, modas, correntes ideológicas, procedimentos políticos, tipos de propaganda, feitios de personalidade que depois foram caindo no olvido. Mas a “modernidade” como critério de julgamento sobrenadava a todos esses naufrágios. E sempre que alguém ou algo qualificado de moderno entrava em declínio, o que lhe sucedia – ou quem lhe sucedia – ostentava modernidade ainda mais marcada. Para usar a velha metáfora, a modernidade era como uma tocha que os seres estragados pelo tempo ou pelo infortúnio entregavam aos que lhe sucediam, para que a levassem adiante.

Mas as tochas se consomem à medida que avançam. A chamada modernidade, vi-a refulgindo em uma tocha que se chamou democracia liberal, liberalismo econômico, Hollywood, “sport”, aeroplano, “jazz”, forde-bigode, bangalô, etc.

Essa tocha era composta por ingredientes antitéticos: resíduos da tradição cristã e sinais precursores de um mundo que vinha…, de um mundo que, em 1981, está chegando.

O curso dos acontecimentos foi encorpando o mundo novo, ao mesmo tempo que destruía o mundo antigo. Um ribombo, em 1917: o comunismo conquistou a Rússia. Os “modernos”, cada vez mais infensos à tradição, assustaram-se um pouco com a careta sinistra do mundo que vinha. Reconheceram nele, ao mesmo tempo, um filho nascido de seus pendores inconfessados, e um inimigo implacável: “cria hijos que te sacarán los ojos”, adverte trágico aforismo espanhol.

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Os modernos preferiram não deitar especial atenção a esse filho melodramático. E o mundo ocidental continuou a viver sua alegre farândola. A tocha se foi consumindo. De 1917 a 1939, isto é, no vintênio “entre deux guerres”, muitas coisas mudaram no Ocidente, lentamente, suavemente, alegremente. E, feito o balanço, essas mudanças não fizeram senão atenuar, desgastar, erodir quanto o Mundo Livre tinha de diverso do mundo comunista. Enquanto este continuava o mesmo.

Nos anos 40 outro ribombo: caem os países livres ao longo da fronteira russa. A China se torna comunista. No decurso deste segundo e tão mais prolongado “entre deuxguerres”, o Ocidente retoma sua farândola. Simbolizam-na, por exemplo, duas figuras de sorriso largo, desanuviado, otimista: F.D. Roosevelt e J. F. Kennedy. Ao passo que entre 1917 e 1939, a modernidade irradiava da Europa e dos Estados Unidos, no período de 1945-1981 a norte-americanicidade passou a ser a própria quinta-essência da modernidade.

Até que… os Estados Unidos se deixaram vencer no Vietnã. Essa catástrofe foi, aliás, mero sinal de uma transformação geral muito mais profunda.

Com efeito, de modo sempre mais célere, as mentalidades, os tipos humanos, os estilos de vida, de cultura e de arte no Ocidente, continuaram no processo de desfiguramento que a 2ª Guerra não chegara a interromper. De outro lado, o imperialismo russo foi estendendo as fronteiras do mundo comunista. No Ocidente, um anticomunismo sem consistência ideológica, sem eficácia e sem garra ia tomando ares meramente folclóricos. A modernidade americana continuava sendo, por certo, um critério decisivo. Mas muitos sentiam que nela havia algo de gasto.

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De modo correlato, explodiu na França outra catástrofe: maio de 1968, a Sorbonne.

Se não me engano, foi mais ou menos nesse tempo que apareceu a expressão “pra-frente”. A modernidade parara. Passara a ser conservadora. Era preciso um novo termo que designasse, não mais transformações revolucionárias na superfície de toda a Terra, mas fendas que deixassem passar as labaredas de um subsolo em infernal combustão. A onda hippie estendeu-se pelo mundo. “Passageiramente” – acrescentará um leitor superficial. “Quem hoje em dia ainda é hippie?”- perguntará ele. Dou-lhe uma resposta apenas um pouco exagerada: Quem hoje não é hippie? O clássico cogumelo das explosões atômicas, ao mesmo tempo que se desfaz, dilata suas irradiações por toda a atmosfera. O hippismo se desfez. Não existe em nenhum lugar. Está por toda parte. – Ser hippie é ser moderno? Afirmá-lo pareceria soar um pouco em falso. Muito mais exatamente, ser hippie, ou estar penetrado por mentalidade hippie, é “estar no vento”.

Que diferença há entre “ser pra-frente” e “estar no vento”? Se o leitor deitar bem a atenção, sentirá que “ser pra-frente” se diz com mais freqüência de idéias ou atitudes em matéria sócio-econômica. Indica talvez mais correntemente a pessoa que se julga no mais recente extremo da contestação antitradicional, porque luta pela avançada criptocomunista. Quanto menos velada, tanto mais “pra-frente” parecerá. “Estar no vento” me parece um pouco diferente. É antes de tudo uma posição interna pela qual se soltam todos os freios, se desembestam – não há outro termo – todos os sentidos e todos os caprichos. É praticar uma descontração total e absoluta, à qual se segue uma anarquia também total e também absoluta. Mas uma anarquia que progride por uma como que hipnose, a qual, por sua vez, gera um caos “sui generis”. Nada nele tem sentido. Porém, por certos aspectos, nada esbarra com nada, mas tudo parece a pique de explodir a todo momento.

Não confunda o leitor esse novo e misterioso desfecho com o comunismo. É o anarquismo, no sentido etimológico da palavra (“an” : sem, não; “arxé”: governo).

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E a modernidade? Morreu? – Não. “Pra-frente”, “no vento”, são em geral posições de minorias desejosas de ser ainda mais modernas do que a própria modernidade.

O “moderno” é que realmente vive. Não sei de meio de publicidade que o afirme tão taxativamente, mas é assim. Não gosto do “moderno”, estou nos antípodas dele, porém devo reconhecê-lo.

Gosto, isto sim, de um outro fato que o grande público brasileiro desconhece. Nos Estados Unidos vai reflorescendo admiravelmente a tradição.

Falarei disto em próximo artigo.


[1] O artigo faz parte de uma série da qual o autor teve o intuito de promover uma continuidade. Publicaremos, em breve, os próximos textos desta sequência.